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4 O BATALHADOR ASCÉTICO

4.4 Variantes do gosto de necessidade

Além dos valores e disposições constitutivos do ethos do trabalho duro, é importante destacar outras variáveis fundamentais na orientação das práticas de consumo do batalhador ascético, tais como o volume e estrutura do capital, a posição na estrutura ocupacional e no seio da família, idade, gênero e o momento no ciclo de vida. Se, por um lado, o aumento da renda não se converte necessariamente em mudanças nas práticas de consumo entre os membros das classes populares, por outro lado, é possível observar uma maior tendência à incorporação de novas disposições para o consumo à medida que esses batalhadores se distanciam do mundo das necessidades materiais, mediante o acúmulo de capital econômico, como é o caso dos batalhadores empreendedores. Embora se caracterizem por uma orientação ascética, que é transposta, em boa medida, para o campo dos estilos de vida – sendo considerada fundamental para assegurar sua posição num mercado competitivo, caracterizado pela sua imprevisibilidade –, o batalhador empreendedor possui maiores condições objetivas para aderir a novas práticas de consumo, apresentando mudanças em seu padrão de consumo e estilo de vida, sobretudo se comparado aos demais batalhadores ascéticos, como é o caso dos trabalhadores assalariados. Essa discussão será desenvolvida no próximo capítulo, dedicado à análise dos batalhadores que decidiram montar o seu próprio negócio e conseguiram ascender socialmente, alcançando o topo dessa fração de classe.

As práticas de consumo cultural do batalhador ascético também não mudam muito com relação à condição anterior, uma vez que sua ascensão social foi possibilitada por uma maior aquisição de capital econômico, mas não de capital cultural. Desse modo, a maioria não tem hábito de ler, nunca foi ao teatro e raramente vai ao cinema. Destituídos das condições objetivas que poderiam favorecer a incorporação de novas disposições para o lazer e novas práticas de consumo cultural – tais como a incorporação do capital cultural considerado legítimo, tempo livre e mesmo um maior montante de capital econômico – o batalhador ascético permanece

fortemente orientado para o trabalho, sacrificando, em boa medida, as atividades voltadas ao prazer. As atividades de lazer dos batalhadores ascéticos entrevistados na pesquisa de campo parecem restritas ao ambiente doméstico, proporcionadas pelos meios de comunicação de massa, tais como assistir televisão ou acessar a internet. Vale ressaltar também que essas atividades parecem fortemente influenciadas pelo seu pertencimento religioso, tais como assistir a um culto, ler a Bíblia, assistir a filmes e novelas de temática religiosa, indicando uma orientação na qual não se afirma a busca pelo prazer e desfrute espontâneo da vida, em primeiro lugar, mas atividades que proporcionam sua elevação espiritual e estão em conformidade com a vontade de Deus.

É importante destacar, mais uma vez, que o perfil do batalhador ascético constitui uma construção teórica, a qual não tem qualquer pretensão de afirmar que esses indivíduos se orientem permanentemente pelas mesmas disposições ao longo da vida, em todos os âmbitos da prática. Nesse sentido, foi possível observar batalhadores de orientação mais ascética que já tiveram um comportamento mais hedonista em sua condição passada. Tais mudanças parecem estar associadas à posição assumida no seio da família, à idade, aos processos de socialização secundária, à estruturação dos papeis de gênero e ao momento no ciclo de vida, que envolve circunstâncias específicas da biografia dos indivíduos, adquirindo sentidos específicos em suas trajetórias, que se refletem, de maneiras diversas, em suas práticas de consumo. Essa mudança de orientação pode ser observada na trajetória de Jane. A entrevistada afirma que em sua juventude era mais vaidosa, gostava de se maquiar, ajeitar o cabelo e comprar roupas, o que estava diretamente relacionado ao seu trabalho, como representante de produtos de beleza. Embora não recebesse salário, ela via neste trabalho uma oportunidade de viajar por todo o Brasil, hospedar-se em hotéis, ficar conhecida no mundo da beleza, além de conseguir produtos com desconto para seu salão. Como destaca Bourdieu (2013a), o consumo de vestuário e produtos cosméticos está diretamente ligado aos lucros simbólicos que as pessoas podem obter no mercado de trabalho, sendo, portanto, mais comum entre as frações das classes dominantes do que entre os membros das classes populares. Na medida em que muitos batalhadores ascéticos ocupam postos de trabalho em que não se espera obter lucros através da construção da autoimagem, eles não costumam investir tanto no consumo de vestuário e produtos cosméticos. Nesse sentido, quando começou a trabalhar como atendente de telemarketing, sem lidar diretamente com o público, Jane adotou uma orientação mais ascética no consumo de vestuário.

