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RUMO AO IMPÉRIO DO OUTRO: VIAGEM E PERCEPÇÃO

1.1. Ao Encontro do Outro Vitoriano: A Viagem

1.1.3. Viagem e Escrita

Quando pensamos em viagem não nos podemos ater apenas a uma noção de movimento ou a um acto conclusivo e acabado. A viagem também se realiza em textos escritos após a sua realização116. Afinal, a escrita da viagem é, tal como a realização

física da mesma, um modo de conhecimento como lembram Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux, segundo os quais: «A narrativa de viagem é resposta, passagem do desconhecido ao conhecido, [...] é testemunho de um determinado momento da história cultural»117, isto é, narrar a viagem é um acto cognitivo, como, aliás, Ramalho

já salientava no seu John Bull. Com efeito, um dos grandes vectores da actividade literária deste viajante foi, precisamente, o livro de viagens, no qual podia esboçar os «“programas de comportamento” dos países e dos homens»118. O que o autor nos diz

sobre relatos de viagem é, então, o seguinte:

Os livros de viagens, feitos de rigorosos inquéritos às civilizações estrangeiras, constituïrão então preciosos repositórios de factos observados, sugestão científica de outras tantas hipóteses sociológicas, as quais, depois de verificadas e de comparadas com hipóteses sugeridas por fenómenos análogos resultantes de outras observações, permitirão deduzir teorias que, por seu turno contraprovadas experimentalmente, levarão talvez ao conhecimento e à demonstração de algumas leis mais positivas e mais fecundas do que as que hoje se extraem da eloqüência tribunícia de uma e de outra casa do nosso parlamento (JB, p. 260).

Como se depreende, para Ramalho o livro de viagens é um compêndio científico. Nele procede-se à análise de um objecto, as «civilizações estrangeiras», que se sujeita a um método, o método empírico-dedutivo, através do qual se chega a uma teoria após se ultrapassarem fases de observação e experimentação. Por conseguinte, o escritor-viajante encarna o papel de cientista social, o formulador de «hipóteses sociológicas», que é, imanentemente, «a researcher, “sucking” intelligence from

115 Cf. «Bastão», in Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Op. cit., p. 117. 116 Maria Alzira Seixo, Op. cit., p. 13.

117 Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux, Op. cit., 1981, p. 37.

different geographical regions»119. Ademais, ao discernir sobre a importância dos

«livros de viagem», Ramalho Ortigão tentava atribuir um propósito à sua própria obra, ela também um relato de viagem, e, simultaneamente, definir o método que vai seguir. O seu objectivo era, sobretudo, intentar a compreensão do Outro saxónico, desvendá-lo e revelá-lo para que os seus compatriotas lusos o entendessem e, inclusivamente, pudessem aprender algo sobre si mesmos ao ler sobre os ingleses. Em suma, para Ramalho, o relato de viagens tinha uma função instrumental porque didáctica e científica. Charles Batten corrobora esta noção ao esclarecer que, já no século XVIII, «the travel account directed at the general reader [...] always aimed at blending pleasure with instruction»120, donde se infere, precisamente, que a narrativa de viagens tem a

intenção de propagar uma qualquer forma de conhecimento. Aliás, mesmo em tempos primordiais, o fascínio pela literatura de viagens centrava-se, exactamente, na descoberta de factos novos: «Facts [...] which promised an opening up and a reordering of the known world»121, isto é, a literatura de viagens efectiva processos cognitivos de

aprendizagem e informação. Por isso, quando, nos finais do século XVIII, o historiador inglês John Adams aconselhava os jovens a ler relatos de viagem tinha em mente o valor pedagógico deste tipo de literatura que alerta o espírito para a diferença entre culturas, forçando-o a procurar as razões que a expliquem122.

Ao escreverem sobre a Inglaterra finissecular, fruto de vivências impulsionadas por uma viagem, uma deslocação física no espaço, os quatro autores que estudamos inscrevem o seu discurso no âmbito lato da literatura de viagens - Oliveira Martins refere-se, precisamente, aos artigos sobre a Inglaterra que enviou ao Jornal do

Comércio como «as minhas cartas de viagem» (IH, p. 7) - porque visam traduzir para os leitores a realidade que o autor observa, tentando, assim, fazer a mediação entre o espaço conhecido e aquele que é desconhecido.

