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Violência contra adolescentes com necessidades especiais

No documento contra a mulher adolescente/jovem Violência (páginas 190-196)

Rosana Glat Professora adjunta da Faculdade de Educação da UERJ Olga Bastos Doutora em Ciências e médica do IFF-Fiocruz

Durante muito tempo, as pessoas com deficiência foram segregadas ou mesmo eliminadas do convívio social. Elas são pouco visíveis em nossa sociedade. Aliás, essa pequena visibilidade pôde ser constatada na própria organização do evento que originou esta publicação, já que o espaço para a discussão sobre a violência contra a mulher e os adolescentes com neces-sidades especiais foi aberto como se interessasse apenas àqueles que traba-lham na área ou estão, de alguma forma, envolvidos com essa clientela.

Participaram do grupo de trabalho 12 pessoas de diferentes áreas da saúde, da educação, da psicologia e da assistência social. A maioria tinha experiência profissional e pessoal no atendimento a pessoas com deficiên-cia. Entre os participantes, destacamos a presença do presidente do Centro de Vida Independente (CVI), uma ONG voltada para a defesa de pessoas com necessidades especiais; da secretária de Ação Social do município de Mangaratiba; e de um membro do conselho tutelar dos bairros da Barra da Tijuca e do Recreio dos Bandeirantes, ambos localizados na Zona Oeste do município do Rio de Janeiro.

O início do debate foi pautado pela questão da nomenclatura utiliza-da para se referir às pessoas com necessiutiliza-dades especiais. Os participantes questionaram o uso do termo “necessidades especiais”, uma vez que este, segundo os mesmos, traz implícito referências que rotulam e estigmatizam as pessoas. Apontaram ainda que, embora freqüentemente usados como sinônimos, “necessidades especiais” e “deficiência” não são equivalentes. O primeiro termo é mais amplo e engloba não só as pessoas com deficiência, mas todas que apresentam uma necessidade de suporte ou adaptação espe-cífica em determinado contexto. A deficiência, por sua vez, é uma condi-ção orgânica do indivíduo; pode resultar numa necessidade especial para algumas situações, mas não necessariamente. Por exemplo: uma das inte-grantes do grupo era portadora de deficiência física e se locomovia em cadeira de rodas; isso não lhe trouxe nenhuma limitação na participação

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das discussões. Já uma pessoa surda necessitaria de um suporte para acom-panhar adequadamente os trabalhos; no caso, um intérprete da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS).

É interessante acrescentar que, na área da educação, existem muitas discussões sobre a terminologia mais apropriada para se referir a essas pessoas. Ora se emprega o termo “portadores de necessidades especiais”, ora “pessoas com necessidades especiais”. A abrangência dessa definição foi deflagrada na Declaração de Salamanca, que reforça a idéia de que não só as pessoas com deficiência são “especiais” e necessitam de suporte, mas todos os que estão excluídos de algo em decorrência de condições econô-micas e socioculturais (meninos de rua, minorias étnicas, lingüísticas, de zonas desfavorecidas ou marginais).

Nesse sentido, levando-se em conta que a definição “necessidade es-pecial” agrega pessoas com diferentes carências e características, é funda-mental especificar a quem se está referindo.

Os participantes apontaram que a discriminação sofrida por esses sujeitos pode estar associada à nomenclatura ou à pouca tolerância da sociedade em relação às diferenças. Por isso, ressaltaram a importância de uma nomenclatura mais conveniente. De outro lado, também ficou eviden-te que, independeneviden-temeneviden-te de como são chamados, esses indivíduos seri-am discriminados de qualquer forma, já que as pessoas, de modo geral, têm dificuldade em lidar com quem foge do padrão de normalidade.

Ao final do debate em torno da terminologia, os integrantes do gru-po decidiram-se pelas expressões “pessoa com deficiência” ou “pessoa gru- por-tadora de deficiência”, pois é assim que a maioria se define. O interessante dessa opção é que a mesma não está de acordo com os pressupostos recen-tes da área educacional; afinal, o termo “portadores de deficiência” vem sendo alvo de críticas por parte de diversos estudiosos, como Carvalho (2004) e Mazzotta (1996). Segundo eles, não se porta uma deficiência; esta pode se manifestar em determinadas situações.

Outro aspecto trazido à discussão foi o fato de que, apesar dos avan-ços e debates em prol de seus direitos, os deficientes continuam colocados à margem da vida social, como se as problemáticas da vida da comunidade não lhes dissessem respeito. Sobre isso, vale acrescentar que, na década de 1960, na Inglaterra, iniciaram-se os movimentos sociais a favor dos direitos das pessoas com deficiência. Tais movimentos questionavam os pressupos-tos de uma sociedade “ideal” e exigiam que as pessoas com deficiência tivessem o direito de usufruir as condições de vida mais comuns ou nor-mais possíveis onde vivessem.

Nesse período, o paradigma da abordagem hegemônica em torno do modelo médico de deficiência – que considerava que as desigualdades

se relacionavam somente às deficiências do próprio corpo – começou a ser questionado e foi rompido nas décadas seguintes.

