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ganância, da desonestidade e da falta de ética e caráter, valores negativos que são aflorados no médico diante de uma situação de fragilidade de sua paciente, a velha, como pode ser verificado na leitura da fábula trazida a seguir.

A VELHA E O MÉDICO

Uma velha, doente dos olhos, mandou chamar um médico mediante paga- mento. Ele veio e, enquanto lhe fazia compressas, estando ela de olhos fechados, ele roubava um a um os seus móveis. Depois que ele roubou tudo, e estando ela curada, ele pediu o pagamento combinado. E, como ela não quisesse pagá-lo, ele a levou aos juízes. Ela disse que havia prometido um pagamento se ele curasse sua visão, mas, que agora, seu estado, depois de curada por ele, era pior do que antes: “Pois então eu via”, disse, “e agora nada mais posso ver”.

MORAL: Assim, os homens maus, por sua cobiça, se esquecem de não

deixar pistas contra eles.

A fábula inicia com uma oração verbal (1) em que uma velha direcio- na um comando (mandou) a alguém (não explicitado), encarregado de chamar

um médico. Para que a solicitação seja atendida, é estabelecida uma condi-

ção, realizada pela circunstância de contingência mediante pagamento. Essa circunstância deixa claro que um acordo foi estabelecido de antemão entre os personagens, tendo em vista a ação afirmativa do médico quanto ao chamado, representada pela oração (2) do excerto que introduz o texto:

01

(1) Uma velha, doente dos olhos, mandou chamar um médico me- diante pagamento. (2) Ele veio (3) e enquanto [o médico] lhe fazia compressas, (4) estando ela de olhos fechados, (5) ele roubava um a um os seus móveis.

A nomeação dada à personagem expressa uma apreciação negativa (velha) que, juntamente com o Atributo doente dos olhos, em (1), indica um julgamento quanto à sua incapacidade, sendo representada como frágil e de- bilitada fisicamente. O médico, por sua vez, tendo em vista a nomeação em re- ferência à sua profissão e o processo material (fazia compressas) que beneficia

a velha (retomada por lhe), tem sua representação sinalizada como prestativo e cuidadoso com relação ao exercício de sua profissão, o que remete a julga- mentos positivos de capacidade e tenacidade, presentes na oração (3).

A partir da oração (5), entretanto, concorre com a representação de profissional competente uma representação relacionada com o modo como o

médico procedia nas visitas à casa da velha, evidenciada pela oração material roubava um a um os seus móveis, em (5). Assim, como Ator de veio em (2) e fazia compressas em (3), o médico é representado, por um lado, como profissional

cujas ações beneficiam positivamente a velha. Por outro lado, quando realiza um processo não condizente com seu papel social (aproveitar-se da condição da velha para roubar seus móveis), o médico é representado como oportunista e ladrão.

Essas construções léxico-gramaticais evidenciam, portanto, as repre- sentações para cada personagem no início do texto: a velha, além de frágil e debilitada quanto à sua capacidade de visão, é vítima de roubos praticados pelo médico; este, por sua vez, diante da fragilidade de sua paciente, é repre- sentado como insensível, desonesto e criminoso (ladrão).

Ao longo da estória, os personagens são representados com propósi- tos e posicionamentos divergentes quanto ao serviço prestado pelo médico:

02 (6) Depois que ele roubou tudo, (7) e estando ela curada, (8) ele pe-diu o pagamento combinado. (9) E, como ela não quisesse pagá-lo, (10) ele a levou aos juízes.

A velha (retomada pelo pronome ela), como Portador em (7), é carac- terizada como curada, o que funciona como argumento, aparentemente justo, para que o médico, como Dizente, em (8), tenha seu pedido (opagamento) aten- dido. Entretanto, a velha experiência o desejo de não cumprir a promessa feita no momento em que mandou chamar o médico (mediante pagamento), como evidencia a polarização negativa que acompanha o processo mental desidera- tivo não quisesse em (9).

Essas escolhas léxico-gramaticais evidenciam uma inversão das re- presentações iniciais de cada personagem: a velha passa a ser a desonesta, e o médico, a vítima de calote. Sob o ponto de vista do médico, ele cumpriu sua parte (curou a paciente), ao passo que a velha, ao contrário, não o fez (não quis

pagar pelos serviços). Essas representações tornam a velha digna de sanção social, o que é construído léxico-gramaticalmente pela oração (10), em que a personagem desonesta é Meta de levou aos juízes. Perante o juiz, a velha justi- fica sua atitude de não pagar o médico com o prognóstico de sua capacidade visual depois do serviço prestado pelo médico:

03

(11) Ela disse (12) que havia prometido um pagamento (13) se ele curasse sua visão, (14) mas que agora, seu estado, (15) depois de curada por ele, (14) era pior do que antes: (16) “Pois então eu via (17) e agora nada mais posso ver”, (18) [a velha] disse.

