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A VIDA SOCIAL E A LEI COMO FUNDO DA ANÁLISE DA

CAPITULO II – CIRCULAÇÃO DE CRIANÇAS E PRÁTICAS DE PROTEÇÃO

CAPÍTULO 3 – ADOÇÃO, A LEGISLAÇÃO E A POLÍTICA SOCIAL

3.3 A VIDA SOCIAL E A LEI COMO FUNDO DA ANÁLISE DA

Quando se pensa em norma jurídica, é imprescindível correlacioná-la às dinâmicas da vida social e ao desenvolvimento sócio-histórico, observando a indubitável relação dialética entre o Direito e a vida cotidiana.

Autores como Friedman e Ladinsky (2002) e Rosa (2004) apontam para a significativa possibilidade de se moldar comportamentos, transformando-os em hábitos, a partir do poder coercitivo da lei. Friedman e Ladinsky (2002, p.206), ao abordar esse tema, afirmam ser o direito ―um instrumento institucional para ajustar as relações humanas à finalidade de assegurar algumas metas sociais concretas‖. No mesmo sentido, Rosa (2004) refere que o mundo da moral está preso às influências que o Direito estabelece em toda a sociedade.

A autora também observa que, frequentemente, comportamentos ditados aparentemente pelas normas morais têm origem em leis, as quais passam a se refletir nos modos de pensar e nos comportamentos das pessoas, adquirindo, depois de algum tempo, conteúdo moral próprio, independentemente da fonte jurídica de que provêm. A esse respeito, complementa Rosa:

No momento em que se forma um comportamento costumeiro decorrente daquela norma jurídica, ele passa a ter vida independente, de modo que se projeta, por vezes, muito tempo após a revogação da norma e sua substituição por outra. Isso se exemplifica no caso de leis posteriores que modificam institutos ou simples disposições de Direito, mas que não chegam a ter eficácia real, continuando a prevalecer os comportamentos inspirados nas antigas normas legais revogadas, porque tais comportamentos criaram força consuetudinária capaz de se sobrepor às novas determinações da ordem jurídica. (ROSA, 2004, p.57)

Nesse sentido, pode-se concluir que as relações familiares, historicamente construídas, foram afetadas pelo Direito de Família e pelo Direito da Infância, cujo fundamento pode ser encontrado na relação entre a lei e as tradições.

É ainda Rosa (2004) quem nos esclarece que a sobrevivência de práticas dominadoras, ou do exercício de direitos arbitrários e quase absolutos, está baseada em normas costumeiras, tradições e mesmo mandamentos legais que, apesar de considerados politicamente incorretos para os padrões atuais, ainda são observados em muitos segmentos sociais.

A influência de uma norma jurídica tem a capacidade de moldar opiniões e comportamentos por meio de um processo de aprendizado e de convencimento cujo objetivo fundamental é estabelecer os parâmetros do que é considerado majoritariamente positivo, aceitável e até ―normal‖ e, ao mesmo tempo, criar critérios relativos ao modo correto de agir. Podemos afirmar que o contrário também é verdadeiro, ou seja, a norma jurídica também é expressão de valores e crenças de uma dada sociedade, ou de grupos mais influentes.

Pensando na tese de Friedman e Ladinsky (2002) e Rosa (2004) no contexto da realidade brasileira de predominância de adoções intuito personae, se faz pertinente a seguinte questão: será que a Lei 12.010/2009, em seu artigo 50, parágrafo 13º., que versa sobre tal prática, conseguirá extinguir o antigo costume que a mãe (e alguns pais) tem de entregar o filho para pessoas de confiança de sua rede social?

Cabe mencionar que presenciamos hoje, no cotidiano profissional da VIJ, muitas pessoas desinformadas que procuram os serviços da Justiça da Infância com o objetivo de regularizar a guarda ou adoção de uma criança que já está consigo, ou seja, para imprimir legalidade a uma situação ―de fato‖ já existente. Ao tomar

conhecimento da nova legislação, essas pessoas se mostram desnorteadas com o risco real da punição, como ―busca e apreensão‖ da criança33

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No tocante à punição, respaldamo-nos no instigante pensamento de Foucault, na obra ―Vigiar e Punir‖ (1987). Em linhas muito gerais, podemos dizer que ele investigou os mecanismos do exercício e práticas do poder correlacionados com os ―efeitos de verdade‖ que o poder produz na vida das pessoas. Salma Muchail, grande estudiosa de Michael Foucault, refere que o filósofo francês se dedicou a pesquisar a ―verdade‖, definindo-a como

[...] conjunto de regras que, numa determinada época e para uma determinada sociedade, autoriza o que é permitido dizer, como se pode dizê-lo, a que instituições isso se vincula etc., o que deve ser reconhecido como verdadeiro e o que deve ser excluído como desqualificável, eis o procedimento que Foucault chama de ―arqueologia‖. (MUCHAIL, 2004, p.12)

Assim, no campo dos saberes, além do jogo entre o verdadeiro e o falso, Foucault se preocupou em relacionar os discursos ―verdadeiros‖ com a trama (mais complexa) de instituições e práticas sociais e jurídicas, denominadas por ele como ―dispositivos‖. Para Foucault, o dispositivo é ―[...] de natureza estratégica, envolve articulações entre elementos heterogêneos, discursivos e extra-discursivos, tais como práticas jurídicas, projetos arquitetônicos, instituições sociais diversas‖. Esse momento do pensamento foucaultiano muda da definição de ―arqueologia‖ para a ―genealogia‖. (MUCHAIL, 2004, p.15)

A partir dessa análise, temos que a lei é um dos dispositivos estratégicos que fundamenta e condiciona a vida cotidiana, sendo a punição um mecanismo de controle. Nesse sentido, estar em desconformidade com a lei é agir contra os valores dominantes, entendidos como ―verdadeiros‖, e carregar o estigma de ―anormalidade‖, ―caminhar do lado de lá‖, ou seja, da ―ilegalidade‖.

Historicamente, o Estado vem controlando a vida familiar e íntima das pessoas, sobretudo das famílias pobres. Ora com o objetivo de criar alianças com a família, ora de criar normas e puni-la, o Estado Moderno inventa ações e códigos direcionados a elas na tentativa de garantir a ordem social.

O autor francês Jacques Donzelot demonstrou que o Estado, por meio das famílias, implantou ações educativas e punitivas. A partir do século XVIII, na França, disseminaram-se nas famílias noções de higiene e de assistência, tendo a mulher importante papel atribuído no novo ordenamento moral instituído. (DONZELOT, 1986)

Assim como muitos países, o Brasil também editou normas protetoras da infância, que deram maior poder de controle aos gestores das políticas (nos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário), fragilizando a autonomia de muitas famílias, sobretudo daquelas que dependem de políticas sociais para sobreviver. Para exemplificar basta rememorar a atual opção por centralizar na família as ações/serviços assistenciais, a chamada ―matricialidade sociofamiliar‖, apresentada na PNAS, que pode ser delicada, como já mencionado, ao empurrar para o grupo familiar deveres quase impossíveis de serem cumpridos frente à ineficiência das políticas públicas. Isso resulta ainda, entre outras consequências, na hegemônica visão moralizante da família pobre.