A incorporação de uma orientação ascética no campo dos estilos de vida também está relacionada à sua posição na família e ao momento específico de seu ciclo de vida. Embora não

tenha se casado nem tenha filhos, Jane se dedica à criação das duas sobrinhas, ajudando a pagar suas despesas com alimentação, educação e lazer. Sua posição no arranjo familiar contribuiu para reforçar sua disposição para o sacrifício individual, incorporada desde a infância, na medida em que a entrevistada dedica a maior parte de sua renda ao pagamento das despesas com as sobrinhas e com a casa, assumidas como prioridade. Ademais, a entrevistada vivenciou situações que contribuíram para baixar sua estima, inibindo ainda mais suas antigas disposições hedonistas, como suas tentativas frustradas para alcançar maior mobilidade escolar e ocupacional. Jane começou a trabalhar aos 14 anos de idade no salão de beleza de sua tia, conseguindo, posteriormente, montar seu próprio salão. No entanto, ela decidiu mudar de área profissional no momento em que se ampliava o complexo portuário de Suape, com a construção do Estaleiro Atlântico Sul, vislumbrando uma nova oportunidade de emprego. Desse modo, Jane investiu em um curso técnico de Mecânica na cidade do Cabo, voltado para solda naval, precisando transferir o salão para sua casa, visando reduzir seus custos. No entanto, após alguns meses, o curso foi fechado pois não tinha licença do Ministério da Educação para funcionar. Sentindo-se prejudicada pelo investimento perdido e já sem o espaço do salão, Jane foi procurar emprego na Contax, tornando-se atendente de telemarketing. Embora esteja gostando da experiência de ter um emprego formal e já tenha sido promovida em seu novo emprego, ela precisa lidar com uma insegurança permanente no trabalho, diante do alto número de demissões que estava presenciando.

Aí eu só tô meio assim, nunca passei por isso, sempre trabalhei, trabalhei no salão da minha tia, nunca tive problema com demissão, depois eu abri o meu, aí agora eu tô com essa experiência de ficar sempre com medo, isso é horrível.

A experiência de insegurança no trabalho contribuiu para reforçar as disposições ascéticas da entrevistada, tais como disposição para o autocontrole e para o pensamento prospectivo, refletindo-se em sua orientação ascética no campo dos estilos de vida. Jane também vivenciou algumas frustrações em suas tentativas de obter um diploma de nível superior, quando tentou aproveitar as oportunidades criadas com as políticas de inclusão no ensino superior, como o Prouni e o FIES. Ela conseguiu ingressar no curso de Engenharia Civil da Faculdade Estácio de Sá pelo o FIES,mas teve dificuldades para acompanhar as disciplinas e acabou reprovando em quase todas no primeiro período. Como o programa estabelece um número máximo de reprovações, Jane temia perder o curso e decidiu mudar para o curso de Administração, adiando o sonho de se tornar engenheira. No entanto, ela não gostou do novo curso e terminou trancando a faculdade.

O primeiro período já foi bem salgado e eu perdi várias cadeiras que eu tenho que repetir, aí me deu uma insegurança, como era FIES, porque o FIES tem uma quantidade de cadeira que você pode reprovar, senão você perde. Aí eu fiquei com medo, no próximo período, é... perder as cadeiras, aí eu fui fazer Administração pra conseguir um emprego melhor pra depois fazer engenharia. Eu acho que eu me perdi daí. Eu não devia ter pensado assim. Eu devia ter procurado saber melhor ou já que tava com insegurança devia ter trancado naquela época, pensado e depois voltado. Mas aí o que é que eu fiz? Eu mudei de curso, quando eu mudei de curso, eu comecei em Administração. Quando eu vi que não era, eu fui trancar, quando eu fui trancar, eu realmente podia trancar, mas eu não podia voltar pra o outro, aí foi daí que eu...

É possível observar uma tendência de responsabilização individual pelos fracassos na trajetória escolar, muito comum entre os batalhadores, que contribui para baixar a estima da entrevistada e suas perspectivas de mobilidade ascendente. A entrevistada reconhece que não teve base para cursar engenharia, muito embora lamente não ter dado a importância devida aos estudos em sua época de escola, quando trabalhava no salão de beleza da tia, durante o dia, estudando à noite.

