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RUMO AO IMPÉRIO DO OUTRO: VIAGEM E PERCEPÇÃO

1.1. Ao Encontro do Outro Vitoriano: A Viagem

1.1.1. Viagem e Viajantes

Viajar, partir numa aventura rumo a novas paragens, eis, muito sinteticamente, o que fizeram estes quatro homens da tão famosa Geração de 70 quando aviaram as malas e atravessaram a Mancha para desembarcar na pátria anglo-saxónica, o reino insular e envolto em brumas dos ingleses vitorianos. Seduzidos por um chamamento ao qual não puderam, ou não quiseram, resistir porque, acima de tudo, as razões que levam à viagem assentam alicerces no desejo1, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, Oliveira Martins e

Jaime Batalha Reis deixar-se-iam conduzir à Velha Albion.

Aí, durante as suas curtas estadas ou longos períodos de residência, teriam oportunidade de observar, presencialmente, um pouco da fisionomia do povo inglês, a qual, como sabemos, conheciam de antemão através das leituras de Taine, Stendhal e, inclusivamente, dos romances de Charles Dickens, a quem os autores, inclusivamente, aludem, entre outros. De facto, quando nos documentamos sobre determinados locais, como o fizeram os autores ao lerem o que os seus contemporâneos e antecessores haviam escrito sobre a Inglaterra, o que acontece é que «the places become familiar, even if never visited, and excite us as desirable destinations». No entanto, «a visit is still necessary because […] the representation can never be as big as the real thing. […] Authority can only be achieved if one has actually been in its physical presence»2. Desta

feita, os autores de que nos ocupamos não escondem a sua familiaridade com a Inglaterra. Contudo, a realização efectiva da viagem permite-lhes assumir uma posição de autoridade face ao tema que, de outro modo, não teriam.

De facto, demonstrando o seu endividamento às leituras que realizou anteriormente à sua viagem para lá da Mancha, em A Inglaterra de Hoje, Oliveira

1 Cf. M. A. Michael, «What is Travel? An Introduction», in M. A. Michael (ed.), Op. cit., p. 3. Aqui, o

autor, ao avançar os motivos que impelem o viajante a partir, conclui que «behind his travels there is above all longing».

2 Claudia Bell e John Lyall, «The Accelerated Sublime. Thrill-Seeking Adventure Heroes in the

Martins não mostra qualquer tipo de inibições quanto a citar Stendhal directamente quando quer comprovar certos pontos de vista. Para além disto, o relato martiniano segue de perto o alinhamento temático que Taine apresentou em Notes sur l'Angleterre, isto é, Oliveira Martins organizou as suas observações de acordo com uma sequência de capítulos em que cada um analisa um determinado aspecto da sociedade britânica. Se os capítulos da obra tainiana se intitulam, por exemplo, «Les Dehors», «Les Types», «Moeurs et intérieurs», «L'Éducation», «La Société et le gouvernement» ou «De l'esprit anglais», também em A Inglaterra de Hoje se lêem títulos como «Southampton. A Paisagem», «Os Tipos», «O Interior de um Gentleman» ou «A Política. Westminster e a

Law Court», os quais, como se constata, mantêm certos paralelismos com aqueles propostos por Taine. Similarmente, John Bull, e apesar de não haver coincidências com o mestre francês no tocante à nomenclatura das diversas secções, também obedece a uma compartimentação de certo modo estanque que aborda tópicos bem definidos. Assim, no capítulo VI, «A Miséria em Londres. Gynx’s Baby, seu Nascimento e Demais Desastres. O Tamisa e o Nevoeiro. Um Filho de Ginx Através da Lama de Piccadilly. Manhã de Violetas. Cabs, Mail-Coachs e Overcoats», o autor debruça-se sobre a miséria das classes indigentes, enquanto que analisa o tema religioso no capítulo XII, «A Divindade dos Noblemen e a do Common People. As Várias Seitas Religiosas.

