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VI – INTELECTUAIS CORDIAIS

No documento A Escola do Recife e a sociologia no Brasil (páginas 196-200)

I – Ideologia e conhecimento

VI – INTELECTUAIS CORDIAIS

As idéias, na sociedade estamental transformam-se em propriedade; e o ataque às idéias transforma-se em ataque pessoal. (VEIGA, 1993, p.16)

As marcas da estrutura estamental não operam apenas na formação de determinadas explicações existencialmente condicionadas ou na sugestão condescendente de determinados temas os alvos. Elas atuam na configuração emotiva e sentimental das disputas e debates sobre determinadas idéias e posições.

O homem cordial sugerido e construído como tipo ideal para podermos pensar alguns aspectos dos parâmetros subjetivos das ações e relações sociais na sociedade brasileira, implica a percepção dos traços característicos do temperamento do brasileiro. Temperamento esse formado nos quadros de uma estrutura familiar marcada por “relações de simpatia”, de afinidade e pessoalidade que dificultavam a sua incorporação normal a outros grupos. Conforme Antonio Candido (2000, p.938) foi por essas razões que não achavam agradáveis às relações impessoais típicas da dominação racional-legal, procurando reduzi-las aos ritmos e tempos dos padrões pessoal e afetivo. Onde pesa a família tradicional, não emerge a sociedade urbana e moderna. O homem cordial não pressupõe bondade, mas somente o predomínio do comportamento de aparência afetiva. O homem cordial é visceralmente inadequado às relações impessoais que decorrem da posição e da função do indivíduo, e não da sua marca pessoal e familiar, das afinidades nascidas na intimidade dos grupos primários.

Desse homem cordial decorre uma mentalidade cordial. Essa mentalidade, ou estilo, tem como característica fundamental, a satisfação com o saber aparente, como um fim em si mesmo, sem alvo concreto, tornando-se meros fatores de prestígio. Outro aspecto característico é o pendor para rituais marcados pelo exibicionismo, a improvisação, por formas impressionantes e sem apego as suas aplicações.

Até que ponto o estamento modelou a reflexão sociológica da Escola do Recife no século XIX? Essa é a pergunta que terminaremos de responder neste capitulo, respondendo a outra pergunta, bem correlata: qual o tipo de intelectual que se desenvolve nos espaços intelectuais estamentais? Qual a marca da pessoalidade e do clientelismo no processo de ideação? Uma das proposições iniciais que chegamos sobre a relação entre estamento e ideação sociológica é que ele delimitou o tempo e a perspectiva de mudança através da impregnação do conceito de evolução. A questão

agora é como o age o intelectual estamental. Se o seu pensamento sociológico é fatalista, comedido e ensaísta, sua atuação é passional, agressiva e universalizante. Ou seja, sai à briga com todos e se acha portador da verdade. A própria inexistência de uma instancia democrática e cientifica para corroborar as opiniões fazia com que o barulho, as pelejas, e o cansaço fossem por vezes, os elementos definidores de uma contenda intelectual.

Gláucio Veiga (1989, p.16), o mais sensível estudioso da FDR e de suas idéias, percebera lucidamente que as idéias, na sociedade estamental transformam-se em propriedade; e o ataque às idéias transformava-se imediatamente em ataque pessoal. Não estava em jogo a validade do argumento, mas a delimitação do espacao de cada sujeito dentro de certo contexto. Os desaforos da polêmica são limites significativos e reluzentes dos espaços estamentais. E as grandes polêmicas constantemente travadas naquele momento, são duelos de espaços estamentais contra espaços não estamentais ou espaços das classes da emergente sociedade burguesa.

A polêmica, a intriga, a peleja, a disputa e toda a sorte de críticas a pessoa e as suas idéias que marcavam a posição dentro do universo intelectual, não são apenas confrontos e choques de idéias e pensamentos abstratos, porém, o mais escancarado processo de legítima defesa, na manutenção e garantia de privilégios e “espaços” ameaçados dentro daquela ordem estamental em decomposição107.

Gláucio Veiga (1988) observara esse ímpeto belicoso dos intelectuais brasileiros ao constatar que na FDR no período de 1860 que os acadêmicos se valiam

107 A polêmica era fato comum e constante no campo intelectual da época [...] e nem sempre giravam em torno de idéias novas ou motivações culturais, literárias ou filosóficas. Elas explodiam pelos mais diversos e surpreendentes motivos, os quais, no decorrer dos debates, tornavam-se rigorosamente secundários. Cf. Aguiar, 2000, p.321.

de jornais quer para ataques pessoais aos mestres – o que era freqüente – que para discordâncias doutrinárias, o que era raro.