Todavia, afirmar que Eça de Queirós, Jaime Batalha Reis, Ramalho Ortigão e Oliveira Martins produziram narrativas de viagem quando deram à estampa os seus comentários e as suas visões da Inglaterra vitoriana não significa rotular cabalmente o

corpus em análise como literatura de viagens sem antes tecermos alguns comentários sobre a mesma, a qual não é, aliás, um género literário bem delimitado e estanque. Com

119 Charles L. Batten, Jr., Pleasurable Instruction. Form and Convention in Eighteenth-Century Travel

Literature, Berkely University of California Press, s. l., 1978, p. 7.

120 Ibidem, p. 25.

121 Jenny Mezciems, in Pillip Dodd (ed.), Op. cit., p. 1. 122 Cf. Percy G. Adams, Op. cit. (1980), p. 13.

efeito, este género literário levanta uma série de questões problemáticas que começam, precisamente, pela ausência de uma tipologia definitiva, cuja definição reuna a anuência de todos quantos se dediquem ao seu estudo123. Em rigor, literatura de viagens é uma blanket expression, se quisermos usar uma terminologia inglesa, que engloba uma enorme diversidade de registos escritos, entre os quais se incluem, a título exemplificativo: guias de viagem, itinerários, descrições de experiências vividas no estrangeiro, relatos de viagens por terra ou mar e até mapas. Estes vários registos podem ter a forma de simples notas e observações, diários, cartas124; podem ser em prosa ou

poesia e, por vezes, fazem parte de obras (auto)biográficas e/ou históricas125. Dentro

deste género, encontramos, ainda, textos que se reportam a viagens reais ou imaginárias, mas que, em qualquer dos casos, têm como denominador comum um carácter compósito que aglutina a Literatura, a História e/ou a Antropologia126. Aliás,

socorrendo-nos do raciocínio de Alison Blunt, reparamos que: «Travel writing seems to mediate “fact” and fiction, often seeming to transcend conventional distinctions between scientific and literary writing»127. Portanto, Ciência e literatura de viagens não

se equacionam antagonicamente, mas, inversamente, assumem uma certa complementaridade. E, claro, é impossível deixar de mencionar os relatos de peregrinações, viagens de exploração e expedições de colonização, os quais se assumem como três dos subgéneros mais populares deste tipo de literatura128. Em síntese, por

literatura de viagens entende-se «um conjunto de textos que à viagem foram buscar temas, motivos e formas»129. Desta feita, a identidade daquilo que se convencionou

designar genericamente por literatura de viagens assenta numa natureza imanentemente heterogénea que deixa espaço aberto para perspectivarmos os autores, vulgo os

123 Relativamente à controvérsia em redor da definição do género “literatura de viagens” e as

consequentes dificuldades que se impõem à academia, cf. Fernando Cristovão, in Fernando Cristovão (coord.), Op. cit. (1999), pp. 16-17.

124 Quando discerne acerca da tipologia da literatura de viagens, George Alao nota que pertencem a este

género as obras em cujos títulos se encontrem os vocábulos: carta, história, itinerário ou relação. Cf. George Alao, in Ana Margarida Falcão et al., Op. cit., p. 545. Assim, atendendo aos títulos «Cartas de Inglaterra» e A Inglaterra de Hoje. Cartas de Um Viajante, verifica-se, a priori, que estamos face a obras da literatura de viagens.

125 Cf. Zweder von Martels, «Introduction. The Eye and the Eye's Mind», in Zweder von Martels (ed.),

Travel Fact and Travel Fiction. Studies on Fiction, Literary Tradition, Scholarly Discovery, and Observation in Travel Writing, E. J. Brill, Leiden and New York, 1994, p. xi.

126 Cf. Fernando Cristovão, in Fernando Cristovão (coord.), Op. cit. (1999), p. 35.

127 Op. cit., p. 21. Jenny Mezciems partilha desta opinião ao constatar a existência de uma interdepedência

entre facto e ficção na narrativa de viagens. Cf. Jenny Mezciems, in Phillip Dodd (ed.), Op. cit., p. 2.

128 Cf. Percy G. Adams, Op. cit. (1983), pp. 60-61.

viajantes, que analisamos como produtores de obras a coberto deste género literário, até porque as mesmas contêm os elementos que o caracterizam.

