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Vinte anos de Biomecânica — dez com o André Costa, dez sem ele: da força do contraste ao poder da ausência

No documento revista portuguesa de ciências do desporto (páginas 99-103)

morte o André nos deixou um legado determinante: o de fazermos por ele, o de nos fazermos dignos do seu sonho, o de lutarmos mais e mais para nos apro- ximarmos da sua igualha.

São assim os grandes Homens. Deixam marca! Às vezes nas portas, porque não?, mas sobretudo nas almas, nas consciências e nos hábitos; mesmo que a sua existência tenha sido demasiado curta e as mar- cas, ainda que indeléveis, se fizessem, com o tempo, mais ténues do que se esperava que viessem a ser. Como seria a nossa Biomecânica se o André por cá estivesse? Quem o conheceu acredita que se teria muito a sonhar, para poder adivinhar!

J. Paulo Vilas-Boas

Coordenador do Laboratório de Biomecânica Dr. André Costa

O André chega à Faculdade vindo do Atletismo, apaixona-se pela abordagem mecânica do movimen- to humano e acentua sempre a dimensão pedagógica da sua intervenção. Transita de treinador de atletas de alto nível para aulas de iniciação ao atletismo ou professor no curso de licenciatura da FCDEF-UP, onde inicia uma carreira académica empenhada, com o entusiasmo de quem percebe e gosta do que faz, acredita no processo formativo e sente que a quali- dade da sua intervenção pode fazer a diferença. O André cedo quer aprofundar o porquê e o como da sua actividade pedagógica. É um passo natural ficar na Faculdade como docente, depois de concluir a Licenciatura em Educação Física e, deste modo, inte- gra a primeira equipa de gente nova que, cheia de entusiasmo e esperança, protagoniza os passos inte- gradores da então Educação Física na Universidade do Porto. A sua “marca” pedagógica é muito forte e vai ser estruturante do seu trabalho mesmo quando enceta a sua vida académica.

Recordo as “primeiras” discussões marcadas pela insatisfação com o processo de ensino da licencia- tura em Educação Física (EF) que sentíamos como ultrapassado e marcado pela ligeireza do seu enquadramento.

Recordo as “segundas” discussões marcadas pela insatisfação de passos entretanto permitidos, na pro- cura de novas explicações da “nossa área”. A insatis- fação com a falta de substância específica do discur- so “do tudo tem a ver com tudo” e a insegurança a que nos conduz este discurso empolgante porque portador de uma nova visão do mundo e das coisas, mas carente da humildade que gasta algum tempo na concretização dos princípios gerais de análise às aspirações específicas da nossa área.

Recordo as “terceiras” discussões, quando, instalada a gestão democrática na Faculdade, e a sua conse- quente abertura, se sente a esperança da renovação e do crescimento.

Recordo as “correcções” dos primeiros textos para provas académicas e o misto de ansiedade e orgulho com que as enfrentámos.

Recordo as “quartas” discussões em que a generosi- dade colocada no nosso investimento nem sempre conseguia colmatar todas as insuficiências da própria “área em construção”. A forma como tacteávamos o nosso lugar colectivo na Universidade e as insegu- ranças resultantes da nossa imaturidade individual e colectiva. As dúvidas cada vez mais ambiciosas, a necessitarem de respostas além da Faculdade e a exi- girem uma colaboração institucional e científica alar- gada. A certeza de que nem sempre a maneira mais rápida é a maneira mais útil.

— “O objecto da Biomecânica não é o movimento humano, mas sim o Homem que se movimenta”. Jogos de palavras, dizem os mais “pragmáticos” aconchegados pelo ambiente ainda dominantemente positivista.

— “É preciso fazer”, pede a afirmação universitária que, por momentos, nos enreda nesta nova condição sem os expedientes dessa afirmação estarem profun- damente discutidos e assimilados.

Neste contexto de mudança, o André tem um modo de estar marcado a um tempo pela inquietação, de ir mais além e mais fundo e pela harmonia no que isso significa de entender o presente como possibilidade de construir o futuro novo sem prescindir da história. O André é um colega de equilíbrios e de conciliação. Situa-se do lado do rigor e tenta enquadrar o seu trabalho numa clareza ontológica da “nossa área” em construção. Procura o discernimento epistemológico que a centre no essencial, no seu objecto de estudo e prescinda da facilidade de se aproveitar da segurança de disciplinas científicas já firmadas noutros contex- tos científicos, sem discernir o seu contributo para a problemática particular da “nossa área”.

O André, que corre muito bem, quer que a procura do conhecimento tenha sentido não só para a práxis

EVOCAÇÃO DO ANDRÉ COSTA

científica, mas também para a práxis pedagógica e para a práxis motora. Por isso, corre atrás da integra- ção do conhecimento, para que este seja útil e inte- ressante do ponto de vista das ciências do desporto, sintagma a que adere, tal como toda a Faculdade, para designar os esforços teóricos que emergem a partir da tradicional Educação Física.

Dez anos ainda não permitem fazer história mas, com o distanciamento possível, permito-me sinteti- zar alguns pontos que, de algum modo, estão pre- sentes no trabalho do André e integram o debate até à actualidade, no contexto da afirmação académico- científica da “nossa área”:

— Relação teoria/prática – vista não só como critério de cientificidade importante para as ciências do des- porto, mas também como exigência da formação dos estudantes.

— Colocação da actividade científica concreta num quadro epistemológico esclarecido e adequado às características das ciências do desporto como ciên- cias da acção.

— Orientação da teoria pelos problemas, o que remete para a necessidade de se caminhar para a ciência do desporto interdisciplinar.

— A utilidade do conhecimento num espectro de interesses que podemos ilustrar com Habermas, e o papel dos contributos parcelares na afirmação da identidade da “área” como um todo.

— Equilíbrio entre realização e rigor e entre realiza- ção pessoal e colectiva.

Dez anos é muito tempo, diz a canção. Se o é para a saudade, contudo, parece que foi ontem, dada a actualidade das questões que preocupam o André, e que hoje, tal como ontem, continuam a precisar de novos esclarecimentos e de aplicações cada vez mais consistentes. Um tributo importante à memória do André será não facilitarmos na comodidade do lugar universitário conseguido e enfatizarmos a humildade de querer perceber sempre melhor hoje o que ontem parecia quase esclarecido. O mundo muda, os pro- blemas mudam e as respostas têm de ser actualiza- das com base em fundamentos sólidos que resistam a modas, interesses ou desinteresses pontuais. O André continua presente na vida da Faculdade porque sempre teimou em ver o lado de dentro das coisas, em ser um elemento equilibrador entre o passado e o futuro e uma ponte entre pessoas.

Nenhum homem vive em vão. Essa é também uma responsabilidade de quem ficou por cá mais tempo, com a saudade a salpicar o tempo da recordação.

Zélia Matos

ABERTURA DO

No documento revista portuguesa de ciências do desporto (páginas 99-103)