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Lahire constrói seu enfoque teórico a partir de um diálogo crítico com o pensamento de Bourdieu, apontando certo viés “caricatural” em suas análises, uma vez que este último associa as práticas e preferências culturais dos indivíduos às suas posições de classe, negligenciando as variações interindividuais e intraindividuais no interior de uma mesma classe. Concentrando sua análise sobre as práticas de consumo cultural, o autor destaca a existência de perfis culturais compostos por elementos dissonantes em todas as classes sociais, caracterizados por práticas mais legítimas em um certo domínio e preferências culturais menos legítimas em outro. Nesse sentido, Lahire (2006, p. 17) afirma que “a fronteira entre a legitimidade cultural (a ‘alta cultura’) e a ilegitimidade cultural (a ‘subcultura’ e a simples diversão) não separa apenas as classes, mas partilha as diferentes práticas e preferências culturais dos mesmos indivíduos em todas as classes da sociedade”. No entanto, um grau elevado de dissonância cultural seria mais comum nas classes médias e altas, nos grupos com nível de escolaridade mais elevado e entre os mais jovens. Sua pesquisa também revela que os públicos caracterizados por um perfil cultural mais consonante ocupam posições totalmente opostas no espaço social, destacando que

essa homogeneização pode ser resultante da carência cultural e material ou, no polo oposto, de uma inserção antiga e “naturalizada” nos âmbitos culturais mais legítimos (Lahire, 2006, p. 24).

Para apreender as variações intraindividuais e interindividuais dos comportamentos culturais, Lahire (2002, 2005, 2006) sugere uma mudança na escala de observação do mundo social, partindo da análise das diferenças internas dos indivíduos antes de mudar o ângulo de visão e focalizar as diferenças entre as classes sociais (variações inter-classes). O autor propõe um programa de sociologia à escala individual, que possibilitaria o estudo da realidade social na sua forma interiorizada, ou seja, um estudo que apreenda o social refratado num corpo individual – sob a forma de disposições –, que atravessa instituições, grupos e campos de luta diferentes. Seu objetivo é desenvolver uma sociologia disposicional que ultrapasse a simples invocação do passado incorporado, reconstruindo a gênese das disposições, investigando a constituição social e as modalidades de atualização desse passado, bem como os modos de socialização que formam tais disposições.

Contudo, Lahire (2013) destaca que seu programa se distancia de uma perspectiva teórica que nega a existência das classes sociais ou que negligencia toda espécie de objetos macrossociais – instituições, ambientes ou grupos. Ele afirma que é suficiente conferir a importância das classes sociais e dos grupos em seus sucessivos trabalhos, inclusive nos estudos de caso em que os indivíduos estudados são inseridos no espaço social e apreendidos no quadro das instituições familiares, escolares, dentre outras. Segundo ele, “o estudo do social em estado dobrado não teria sentido algum caso não pudesse se apoiar no estudo do social em estado desdobrado” (Lahire, 2013, pp. 22-23). Seu interesse pelas condutas individuais é devido à necessidade de revelar a fabricação social do indivíduo, num momento em que este é cada vez mais apresentado e idealizado como um ser isolado, autônomo e guiado por sua própria razão. O programa de sociologia à escala individual, proposto pelo autor, parte das posições ocupadas no espaço social para complexificar o modelo de determinações que pesam sobre cada indivíduo. No entanto, Lahire (2013a, p. 23) ressalta que tal procedimento “em nada autoriza estilhaçar toda distinção entre propriedades principais e secundárias ou a tomar certas singularidades ou certas dimensões da condição de classe por princípios explicativos separáveis e independentes”. Quando a lógica de pesquisa conduz à análise do comportamento singular de determinado indivíduo, faz-se necessário investigar o conjunto da modelagem social pelo qual esse indivíduo passou, começando pela família no interior da qual ele experienciou sua classe, explorando seu meio escolar, de trabalho, cultural, religioso etc. Desse modo, é possível apreender as complexidades disposicionais de indivíduos socialmente situados. Os atores são percebidos como diferentes variações da incorporação plural do social, ou seja, como produto

complexo dos diversos processos de socialização em contextos sociais múltiplos e heterogêneos12.