Quando decidem passar à escrita as impressões da sua viagem à Velha Albion, Eça de Queirós, Batalha Reis, Ramalho Ortigão e Oliveira Martins, inserem-se, enquanto autores de narrativas de viagem, numa nobre e antiquíssima linhagem de escritores-viajantes, cujos antecedentes remontam, por exemplo, na Antiguidade Clássica, a Pausânias e ao seu guia da Grécia130. Todavia, ainda que Álvaro Manuel

Machado e Daniel-Henri Pageaux balizem a literatura de viagens per se entre «as grandes descobertas, na alvorada desses chamados “tempos modernos”, e os grandes empreendimentos coloniais da segunda metade do século XIX»131, a narrativa de

viagens perde as suas origens nas eras mais longínquas. Sem querermos proceder a um historial deste género literário que, aliás, se encontra bastante desenvolvido na obra canónica de Percy G. Adams, Travel Literature and the Evolution of the Novel, interessa-nos, contudo, ressalvar que, antes da época dos Descobrimentos, mais especificamente na Idade Média, já os relatos dos grandes viajantes como Marco Polo, Guilherme de Rubrouck ou Ibn Batuta constituíam o modelo segundo o qual o imaginário ocidental prefigurava o Outro132, sendo, consequentemente, os

intermediários que realizavam a ponte entre a familiaridade do Velho Continente e a estranheza dos mundos além-fronteiras e que eram, ao mesmo tempo, as fontes de informação, ainda que amiúde erróneas e com visões assaz distorcidas, sobre os universos estrangeiros.

É, no entanto, com o alvor da época das grandes Descobertas marítimas que surge um redobrado interesse pela literatura de viagens produzida, agora, sobretudo, por navegadores e missionários que têm a importante função de, mediante o exotismo e a diferença dos novos mundos, ajudarem o homem ocidental a conhecer-se a si próprio133.

O auto-conhecimento é, com efeito, um dos fulcros sobre os quais assenta a literatura de viagens e um dos vectores aos quais os autores em análise não fogem nos relatos que nos legaram da Inglaterra vitoriana, pois ao abordarem facetas tão diversas daquela sociedade como a educação, a imprensa, o império ou a religião, estão a proceder à (re)descoberta do Portugal do qual se distanciaram. Eça de Queirós, por exemplo, sabia,

130 Cf. Percy G. Adams, Op. cit. (1983), p. 38. 131 Op. cit., p. 30.

132 Cf. Francis Affergan, Op. cit., p. 11-12.

133 Cf. Renel K. Wilson, Op. cit., p. 1. Apraz, ainda, salientar que, para o autor, a literatura de viagens

por experiência própria, que o afastamento e o estar imerso num mundo diverso do da sua pátria funcionavam como lentes para novas observações relativas ao seu país. Em carta a Ramalho, datada do Verão de 1873, aquando da sua estada consular em Havana, o escritor confessava: «Estar longe é um grande telescópio para as virtudes da terra onde se vestiu a primeira camisa»134, dando, por conseguinte, a entender que o fosso atlântico

que o separava de Portugal lhe permitia ver o país sob um prisma diferente e, até, mais favorável.

Esta busca da identidade, tal como é canalizada pela literatura de viagens, será sobremaneira enfatizada a partir do Romantismo. Álvaro Manuel Machado e Daniel- -Henri Pageaux observam que «a estética romântica e pós-romântica impõe novos centros de interesse e, simultaneamente, leva à transformação da linguagem narrativa [...] do viajante-escritor»135. Assim, agora, o relato de viagens é permeado por

elementos tais como a emoção e a confissão, às quais não são alheios o espírito crítico, o testemunho histórico e político e, inclusivamente, a hostilidade e a ironia136, o que,

aliás, se nota nas narrativas dos escritores-viajantes mais célebres do período: Goethe, Heine, Hugo, entre outros, e que se perpetuarão nos autores que analisamos. De facto, ao teorizar sobre a literatura de viagens, Sara Mills alerta para o facto de que «textual constraints on travel writing are constructed by certain regularities of discourse; that is, by the books which have already been written about other nations»137. E, neste caso,

nenhum dos autores em apreço é excepção.