Um interessante trabalho sobre o universo das polêmicas literárias no século XIX é o de Roberto Ventura (1991, p.13), denominado Estilo Tropical. A questão que orientou seu livro foi o entendimento das polêmicas na imprensa brasileira naquele momento e a sua importância, para a crítica literária e para o pensamento social brasileiro. Conforme ele, as polêmicas eram os instrumentos que os letrados utilizavam na luta por suas idéias e por seus grupos, sobrevivência ou morte na cena

da literatura e do jornalismo. Época de escritores combativos, de polemistas irados, de bacharéis em luta.

Em comum acordo com Roberto Ventura (id. p.77-78) a nível pessoal e baixo das polêmicas naquele momento, revelam muito do caráter personalista da intelectualidade brasileiro do final do século XIX, que levava para o plano pessoal o debate literário e cultural. Conforme Sérgio Buarque de Holanda (2000, p.1059) no vício do bacharelismo ostenta-se também nossa tendência para exaltar acima de tudo a personalidade individual como valor próprio, superior as contingências. Segundo Sylvio Rabello (1967, p.12)

O debate sobre as bíblias suspeitas de vícios do protestantismo desenrolava- se dentro da atmosfera liberal do Recife. Nele, as classes mais cultas se separavam pela política, por um partidarismo cuja fronteira seguia menos a linha ideológica de um sistema do que os sulcos de velhos ressentimentos – velhas indisposições entre os senhores de terra, entre famílias socialmente bem situadas, que se revezavam nos postos do governo.

Fazia parte do processo de auferir de idéias válidas, as polêmicas. Não raro era ela a forma de se adquirir prestígio e capital. Era incomum que um homem de letras ou mesmo um homem público que tenha feito parte da nossa história intelectual, que não houvesse experimentado a vivência belicosa e truculenta da polêmica. A

compreensão da quantidade exacerbada desses rituais manifestos em formas de críticas, que por sua vez assumem a feição de charges, artigos e até livros, era a ânsia de obtenção de uma situação de reconhecimento dentro deste campo intelectual.

No estudo de Ronaldo Conde Aguiar (2000, p.321) sobre Manoel Bomfim, o instituto da crítica, da polêmica e o personagem Silvio Romero, tem lugar de destaque. Os desafios e as contendas eram marcados pela necessidade de uma vitória contundente sobre o adversário.

Coisas como ética e discussão no plano restrito das idéias passavam de frescura naquela época de polemistas iracundos e de busca desenfreada de “poder intelectual”. Silvio Romero tornou-se, sem dúvida, um polemista requintado, que utilizava no mister todas as armas dó seu arsenal, que não eram poucas — e muito menos brandas. Tudo servia, da injúria à intolerância e, no caso específico do crítico de Lagarto, ao “elogio irrestrito de Tobias Barreto, em detrimento de autores de maior importância, como Castro Alves e Machado de Assis”.

Respondendo ao inquérito elaborado por João do Rio (1994, p.54), Félix Pacheco afirma que

[...] quem deseja vencer, deverá começar demolindo, porque, no fim de contas, só essa fúria iconoclasta pode ter a virtude de arrombar a porta e facilitar a entrada. Fora disso, o que resta é apenas a docilidade passiva, o respeito aos medalhões, a subserviência miserável e ignóbil — elemento seguro e infalível para a subida rápida. Imaginem o atroz dilema! — Devora ou és devorado.

Segundo Machado Neto (1973, p.136):

A fisiologia dessas lutas era marcada pela utilização de um arsenal: elogios e ataques eram as armas desses competidores da pena. Polêmicas, os campos de batalha em que a vasta cópia de metáforas bélicas eram utilizadas. E como no regime cumulativo da guerra e do comércio também governa esse ambiente das letras, proteções aos do nosso grupo e perseguições aos integrantes dos comitatus adversos são sempre as táticas mais utilizadas.

Um Medeiros e Albuquerque, um Silvio Romero, um Carlos Laet eram os campeões da polêmica, na qual deixaram nomes e admiradores. Tipos psicológicos aguerridos, eles sabiam tirar o necessário partido de sua natureza, conduzindo a agressividade de que eram dotados para os canais institucionais consentidos pela vida

No documento A Escola do Recife e a sociologia no Brasil (páginas 196-200)