A adoção de uma escala de análise individual permite a construção de retratos sociológicos, por meio dos quais é possível apreender as variações intraindividuais e interindividuais no âmbito das práticas e preferências culturais. Para o autor de A cultura dos

indivíduos, as variações nos comportamentos culturais dentro de um mesmo grupo ou de um

mesmo indivíduo são o produto da interação entre, de um lado, a pluralidade de disposições e de competências culturais – incorporadas através dos diferentes processos de socialização, em matéria cultural – e, de outro, a diversidade de contextos culturais de sua efetivação – campos culturais ou subcampos, contextos relacionais e circunstâncias mais gerais do consumo ou da prática (sozinho, em família, com amigos, privadamente ou publicamente etc.). Segundo Lahire (2006, p. 27), tal análise permite evidenciar que numerosas práticas culturais individuais não estão ligadas a gostos, mas a circunstâncias incitantes, a obrigações ou imposições leves – tais como as práticas de acompanhamento – e fortes – como as exigências escolares e profissionais. Nesse sentido, ele afirma que “é preciso colocar esses indivíduos excessivamente abstratos em uma rede concreta e determinante de suas ligações de interdependência para obter uma imagem um pouco mais verdadeira do que são os consumos e as atividades culturais”.

Além disso, Lahire (2006, p. 39) destaca que Bourdieu negligencia em sua análise a existência de outras ordens de legitimidade cultural que concorrem diretamente com a ordem legítima dominante, dotando os indivíduos de outros valores e crenças, que são compartilhados coletivamente e dão margem a diferentes reações diante desta última. É certo que a cultura dominante dispõe dos meios – escola, Estado, instituições culturais etc. – para impor sua legitimidade até mesmo àqueles que não têm acesso a ela e nem possuem as condições objetivas para forjar seus hábitos de ação, gerando, muitas vezes, um sentimento de vergonha e de indignidade cultural, que caracteriza a relação de dominação13. Contudo, o autor afirma que a ordem legítima dominante não é a única existente, nem se impõe a todos, a todo momento e

12 Lahire (2002) adota a noção de hábito e de patrimônio individual de disposições para analisar o ator plural, ao

invés do conceito de habitus de Bourdieu, na medida em que este último enfatizaria uma excessiva unicidade e sistematicidade das disposições, negligenciando seu caráter heterogêneo e até mesmo contraditório.

13 O autor estabelece uma distinção entre disposições para crer e disposições para agir, que possibilita pensar a

incorporação de crenças na importância da cultura legítima, mesmo por parte daqueles que não possuem as condições objetivas para incorporá-la sob a forma de disposições para agir. As crenças interiorizadas podem ser verbalizadas e estão ligadas a normas produzidas e difundidas por diferentes instituições sociais. Essa distinção permite compreender os casos em que os atores interiorizam normas, valores e ideais sem terem forjado hábitos de ação que lhes permitiriam atingir o seu ideal, ou ainda aqueles casos em que, tendo incorporado crenças, eles não têm os meios materiais para concretizá-las (Lahire, 2002).

com a mesma intensidade, uma vez que há uma diversidade de mercados que legitimam outros produtos, outras atitudes e comportamentos, nos quais os atores também estão inseridos.

Lahire (2006, p. 45) destaca o desenvolvimento de uma cultura da diversão (entertainment) nas últimas décadas, sustentada por uma grande parte das mídias audiovisuais, rádio e televisão, capaz de concorrer, pouco a pouco, com os valores pedagógicos e culturais da ordem legítima dominante. Nesse sentido, o relaxamento das exigências culturais se torna mais provável, na medida em que a vida dos indivíduos se torna mais estressante e em que o grau de legitimidade da cultura clássica diminui, sob o efeito da concorrência das novas mídias. A cultura da diversão proporcionaria, desse modo, uma oposição contracultural que encontra seu fundamento nos mercados livres populares (família, grupo de iguais, rede de sociabilidade homogênea) e contrapõe a cultura divertida, animada e descontraída à cultura intelecto, séria demais e pretenciosa. De acordo com o autor, os consumos “para relaxar”, “se desestressar”, “esvaziar a cabeça” e “se distrair” são frequentes em todos os meios sociais e contribuem, em parte, para a produção de perfis culturais dissonantes entre aqueles com nível de educação mais elevado14. Segundo ele, um caso ilustrativo em que a ordem cultural dominante é menos

operante é o do fã-clube de uma banda de rock ou cantor pop, que concentra sua crença no ídolo e sobre quem o efeito de legitimidade da cultura musical dominante não tem nenhum valor.