Devido às longas estadas que viveram em Inglaterra, tanto Eça de Queirós como Jaime Batalha Reis puderam pronunciar-se, enquanto testemunhas presenciais, acerca de acontecimentos históricos e políticos que marcaram, indubitavelmente, a vida britânica do final do século XIX. Assim, importa recordar que Eça registou na colectânea «Os Ingleses no Egipto», redigida entre 27 de Setembro e 24 de Outubro de 1882, as movimentações levadas a cabo pela Grã-Bretanha no intuito de anexar o país do Nilo, sem se esquecer de focar pormenorizadamente as questões por detrás da interferência britânica nos assuntos do Quediva. O tom informado e apaixonado com que o autor de Os Maias escreveu estes artigos não deixa de surpreender os leitores hodiernos de tal forma que Maria Filomena Mónica considera que «a inteligência, a lucidez e a beleza de “Os Ingleses no Egipto” jamais foram excedidos», cognominando-

134 Op. cit. (1983, vol. 1), p. 74. 135 Op. cit., p. 34.

136 Cf. idem, ibidem. 137 Op. cit., p. 73.

-os, ainda, de «geniais»138. Seria também como testemunha, que tinha estado a par das

políticas e da carreira de Benjamin Disraeli, que Eça lavrou o obituário do Primeiro- -Ministro, dado à estampa das páginas da Gazeta de Notícias a 23 e 24 de Agosto de 1881, no qual não se absteve de dar a sua opinião pessoal, e, aliás, pouco abonatória, em relação àquele político139, como veremos mais adiante140.

Similarmente, Batalha Reis também assistiu, em primeira mão, a diversos acontecimentos marcantes da história britânica. Estando em Londres aquando da celebração do primeiro centenário do The Times, a 2 de Janeiro de 1888, não deixou de elaborar um artigo dedicado ao periódico que seria publicado a 10 do mesmo mês. E, não podemos olvidar que o cônsul Batalha Reis também presenciou atentamente o desenrolar noticioso e toda a agitação pública que se gerou em torno dos crimes hediondos de Jack, o Estripador, acerca dos quais também publicaria a 21 de Setembro de 1888.

Se Batalha Reis e Eça de Queirós estão em posição privilegiada para relatarem acontecimentos historico-políticos de fulcral pertinência devido a terem residido em solo inglês durante vários anos, razão pela qual os escolhemos para ilustrar a inclusão do testemunho histórico no relato de viagens, salientaremos Ramalho Ortigão e Oliveira Martins no intuito de demonstrar que nas suas narrativas de viagem se procede à inserção do elemento confessional ou emotivo, características indissociáveis da literatura de viagens.

Nas breves semanas que passou em Inglaterra, Ramalho foi convidado pelo seu amigo Eça a disfrutar de um Domingo na sua companhia. Descrevendo-nos a natureza dos Domingos ingleses, o autor fez, ainda, questão de tecer alguns apartes com os quais mostra aos seus leitores como tinha realmente vivido aquele dia com o amigo português e sem quaisquer pruridos em admitir que exagerara no Borgonha ao jantar. Com o humor que lhe é característico, Ramalho conta-nos como:

Três vezes, armados da lanterna do sicário, descemos da casa de jantar à adega, Queirós adiante, eu atrás [...]; três vezes subimos da adega à casa de jantar, Queirós atrás, eu adiante [...].

Recolhido ao leito por volta da madrugada, e entrando nessa grave ordem de cogitações que de ordinário assaltam o espírito do homem enconchegado numa cama à hora de soprar à vela, [...] e fazendo

138 Maria Filomena Mónica, Op. cit. (2003), p. 28.

139 Na verdade, Eça encontrava-se de licença em Lisboa no dia em que Disraeli morreu - 19 de Maio -, cf.

idem, Op. cit. (2001), p. 185. No entanto, não é essa breve ausência que incapacita Eça de ter testemunhado durante vários anos as acções de Disraeli e, portanto, sobre ele tecer um obituário.

um cálculo mental por meio da sábia regra da multiplicação ao número de vezes que vim da adega e ao número de pontos de discussão engarrafados que de cada vez trouxe comigo para tratar na casa de jantar, [...] cheguei à conclusão de minha já não breve e não de todo abstemia existência, eu engorgitara tanto Bourgogne como nas diversas assentadas dêsse único e inolvidável passwine!

Depois do quê, apaguei a luz e me benzi três vezes de admiração por tanta sêde, sòmente explicável por obra do demónio (JB, pp. 234-235).

Se bem que longa, a transcrição acima citada reflecte o estado de espírito de um viajante em “terra alheia” que, à hora de deitar, olha retrospectivamente para o seu dia e confessa ter bebido talvez um pouco demais.