A velha, como Dizente do relato constituído de um complexo oracio- nal (12 a 15), confirma a promessa feita ao médico no momento de contratar seu serviço, mas avalia negativamente seu estado depois da cura ao escolher o Atributo pior para caracterizar sua visão. Na sequência, a velha verbaliza expe- riências que, na Citação constituída das orações (16) e (17), indicam o porquê de tal avaliação: antes de ser tratada pelo médico, a velha conseguia realizar o processo mental perceptivo (Pois então eu via), mas depois da cura não pôde mais vivenciar a mesma experiência. A ausência de Fenômeno em (16) e a polaridade negativa (nada mais) no Fenômeno em (17) engendram o argu- mento em defesa da velha, que, habilmente, permite inferir que o Fenômeno não mais experienciado são seus móveis, os quais, antes das visitas do médico, ela podia ver, e depois não mais, pois foram roubados, um a um, pelo médico (conforme exemplo 2). Essa aparente contradição dá ao texto um tom irônico, pois a velha está, sim, curada, como explicitado em (15); ocorre que não há mais o que ser visto, já que seus móveis não estão mais em sua casa.

Assim, a representação do médico como vítima é anulada, enquanto as re- presentações construídas inicialmente pelo narrador para ambos os personagens são, em partes, retomadas. A velha, embora continue, em tese, frágil e vulnerável (por ser velha), não mais é representada como doente e debilitada fisicamente (já que está curada), ao passo que sua representação como vítima de roubo é ratifica- da (agora nada mais posso ver). Pelo mesmo motivo, porém em posição oposta, o

médico tem sua representação como criminoso confirmada (já que roubou, um a um, os móveis da casa da velha). Seu crime, ainda que tenha sido cometido frente a uma velha doente dos olhos, foi percebido, pois deixou pistas: a ausência dos móveis.

Ao final do texto, essas representações construídas para o médico e para seu crime são explicitadas e destacadas, como se verifica na Moral:

04 (19) Moral: Assim, os homens maus, por sua cobiça, se esquecem de não deixar pistas contra eles.

Os itens lexicais maus e cobiça indicam julgamentos de propriedade, revelando valores como maldade, ganância e corrupção. A circunstância por

sua cobiça tem um papel importante na representação dos homens maus: é o

que os motiva a experienciarem o processo mental cognitivo com polaridade negativa (se esquecem) cujo Fenômeno (não deixar pistas contra eles) os salva- guardaria de uma punição. Esse Fenômeno, na perspectiva da avaliatividade, atribui aos homens maus julgamentos por capacidade e tenacidade, represen- tando-os como descuidados e impetuosos.

Reportando-se ao contexto social em que supostamente Esopo te- nha vivido à provável época de produção dessa fábula, podemos relacionar as representações construídas no decorrer do texto à posição social dos po- derosos (os homens maus) que se aproveitavam dos escravos e desfavorecidos para adquirirem bens e poder (o que aparece, nessa fábula, simbolizado pelos

móveis da idosa). Conforme Sousa (2009), a exploração sofrida pelos escravos

e marginalizados socialmente, embora, por vezes, fosse encoberta, era conhe- cida pelos explorados, entre os quais Esopo se incluía. Mesmo que muitos escravos ocupassem posições de algum destaque, acrescenta o autor, eram sujeitos a duras punições, caso desagradassem a seus senhores, e não tinham praticamente nenhuma liberdade, nem mesmo de expressão. Além disso, en- quanto alguns tinham uma vida menos sofrida, destaca Sousa (2009), outros eram submetidos a severas condições de trabalho.

O fato de terem seu direito de expressão negado revela, justamente, a consciência dessa classe explorada e oprimida em relação aos desmandos e injustiças de que eram vítimas. Entretanto, caso ousassem se manifestar sobre sua condição e sobre a maldade praticada contra eles pelos poderosos ou mesmo criticar o próprio povo, seus argumentos e críticas poderiam ser revertidos contra si mesmos. Ao retratar a realidade por meio de fábulas, era possível criticá-la de maneira encoberta, fantástica, esquivando-se de puni- ções (FEDRO apud SOUSA, 2003), como habilmente fazia Esopo.

Análise da fábula “O escularápio”, de Millôr Fernandes

Millôr Fernandes iniciou sua carreira de escritor muito cedo. Já no início de 1938, com apenas 14 anos, começou a escrever para jornais e revis- tas. Grande parte de sua vida, dedicada à escrita, transcorreu em um período democrático, livre e relativamente pacífico, um pouco diferente do período e das condições sócio-históricas vivenciadas por Esopo. Em contrapartida, Fernandes também conviveu em um período conturbado e de repressão da história do Brasil: o da ditadura militar (1964-1985). Nesse período, confor- me Sousa (2009b), foram criados mecanismos de ação capazes de desarticu- lar qualquer manifestação oposicionista, dentre os quais estão a tortura, as prisões arbitrárias, a perseguição e o denuncismo. Além disso, reporta o au- tor, foi criada a Lei de Imprensa, que proibia expressamente toda e qualquer publicação de conteúdo que incitasse, de algum modo, a desordem social ou criticasse as autoridades instituídas. Nesse contexto, em 1973, durante o go- verno Médici (1969-1974), considerado o auge do sistema repressor ditato- rial, a obra “Fábulas Fabulosas” de Millôr Fernandes é reeditada e, dentre as fábulas que a compõem, está “O escularápio”.