Lahire (2006, p. 45) cita também o caso do crente em Deus, que coloca sua espiritualidade no auge de sua hierarquia “pessoal”, mantendo certa indiferença com relação a uma ordem e um sistema de classificação que eles não internalizaram em sua socialização passada ou que internalizaram, “mas que foram suplantadas por outra ordem e por um outro sistema de classificação”. Nesse sentido, o autor conclui que,

o “efeito de legitimidade” não tem uma influência permanente, seja qual for o campo ou subcampo cultural em questão, porque se depara com entrevistados que dispõem de meios de resistência ou de indiferença coletivamente constituídos, sustentados e garantidos no âmbito de instâncias de legitimação concorrentes: clube de fãs, locais de concerto, redes de sociabilidade, comunidade nacional ou familiar, igreja, mídias audiovisuais, etc. (Lahire, 2006, p. 49. Grifo do autor).

Portanto, a variação individual das práticas e preferências culturais constituiria o sintoma, na escala do social incorporado, da pluralidade da oferta cultural, de um lado, e da diversidade de grupos sociais, de experiências socializadoras e de contextos e momentos da

14 No caso dos entrevistados mais escolarizados, o autor destaca os contextos e o tempo delimitado nos quais essas

práticas de consumo são legitimadas – férias, tempo livre – adquirindo o sentido do descanso bem-merecido, após as atribuições escolares ou profissionais (Lahire, 2006, p. 51).

prática, de outro, capazes de suportar essas diferentes ofertas culturais, difundindo hierarquias culturais específicas, que são constitutivas de formações sociais altamente diferenciadas. Contudo, é importante destacar que, embora existam outras “moedas de troca”, utilizadas em mercados culturais específicos e que possuem um alto valor localmente, elas podem não valer nada em outros mercados. Desse modo, o autor reconhece a existência de uma relação de forças entre essas diversas ordens culturais, que dispõem de meios de difusão e de imposição extraordinariamente desiguais, ressaltando a habilidade da cultura letrada – cujas principais portadoras são as elites culturais – de se colocar como a forma por excelência de realização do humano15. A associação entre populações e bens culturais depende dessa relação de forças entre as múltiplas instâncias de consagração e de sua maior ou menor capacidade de impor seus valores ou, ao menos, o sentimento de sua importância. De acordo com Lahire (2006, p. 55),

as populações que passam pela escola sem encontrar ali um sentido e um interesse hoje são facilmente atraídas por instâncias de consagração (televisão, rádio, imprensa escrita etc.) objetivamente em luta com a instituição escolar, e não se sentem envergonhadas diante de certos bens culturais legítimos. Em vez disso, sua crença orienta-se a outros bens e outras práticas e, desse modo, a legitimidade de bens objetivamente dominantes pode debilitar-se ou desaparecer completamente para elas.

O autor destaca a existência de duas formas principais de dominação cultural nas sociedades contemporâneas: a primeira delas domina pela extensão de seu público e geralmente atravessa as classes sociais e condições (“a indústria cultural”); a segunda domina pela sua oficialidade e pelo prestígio conquistado historicamente, sendo mais restrita aos grupos que passaram por uma intensa educação familiar ou formação escolar de longa duração, exigindo uma boa dose de ascetismo e de pré-requisitos para aquisição de gostos mais raros e conhecimentos que os distinguem da maioria (“alta cultura”). Para Lahire (2006, p. 56), a dificuldade de Bourdieu em analisar a diversidade de gostos e práticas no interior de uma mesma classe, deve-se a uma propensão espontaneamente legitimista de sua teoria, que tende a perceber o mundo social a partir das categorias de percepção próprias das classes dominantes – além de sua ênfase na reprodução da desigualdade social através da dominação cultural – reduzindo aqueles que não dominam os códigos da cultura legítima dominante à sua pobreza cultural. Isso pode ser percebido sobretudo em sua análise dos membros das classes populares,

15 Segundo Lahire (2006, p. 45), as outras formas de cultura (pop, diversão) raramente têm a pretensão de conduzir

os consumidores a uma plena realização ou elevação de si, o que pode ser percebido como uma forma de aceitar sua menor importância social.

tratadas como um grande bloco homogêneo, sem o estabelecimento de distinções entre frações de classes, como é feito de modo sistemático com as demais classes sociais.

O autor afirma que se Bourdieu não fornece um quadro mais matizado das diferenças culturais interclasses e da transferência de disposições culturais, não é por se tratar de um fenômeno histórico recente, ligado à diminuição relativa da crença na legitimidade cultural, mas a um modo de leitura dos dados estatísticos. Para ele, a adoção de uma escala de análise individual permitiria ao sociólogo apreender as variações individuais dos gostos e preferências culturais no interior de uma mesma classe ou fração de classe, a partir dos dados publicados na

Distinção. Tais variações se tornaram significativas já a partir dos anos 1960, devido à crescente

concorrência entre diferentes instâncias de legitimação cultural. Lahire (2006, p. 145) ressalta que parte da fraqueza interpretativa de Bourdieu pode ser explicada pela sua posição no campo sociológico nesse período, em disputa com os mass-midiólogos e com os teóricos da sociedade do consumo – como Jean Baudrillard, George Friedman e Edgar Morin -, que buscavam analisar de maneira ensaística as transformações culturais de seu tempo. Segundo ele, esses teóricos começavam a antever já nos anos 1960, “as concorrências entre a escola e a indústria cultural, assim como os efeitos dessas concorrências na paleta de gostos individuais”.