Em A Inglaterra de Hoje, Oliveira Martins também não é adverso a revelar aos leitores os seus estados de alma, expondo-nos, inclusivamente, o mundo interior dos seus sonhos em que, por exemplo e como veremos, confunde Londres com Niníve141.

Porém, o autor também não esconde as emoções que o perpassam à medida que vai mergulhando na descoberta da grande capital, como, por exemplo, quando visita o

British Museum que muito o impressiona. Revelando os seus pensamentos, Martins afirma:

Vou já penitenciar-me das heresias que talvez proferisse acerca da pintura inglesa, proclamando bem alto a minha admiração entusiástica perante esse grandioso monumento que se chama o British

Museum.

Não há de certo no mundo repositório maior, nem mais opulento, dos instrumentos e conquistas do saber histórico. Se ao entrar no ádito monumental, [...] já ia compenetrado pela fama universal do museu britânico, ao sair vinha atónito (IH, p. 103).

Esta citação, fortemente adjectivada e hiperbólica permite-nos perceber os sentimentos que iam no coração e na mente do homem, o historiador, que escreveu As

Raças Humanas e a Civilização Primitiva (1881) ou a História da República Romana (1885). Similarmente, a expressão da estupefacção é também bastante característica dos relatos de viagem quando «a novidade, a grandeza ou a beleza das paisagens e gentes parecem não poder ser avaliadas, pelo menos num primeiro momento, por qualquer outra preocupação senão a de contemplar, presenciar e anotar»142. O escritor-viajante

141 Cf. Parte II, 2.1.1.

142 João David Pinto Correia, «Deslumbramento, Horror e Fantasia. O Olhar Ingénuo na Literatura de

Viagens», in Fernando Cristovão (coord.), O Olhar do Viajante. Dos Navegadores aos Exploradores, Almedina, Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa da Universidade de Lisboa, Coimbra, 2003, pp. 17-18.

denota a ingenuidade do seu olhar através de um deslumbramento indicativo de que não estava «preparado para tamanhas surpresas»143.

Na esteira das narrativas de viagem dos séculos XVIII e XIX, ao incluírem nos seus relatos sobre a Inglaterra finissecular os elementos de que Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux nos davam conta, observamos que os autores que analisamos não deixam de dar o testemunho dos acontecimentos que presenciam no país estrangeiro nem, tão pouco, se inibem de revelar as suas emoções mais pessoais enquanto estanciam longe da pátria, imprimindo, dessa feita, um cunho pessoal e inimitável aos escritos de viagem que redigem. Esta individualização de sensações e sentimentos leva, também, a que cada autor tenha, e projecte, uma imagem diferente da Inglaterra e que escreva sobre os assuntos que mais caros lhe são. De facto, cada autor cria a “sua” imagem do Outro estrangeiro e, para tal, escolhe um determinado número de elementos que melhor espelhem essa mesma imagem pessoal144. Como, novamente, se estilhaça a

homogeneidade do retrato que Eça, Batalha, Ramalho e Martins fotografam na Inglaterra vitoriana, importa, ainda, salvaguardar o grau de veracidade do mesmo. Se, como vimos, o viajante frisa que aquilo que viu é que é verdadeiro, o mesmo sucede com o escritor-viajante.

Com efeito, como constata Percy G. Adams, «travel writers have always been condemned as embellishers of the truth or as plain liars»145. Este facto, como lembra

Charles Batten, é, aliás, uma das problemáticas que obstam a uma categorização uniforme e cabal da literatura de viagens. Se, como também observámos, há viagens verídicas e outras imaginárias, também existe, consequentemente, literatura de viagens verídicas e literatura subordinada a viagens imaginárias. Assim, o que é tido por real por certos leitores pode ser apreendido como ficção por outros, o que, em última instância, leva a que: «Such distinctions based purely on subject matter depend ultimately upon the reader's ability to discern truth from cunning fiction»146. Além disto, e a propósito

da dificuldade em destrinçar a verdade da fabulação, não podemos ignorar que a literatura de viagens não tem quaisquer compromissos bem definidos para com uma ou a outra. Portanto, no que toca este género literário, as charneiras entre o factual e o ficcional são muito esfumadas. Aliás, Percy G. Adams também justifica que, por vezes,

143 Idem, ibidem, pp. 17 e 25.

144 A fim de produzir a sua imagem do Outro, o autor «n’a bien évidemment pas copié le réel: il a

sélectionné un certain nombre de traits jugés pertinents pour “sa” représentation de l’étranger», Daniel-