The Salvation Army». Por seu turno, e embora os seus artigos sobre a Inglaterra agora analisados surjam em colunas periódicas para jornais, as quais, forçosamente, têm mais a ver com os assuntos do momento do que com uma inventariação temática bem delineada, Eça e Batalha também tentam seguir este critério de delimitação de assuntos a abordar. Nas «Crónicas de Londres», com efeito, Eça tenta obedecer a um esquema temático quadripartido entre as notícias de política, de sociedade, o noticiário literário e teatral e a secção das novidades ou curiosidades, tópicos estes «apresentados de forma independente, mas sem subtítulo»3. A divisão deste plano directivo não era, no entanto,

repartida uniformemente entre os diferentes assuntos e a análise política acaba por ser o tema predominante, ao passo que, por exemplo, as novidades literárias são muito escassas. Em «Cartas de Inglaterra», por sua vez, Eça embrenha-se na «exploração de um único facto ou feição da realidade»4. E, por isso, há «Cartas» que se prendem com

aspectos da vida e da sociedade inglesas, as quais que se intitulam «O Inverno em Londres», «O Natal – a “Literatura de Natal” para Crianças», «Uma Partida Feita ao

3 Elza Miné, Op. cit. (1986), p. 51. 4 Idem, ibidem, p. 68.

Times» e «Acerca dos Livros». Identicamente, existem também «Cartas» dedicadas à crítica política, como são caso paradigmático, «A Irlanda e a Liga Agrária» ou a extensa e famosa série «Os Ingleses no Egipto»5. Quanto a Jaime Batalha Reis, talvez o menos

criterioso dos autores em apreço no respeitante à organização temática da sua Revista

Inglesa, nota-se que há, pelo menos, a intenção de restringir cada uma das «Revistas» a determinados tópicos. Assim, por exemplo, na sua prestação de 10 de Janeiro de 1888, «O Primeiro Centenário do Times. O Mais Característico dos Produtos Ingleses. O

Times em Inglaterra e o Times nos países latinos. O Fígaro, o Correio da Manhã e o

Times. O Prudhomme e o Chauvin de Inglaterra. Muita Glória por Preços Cómodos. Os Correspondentes do Times são os Commi-Voyageurs do Jornalismo. Mr. X Amigo Íntimo de Algumas Imperatrizes e Rainhas: Sua Intimidade com El-Rei de Portugal, Sua Acção nas Guerras do Oriente e nas Finanças da Península Ibérica», o assunto mais explorado é, justamente, a imprensa.

Já vimos que o móbil que conduz cada um dos quatro autores à Inglaterra é de índole diversa: se Eça e Batalha são diplomatas de carreira a soldo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Ramalho vai à Velha Albion a passeio e Oliveira Martins busca, na sua viagem, um certo afastamento de desencantos políticos sofridos com a sua meteórica passagem pelas cadeiras do Governo. Porém, não é por empreenderem uma viagem que os poderemos, a priori, rotular liminarmente de viajantes, sem antes tecermos algumas breves considerações em torno do que é, realmente, um viajante, mormente nos finais de Oitocentos. Até porque o próprio conceito de viagem abrange diversas noções, nem sempre entendidas como complementares, entre as quais se destacam «a visão de que a viagem é uma forma de aventura pessoal que encerra a promessa de uma descoberta do Eu através do Outro […] e a viagem turística»6, esta

última comummente associada ao desvirtuar da realização da viagem, mas que, como esclareceremos, não deve ser entendida no espartilho dessa óptica pejorativa.

Com efeito, na época em que os autores em apreço escrevem sobre a Inglaterra que visitam, a viagem atravessa uma fase de maior democratização e aceleramento e longe ficavam, cada vez mais, os dias dos Grands Touristes setecentistas abastados, homens e, por vezes, mulheres7 que, a passo vagaroso e frequentemente acompanhados

5 De acordo com os títulos constantes da edição crítica por nós analisada.

6 Maria Teresa Pinto Coelho, in Maria Leonor Machado de Sousa (dir.), Op. cit., p. 89.

7 «Throughout the eighteenth century, grand tourists were almost exclusively male and predominantly

por tutores8, viajavam por prazer e que, no intuito primordial de se cultivarem, «went to

the civilized nations of Europe or the seaboard areas of North America and spent their time in cities, visiting the symbols of progress and conversing with cultured people in clubs and salons»9. A partir de meados do século XVIII, o Grand Tour tornara-se,

então, num «imperativo cultural de que nenhum homem de letras, intelectual ou artista pode prescindir»10 e é, portanto, todo um escol letrado, de que Goethe11 é um

paradigma, que viaja para se educar e alargar horizontes.