Ademais, o enfoque teórico de Lahire possibilita a análise das práticas de consumo e as preferências culturais em contextos de mudança – sejam aquelas mudanças situadas num nível microssocial, como casamento ou divórcio, ou aquelas mudanças de nível macro, como os processos de mobilidade social, escolar e profissional. Desse modo, este enfoque contribui para uma análise sobre a maior inserção das classes populares brasileiras na cultura de consumo após o governo Lula. Sua ênfase sobre a importância dos processos de socialização secundária e a diversidade de contextos e circunstâncias da prática permite investigar em quais condições os membros das frações ascendentes das classes populares incorporam novas disposições para o consumo. A análise das variações intraindividuais permite apreender as condições em que esses indivíduos, caracterizados pela incorporação de disposições ascéticas no mundo do trabalho, responsável pela sua ascensão social – ou na escola, no caso daqueles membros que tiveram uma mobilidade escolar -, adotam uma orientação mais hedonista no campo dos estilos de vida. A adoção de uma escala individual permite analisar também as variações interindividuais no interior de uma mesma classe ou fração de classe, rastreando as condições que possibilitam a incorporação de disposições hedonistas por parte de alguns membros das classes populares, enquanto outros permanecem orientados por disposições ascéticas no campo dos estilos de vida.

De modo semelhante, a distinção estabelecida por Lahire (2002) entre disposições para crer e disposições para agir permite considerar as situações em que os membros das classes

populares já haviam incorporado disposições para o consumo sob a forma de crenças, mas não possuíam as condições objetivas para forjar hábitos de ação. Nesse sentido, foi possível observar na pesquisa de campo que muitos dos entrevistados de orientação mais hedonista – sobretudo os mais jovens – já haviam incorporado disposições para crer, influenciados pelos valores e promessas da cultura do consumo, mas não possuíam as condições materiais para incorporar disposições para agir. Esta tendência é resultante, ao menos em parte, da crescente influência exercida por outras ordens de legitimação cultural nos meios populares, como é o caso das mídias audiovisuais e do crescimento de uma cultura da diversão, que possibilita a incorporação de disposições hedonistas por parte de alguns membros das frações ascendentes das classes populares. Por outro lado, observamos que o pertencimento a uma comunidade religiosa mais tradicional e resistente aos produtos da indústria cultural, como os programas televisivos, pode contribuir para reforçar as disposições ascéticas incorporadas desde a socialização familiar, orientando a composição de um estilo de vida mais ascético.

Lahire consegue demonstrar que o indivíduo constitui um objeto privilegiado da análise sociológica, fortemente ancorado na pesquisa empírica. Bourdieu (2013a, p. 231), por sua vez, não ignora o crescente processo de diferenciação em curso nas sociedades modernas; ele mesmo enfatiza as lutas simbólicas pela diferença específica entre os mais próximos, engendradas por uma sociedade competitiva. Contudo, ele afirma que tal diferença mascara justamente “as propriedades genéricas, o gênero comum, as solidariedades ‘objetivas’, a classe”. As lutas de competição que dividem os mais próximos seriam a antítese mais perfeita e a negação mais eficaz da luta contra outra classe, na qual se constitui a classe. Por isso, o autor adota uma escala de análise ao nível dos grupos, tratando como idênticos os membros de cada classe de condições e de condicionamentos sociais, sem deixar de destacar o caráter teórico de seus construtos, bem como o reconhecimento de que os membros de uma classe não vivenciam as mesmas experiências em suas trajetórias. Bourdieu (2013c, p. 40) destaca a importância da construção teórica e política da noção de classe e de outros instrumentos conceituais capazes de desvendar a natureza das relações sociais e de intervir nas mesmas. Nas suas palavras,

forçando a descobrir a exterioridade no coração da interioridade, a banalidade na ilusão da raridade, o comum na busca do único, a sociologia não tem somente por efeito denunciar todas as imposturas do egotismo narcísico; ela oferece um meio, talvez o único, de contribuir, nem que seja pela consciência das determinações, à construção, que de outro modo poderia ser abandonada às forças do mundo, de algo como um sujeito.