Eu deixei de ser engenheira, primeiro comecei tarde, e segundo eu não tenho base. Eu não sei nem dividir, como uma... É, eu não tenho base, eu sei dividir, é... conta de padaria, não é? Conta de padaria eu sei dividir. Eu sei somar, multiplicar, de padaria, do dia-a-dia, mas quando eu fui pra a faculdade, meu Deus, é outro mundo, é outro universo completamente diferente.

É válido destacar também a percepção da entrevistada, ao entrar na faculdade, acerca da diferença entre os saberes: o conhecimento abstrato, característico das classes dominantes, e o conhecimento prático, incorporado pelas classes populares através de um aprendizado prático do trabalho. Jane também afirma sentir dificuldades para ter relacionamentos amorosos, percebendo sua posição desfavorável no mercado matrimonial, como mulher negra, agravada pela sua recente descoberta de que não poderá mais ter filhos, devido a um problema de saúde que acarretou na necessidade de retirada do útero. Sentindo-se só e insatisfeita com o seu corpo, por ter engordado muito, a entrevistada afirma não ter ânimo para comprar roupa ou investir na sua autoimagem.

Agora nem tanto, que eu to muito gorda, nenhuma roupa é bonita. Nada me agrada, calça jeans, eu só compro as que atacam. Detesto comprar calça jeans porque eu não uso calça cara, porque calça de grife, aonde as pessoas, calça de grife não, quando eu digo de grife não é porque é cara não, as calças tipo... essas lojas Fem, femi, né Femi, eu acho. Aquela outra que tem na Conde da Boa Vista, que é bem arrumadinha. Quando as calças são bonitas, elas parecem, essas pessoas, elas têm mais noção, por exemplo, eu to muito, eu to muito gorda, realmente. Eu tenho muita gordura localizada aqui [aponta para as pernas], então eu acho que a tendência é não puxar pra cá, só que quando eu vou comprar, eu compro ali na rua... que o pessoal chama aqui, a... a... a sulanca da cidade. Que o pessoal não vende pra comprar Toritama? Aí dizem que é a Toritama daqui, que o pessoal já compra lá pra revender aqui.

Que tem aquele Cacos Modas. Deixei de comprar lá, que a calça ficou muito mais cara, aí fui em outros cantos. Só que o que é que tá acontecendo? As calças continuam grandes e eles eu acho que não têm essa tendência de verificar que uma calça muito grande, ela não tem que ter aquele clarão aqui. Geralmente, eu só consigo comprar assim, hoje em dia. Ela com aqueles detalhes, mais, um jeans mais claro aqui e um riscado aqui, ou com uma mancha aqui. Isso deixa minha perna desse tamanho e me achata. Eu fico desse tamanho. Aí parei de comprar roupa, eu compro o necessário. Quando eu, como eu tenho muito isso aqui, ela rasga aqui, aí eu mando costurar, a menina faz uma emenda, aí quando não dá mais, quando a emenda já dá pra perceber, aí eu já, já descarto, aí quando eu vou, compro.

A entrevistada afirma ter somente alguns pares de roupa, que são revezados ao longo da semana para ir ao trabalho, orientando suas práticas de consumo pela retórica da necessidade, tal como os demais batalhadores que permanecem com uma orientação mais ascética no campo dos estilos de vida, diante de sua relativa mobilidade ascendente no período recente. A análise das práticas e preferências constitutivas do estilo de vida do batalhador ascético também conduziu a uma discussão acerca de algumas de suas disposições e inclinações políticas. Essa discussão é possibilitada pela noção de classe social adotada neste trabalho, fundamentada na perspectiva teórica de Bourdieu (2013a), segundo a qual o conceito de estilo de vida é parte integrante do conceito de classe, exprimindo, em cada um dos subespaços simbólicos, as condições objetivas das quais ele é produto. Ademais, a análise sobre as práticas de consumo das frações ascensionais das classes populares brasileiras favoreceu a discussão sobre suas opiniões políticas, na medida em que a maioria dos entrevistados baseava suas percepções sobre pertencimento de classe no acesso diferenciado ao consumo de bens e serviços e tendia a perceber a maior capacidade de consumo dos mais pobres como decorrência das políticas implementadas a partir do governo Lula. Nesse sentido, é importante tecer algumas considerações acerca de suas disposições políticas.