Na centúria de Oitocentos, o panorama muda substancialmente e a «deslocação ao estrangeiro [...] acaba por se alargar a outros círculos sociais devido, em grande parte, à melhoria das condições de vida e ao desenvolvimento dos meios de comunicação»12. Em consequência, o viajante do Grand Tour cede lugar ao turista que

realiza a viagem na vertigem da velocidade proporcionada pelo comboio e pelo barco a vapor. Oliveira Martins, na verdade, é um caso do viajante que se encontra enleado na rapidez inerente à viagem oitocentista, a qual não deixa tempo para a apreciação demorada da paisagem. Desembarcando do vapor em Southampton, o autor é imediatamente transportado a Londres através da via-férrea. Meio aturdido pela celeridade dos meios de transporte, Oliveira Martins traça, com uma pincelada apenas, a sua curta passagem pela famosa cidade portuária inglesa:

Atracámos ao cais [...] e saltámos em terra no telheiro da alfândega, ao longo do qual, do lado oposto, se prolongava o comboio pronto a levar-nos a Londres. Revistaram-se as malas, no meio duma sofrível confusão [...]; entrámos nas carruagens, e o comboio partiu rodando. Em breves minutos tínhamos galgado o massiço da cidade; agora atravessando de nível uma rua, logo passando em túnel debaixo de outra, depois em viaduto à altura dos telhados das casas: numa confusão de sinais e num emaranhamento de fios, com o negrume e a agitação próprios da proximidade das estações, principalmente em Inglaterra (IH, pp. 11-12).

Lynne Withey, Grand Tours and Cook's Tours. A History of Leisure Travel, 1750 to 1915, Aurum Press, London, 1997, p. 6.

8 Uma vez que o Grand Tour tinha um propósito iminentemente educacional, o viajante fazia-se

acompanhar por um séquito que, além de criados, contava com um tutor. Cf. idem, ibidem, p. 5.

9 Percy G. Adams, Op. cit., p. 8.

10 João Barrento, «Introdução», in Johann Wolfgang von Goethe, Viagem a Itália, trad., prefácio e notas

de João Barrento, Relógio d'Água Editores, Lisboa, 2001, p. iii.

11 Nos anos de 1786 e 1787, o escritor e intelectual alemão Goethe (1749-1832) empreende uma viagem a

Itália, país que simbolizava o «objectivo último e incontornável do grand tour europeu», idem, ibidem. A rememoração desse seu périplo, Italienische Reise (1816-1817), não só dá conta da vi(r)agem pessoal do autor, como cria um certo mito da Itália que se perpetuaria às gerações subsequentes de grands touristes.

Como constatamos, não há tempos mortos propícios à reflexão desde que se desembarca do vapor até que se entra no comboio. Tudo é rápido e fugaz como, aliás, indicam verbos da natureza de «rodar» e «galgar». E o próprio encurtar das distâncias, possível graças à velocidade, leva a que Martins confesse que: «De Southampton até Londres a estrada parece uma rua quase. Passa-se ao lado de vilas e aldeias, Bishopstoke, Winchester, Alresford, Alton, Bentley, Farnham, Ash, Weybridge, Esher» (ibidem, p. 12). A pressa do percurso impede a observação demorada, pelo que, somente “se passa ao lado” da paisagem, a qual deixa de ser apreciada para ser consumida. No entanto, a leitura atenta das primeiras impressões de Oliveira Martins na pátria saxónica revela mais pormenores que nos permitem verificar até que ponto a era do Grand

Touriste, o viajante por excelência, deu lugar à hegemonia do turista, vulgo, consumidor de locais13.

Quando Claudia Bell e John Lyall comentam que o comboio revolucionou a viagem, porque a acelerou, revelam, igualmente, que este meio de locomoção criou uma nova espacialidade baseada na horizontalidade. Com o advento do comboio, «for the first time in human history, travellers could move faster than a galloping horse [...], the steam engine imposing a horizontal quality on the landscape», pelo que «the faster we travel the flatter the earth looks: overpasses and cloverleaf interchanges are almost two dimensional»14. Esta horizontalidade bi-dimensional é também ilustrada por Oliveira

Martins ao notar que o caminho desde Southampton a Londres se assemelha a uma rua, portanto, uma distância curta em que quase se vislumbra o seu fim e na qual os elementos paisagísticos, neste caso cidades e aldeias, aparecem desprovidos de contornos nítidos e apenas como meras sucessões de nomes. As feições paisagísticas que se percebem realmente são: os túneis, os viadutos, os sinais de tráfego e o emaranhado de cabos, marcas distintivas de modernidade que tornam possível a deslocação por caminho-de-ferro e às quais Claudia Bell e John Lyall chamam «the built sublime», o qual entra em cena no século XIX com a expansão das vias férreas15.