Com o crescimento dos movimentos em prol dos direitos sociais das pessoas com deficiência, essa população está cada vez mais saindo dos espa-ços protegidos de suas casas e instituições especializadas e se tornando, por-tanto, mais exposta às pressões e aos perigos do contato social mais amplo.

Sob essa perspectiva, a inclusão das mulheres e adolescentes com deficiência em grupos de discussão faz-se necessária e urgente – na medida em que, como foi colocado, isso é uma demonstração de que “o mundo real” se transforma mais rápido que as ações institucionais, ainda incipientes no que diz respeito a essa problemática. Os participantes ressaltaram que, em próximos eventos, esse deve ser um tema de destaque geral. Mesmo assim, reconheceram que só o fato de ter sido constituído um grupo de discussão já significa uma mudança na valorização desses indivíduos.

Uma divulgação maior dessa questão é fundamental, já que os res-ponsáveis por pessoas com deficiência nem sempre recebem o apoio ne-cessário dos órgãos governamentais. Alguns membros do grupo disseram que buscam a institucionalização quando seus filhos chegam à adolescên-cia. Mas essa posição não foi aceita pelos outros integrantes, que argumen-taram que, na realidade brasileira, são poucas as instituições nessa área.

Por outro lado, todos concordaram que alternativas de atendimento aos adolescentes com deficiência e o necessário suporte aos seus familiares são medidas que precisam ser tomadas com urgência.

Pelo exposto até aqui, fica evidente a importância das instituições de saúde e educação no atendimento a essa parcela da população, que já representa cerca de 25 milhões de brasileiros. É necessário que sejam ela-boradas políticas públicas que contemplem adaptações, as quais não po-dem se limitar à adequação de espaços físicos. Para ilustrar a pouca aten-ção dada às pessoas com deficiência, citemos o exemplo de uma das inte-grantes do grupo, que usa cadeira de rodas. Ela relatou a grande dificulda-de que enfrenta para fazer exames ginecológicos, pois o consultório não dispõe de mesa adequada. Além disso, muitas vezes o médico não sabe como se portar; inclusive faz poucas perguntas sobre a prática sexual da paciente, como se o fato de usar cadeira de rodas a impedisse de ter uma vida sexual ativa e prazerosa.

Após essa discussão, debruçamo-nos sobre o tema específico do even-to: a violência. Enfatizamos questões relativas aos problemas físicos, psico-lógicos e sexuais, à negligência e à síndrome de Munchausen.1

1 Situação em que os pais, mediante a simulação de uma sintomatologia, logram que, em seus filhos, sejam realizadas inúmeras investigações médicas (Meadow, 1977).

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Inúmeros foram os exemplos expostos. Apresentaram-se ainda re-sultados de pesquisas científicas que evidenciavam um maior predomínio de todas as formas de violência contra as pessoas deficientes. Segundo al-guns estudos, a mais comum – tanto para homens quanto para mulheres – é a negligência ou a falta de assistência após a violência.

As estatísticas reforçam a importância de uma atenção maior a uma determinada faixa da população, que possui três fatores de vulnerabilidade:

ser mulher e adolescente e ter uma deficiência.

Nesse sentido, houve uma discussão sobre a multicausalidade dessa maior vulnerabilidade. Segundo os participantes, o fator que dificulta a questão é a não-aceitação de uma pessoa com deficiência de que possa se tornar um adolescente com mudanças físicas e comportamentais que ocor-rem nessa etapa do desenvolvimento, o que deixa a sexualidade em maior evidência.

Os preconceitos atrapalham ainda a percepção de que raramente corresponde à deficiência, seja física ou mental, uma “deficiência sexual”.

A maioria dos adolescentes com deficiência é tratada como eterna criança ou como “ser assexuado”, que não sente desejo e prazer.

Há diversos mitos em relação à sexualidade dos portadores de defi-ciência, principalmente a mental. Isso contribui para que a representação de sua sexualidade seja distorcida e eles sejam vistos como potencialmente capazes de agressões sexuais, em virtude da crença infundada de que têm a sexualidade exacerbada.

Vale destacar que as pessoas com deficiência mental são em geral confundidas com doentes mentais e consideradas potencialmente agressi-vas; portanto, alvo fácil de sentimentos estereotipados de desconfiança. Outro fator a ser lembrado aqui é que os envolvidos em casos de abuso sexual muitas vezes são vítimas de alguma forma de violência – ou neles reside algum distúrbio de comportamento. Os agressores mais freqüentes das pessoas com deficiência encontram-se entre os próprios familiares delas ou outros adultos com quem elas têm contato. As mulheres cometem mais a agressão física; já a sexual é predominantemente feita pelos homens.

No Brasil, o debate sobre a sexualidade das pessoas com necessida-des especiais vem ganhando fôlego nos últimos anos, principalmente a partir das diretrizes nacionais que ressaltam seus direitos sociais e educacionais.