Assim, da paisagem envolvente que se desenrola para lá da janela da sua carruagem, Oliveira Martins tem apenas impressões fugazes. Contudo, apercebe-se das construções e apetrechos mecânicos que permitem aos comboios circular. E, simultaneamente,

13 Com efeito, Simon Coleman e Mike Crang esclarecem que «those who are most voraciously

consuming other people's worlds are the modern tourists», in Simon Coleman e Mike Crang (eds.), Op.

cit., p. 8.

14 Claudia Bell e John Lyall, in idem, ibidem, p. 28. 15 Idem, ibidem, p. 22.

também nota as próprias estações ferroviárias, as quais, no século XIX, e em consequência do novo modo de viajar impulsionado pelo comboio, se tornam «também espaços inseparáveis da experiência da viagem e alvo de admiração»16 do viajante.

Portanto, neste aspecto, Martins é um viajante moderno que, contrariamente ao Grand

Touriste, não tem tempo para fruir plenamente a viagem: o comboio roubou-lhe esse prazer e esse tempo e, por isso, sob esta perspectiva, não pode ser considerado um viajante na acepção mais clássica do termo. No entanto, ao observar todos os elementos que possibilitam a velocidade e a mobilidade dos comboios, Martins oferece-nos um outro tipo de visão. Uma vez que «a gratificação estética da paisagem emoldurada pela janela do comboio é secundarizada pelos sinais da civilização humana […], a vista surge enriquecida pela justaposição da natureza e da indústria»17. Nesta óptica, Martins

torna-se num verdadeiro viajante que, desde o início da viagem, deixa transparecer que chegou a um país industrializado, ou seja, a caracterização do país estrangeiro começa a ser delineada mal se chega ao destino. E, neste caso, o comboio permite a observação da industrialização, algo que se quer apreender, e a velocidade não roubou o tempo para a percepção da paisagem porque não impediu que se observasse uma das características mais impressionantes da Inglaterra vitoriana.

Eça, Ramalho e Batalha Reis, por seu turno, também podem ser caracterizados como viajantes que divergem do paradigma do Grand Touriste porque ao omitirem a descrição das suas chegadas à Inglaterra e, mais especificamente, a Londres, fazem-no, provavelmente porque a rapidez desse processo de deslocação inviabiliza comentários profundos de imagens que não ficam bem gravadas na mente. A fugacidade leva a que a paisagem se esfume até à insubstancialidade por entre o fumo, o vapor e a própria velocidade do comboio18. Porém, não podemos apenas abarcar uma perspectiva redutora

dos modernos meios de transporte como entidades que, encurtando distâncias, obstam à fruição da viagem e à contemplação da paisagem. Na verdade, o meio de transporte veloz tem uma outra vertente porque «representa a possibilidade […] de uma locomoção rápida (que designa o esforço de compensação, o anseio de ganhar espaço

perdendo menos tempo), e assim manifesta o intento de compensar o pathos pela

praxis»19. Nas suas curtas estadas em Inglaterra, é a velocidade do comboio que permite

16 Filipa Lowndes Vicente, Op. cit., p. 68. 17 Idem, ibidem, p. 73.

18 Claudia Bell e John Lyall, in Simon Coleman e Mike Crang (eds.), Op. cit., p. 28.

19 Maria Alzira Seixo, Poéticas da Viagem na Literatura, Edições Cosmos, Lisboa, 1998, p. 20. Itálico da

a Ramalho sair de Londres, deslocar-se ao campo e ir visitar o amigo Eça e, no caso de Martins, é também o comboio que possibilita as inúmeras deambulações do autor pelos arredores da capital, sobre os quais escreverá posteriormente. Nestes casos, tanto Ramalho como Martins «ganharam espaço» dentro da viagem.

Por outro lado, não é só a rapidez dos modernos meios de transporte que enferma uma noção mais canónica do conceito de viagem. O conforto proporcionado pelo desenvolvimento da indústria turística também tem sido apontado como algo que desvirtua a realização da viagem. O verdadeiro viajante, com efeito, não se incomoda com os escolhos da viagem porque «true travel means living among the people mostly on the cheap, [...] modest inns and certainly never at the international luxury hotels»20.

Ironicamente, segundo esta perspectiva, Oliveira Martins, mais uma vez, não se pode assumir como um viajante no sentido mais absoluto do termo pois escolhe justamente o Savoy, «fronteiro à agulha de Cleópatra» (ibidem, p. 28), e todo o seu esplendor e conforto, para se alojar durante a sua estada em Londres. De facto, este hotel, tal como descrito pela pena martiniana, é a antítese total da pensão modesta e à noite o luxo é, ainda, mais ostensivo:

À noite […] ceava-se no salão profundamente iluminado a luz eléctrica, entre palmeiras espadanando fitas para os tectos de estuques polidos, contra as paredes e pilastras vestidas até meia altura por lambris de nogueira esculpida, e dali para cima por guadamecins incrustados a ouro. Nas pequenas mesas de quatro pessoas, por entre as quais os criados gravemente perpassavam, havia dois pares: os homens em toilette de noite, as senhoras decotadas, com brilhantes. Bebia-se Champagne (ibidem, p. 71).

Identicamente, Ramalho também prefere viajar usufruindo de certos luxos, como, por exemplo, jantar no Royal (JB, p. 108) ou no Criterion (ibidem, p. 102), onde se delicia com «ox-tail», «mock-turtle soup» ou «rump-steak» (ibidem), ou mesmo jantar num dos grandes restaurantes em Holborn ou St. James «ao som duma orquestra» (ibidem, p. 104). Aliás, no que toca a comer bem durante a sua jornada, Ramalho não deixa créditos por mãos alheias. Ao acordar, num dos primeiros dias da sua estada londrina, o autor revela as suas expectativas para o dia que se inicia, as quais incluem, precisamente, os prazeres da boa mesa. Frente ao espelho revela ansioso: «Aqui se está barbeando e aformoseando […] quem daqui a nada se há-de achar em Kensington

diante de umas ostrinhas frescas de Ostende e de meia garrafa de um vinhinho branco que certa pessoa conhece mas cujo nome se não diz» (ibidem, p. 128).

Viajando em grande estilo, ambos os autores podem, de facto, ser percebidos como turistas e não como viajantes clássicos. Ramalho, inclusivamente, considera-se um «simples touriste» (ibidem, p. 268). E, em rigor, o próprio Oliveira Martins admite que se deslocou à Inglaterra a passeio. São, com efeito, as suas palavras que nos confirmam essa disposição quando confidencia: «Pelo que me diz pessoalmente respeito, confesso que aprendi muito [...] nesta excursão agradável» (IH, p. 10) ou, ainda, «A simples verdade é que fui a Inglaterra espairecer, e [...] aproveitei o passeio» (ibidem, p. 7). No entanto, o facto de salientar que «aprendeu muito» na sua ida à Velha Albion, impede que cataloguemos Oliveira Martins somente como um mero turista, uma vez que «quem não aprendeu não viajou: deslocou-se apenas [...] porque fahren =

erfahren»21. Dito de outro modo, aquele que não aprendeu na viagem comportou-se

como turista e não como viajante. E, no caso ramalheano, o autor demonstra a sua ânsia de conhecimento ao exclamar: «Há tantas […] coisas que absorvem o tempo e a atenção de um passageiro na grande capital inglesa!» (JB., p. 78). Portanto, a sua viagem é também um acto cognitivo, algo que, aliás, redunda nos autores em apreço.

Mas, paralelamente, há também outros tipos de viagem que, à semelhança da viagem turística, nem sempre são entendidos como verdadeiras viagens. Assim, «there are the journeyings of those whose profession or job takes them abroad. These people may travel […], but such travel is subsidiary and so cannot count as true travel»22. Neste

caso, encontramos Eça de Queirós e Jaime Batalha Reis, viajantes por imposição profissional e, por conseguinte, numa acepção restrita do termo, viajantes algo desvirtuados. Porém, na extensa listagem de viajantes que elabora, Percy G. Adams inclui os diplomatas entre as classes de viajantes23, opinião que contraria o postulado

anterior e permite concluir que, apesar de cônsules, Eça e Batalha também são viajantes. Ademais, segundo a argumentação de Alison Blunt, por viagem entende-se uma noção que incorpora tanto o movimento voluntário como a deslocação forçada24, o que reforça

a ideia de que, tanto Eça como Batalha, são realmente viajantes.

21 Stephen Reckert, «O Signo da Viagem», in Stephen Reckert e Y. Kace Centeno (org.), A Viagem

“Entre o Real e o Imaginário”, Arcádia, Lisboa, 1983, p. 20.

22 M. A. Michael, in Op. cit., p. 5.

23 Percy G. Adams, Travel Literature and the Evolution of the Novel, The University Press of Kentucky,

Lexington, 1983, p. 62.

24 Alison Blunt, Travel, Genre, and Imperialism. Mary Kingsley and West Africa, The Guilford Press,