Contudo, a sexualidade das pessoas com deficiência mental ainda é larga-mente ignorada por familiares e profissionais da saúde e da educação, ou é vista de modo “infantilizado”. Aliás, conforme apontado por Glat e Freitas (1996), muitos profissionais chegam a pensar que os deficientes mentais são deficientes também no desenvolvimento sexual e afetivo. Ou seja, a sexualidade dessas pessoas é encarada de maneira preconceituosa e elas são consideradas incapazes de lidar com seus desejos sexuais.

Essa postura vem sendo questionada por diversos pesquisadores, e a maioria “concorda que a sexualidade de pessoas com deficiência mental (a não ser, talvez, nos casos mais prejudicados neurologicamente) não é qua-litativamente diferente das demais pessoas” (id., ibid., p. 15).

Outro aspecto que tem contribuído para a ampliação do debate é o crescimento do número de pessoas infectadas por DSTs, sobretudo a AIDS.

Há também um aumento da discussão sobre a implementação de métodos contraceptivos em pessoas com deficiência. Porém, para a mulher com deficiência mental, continuam as indagações sobre a laqueadura tubária, as quais envolvem aspectos éticos em relação à esterilização definitiva.

Embora as leis brasileiras permitam sua realização nas pessoas considera-das absolutamente incapazes – desde que haja autorização judicial –, o assunto deve ser amplamente debatido com os envolvidos. Afinal, o que seria uma pessoa absolutamente incapaz?

Se, por um lado, a contracepção por meio de laqueadura tubária permitiria a atividade sexual deliberada, por outro, poderia aumentar as estatísticas de vítimas de abuso sexual, por causa da invisibilidade do ato, pela impossibilidade de gravidez. Assim, talvez o melhor fosse a coibição do abuso e não a prática da laqueadura tubária, que impediria a gravidez, mas não a contaminação pelo vírus da AIDS e por outras DSTs.

Em suma, esses indivíduos recebem pouca orientação das famílias e mesmo dos profissionais sobre sua sexualidade, e seus colegas são “tão ignorantes quanto eles” – por isso tornam-se vítimas fáceis de pessoas desajustadas e/ou inescrupulosas. Também existe uma carência de pro-gramas de educação sexual para as pessoas com deficiência.

Outro mito é que as pessoas com deficiência não seriam vulneráveis à violência, pois seriam objeto de compaixão ou não seriam desejáveis.

Daí a menor proteção que recebem e a conseqüente maior exposição.

Além disso, a violência ocorre porque os indivíduos com deficiência não são considerados cidadãos. Portanto, eles não precisariam ser respei-tados em seus direitos fundamentais.

Mais um fator que pode estar implicado na maior exposição das mulheres aos maus-tratos, principalmente o sexual, é a ideologia de gêne-ro. E a representação da sexualidade é extensiva às mulheres com deficiên-cia. Quando os aspectos sexuais são abordados, quase sempre só se leva em conta a sexualidade dos homens. É negada a sexualidade das adoles-centes com deficiência, e isso se torna ainda mais evidente nas que têm deficiência mental.

Como em geral as pessoas com deficiência precisam dos cuidados de terceiros, elas ficam ainda mais fragilizadas para se impor: em casos de violência, por serem subjugadas, há a possibilidade de que seja atribuída a elas uma falsa culpa, como se, de alguma forma, tivessem provocado uma

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determinada situação. Além disso, como essas mulheres muitas vezes não se sentem acreditadas, não contam para ninguém o ocorrido. Isso é algo complicado, pois, na maioria das vezes, o agressor está entre seus cuidadores ou é alguém muito próximo.

Nessas situações, faz-se urgente e imediata a notificação ao conselho tutelar da região. Todavia, cabe prioritariamente aos profissionais da saú-de garantir o atendimento por uma equipe multidisciplinar, responsaú-dendo às questões orgânicas ou emocionais que se apresentem. Sobre esse ponto, o grupo avaliou que os serviços de saúde e educação precisam se adequar à realidade, a fim de atender as necessidades dessa população e preservar, assim, o cumprimento de seus direitos humanos fundamentais.

É preciso também que programas de orientação familiar esclareçam os pais sobre as possibilidades de aprendizagem e autonomia de seus fi-lhos. O debate a esse respeito girou em torno da ambivalência existente na educação de um filho especial. Se, por um lado, os pais protegem os filhos da violência, por outro, precisam proporcionar sua autonomia, contribu-indo para torná-los mais independentes e menos vulneráveis.

Com base no exposto, o primeiro passo é compreender que a ado-lescência se sobrepõe à deficiência. Ou seja, antes de serem deficientes, as pessoas são adolescentes, com todos os problemas, anseios, conflitos e ex-pectativas próprios dessa faixa etária, ampliados por dificuldades orgâni-cas e, sobretudo, sociais. O respeito dos profissionais e das famílias a essa etapa do desenvolvimento contribuirá para que ela seja vivenciada de modo mais prazeroso.

Para finalizar este texto, pedimos a criação urgente de programas de orientação multiprofissional que trabalhem com a família – a fim de que elas descubram um ponto de equilíbrio entre as dificuldades e limites de seu filho e suas possibilidades de amadurecimento e autonomia. Nesse sentido, não resta dúvida de que investimentos em propostas e pesquisas na área são imprescindíveis.

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