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Violência estrutural e suas repercussões na juventude

Ignácio Cano Professor adjunto da Faculdade de Ciências Sociais da UERJ

Não há um consenso na sociedade nem entre os especialistas sobre o significado específico do termo violência estrutural. Ainda assim, é possível reconhecer alguns dos traços que ele sugere. Em primeiro lugar, ele indi-ca que a violência não é episódiindi-ca nem acidental, pois está inscrita na estru-tura da sociedade. Em segundo, a noção de violência estruestru-tural costuma estar associada à negação de direitos básicos dos cidadãos. Nessa visão, a privação de direitos teria, por sua vez, um efeito indireto sobre a violência física, de modo que sujeitos privados de direitos estariam expostos a um risco maior de sofrer ou cometer “agressões”, para utilizar o termo mais comum na área da saúde. Dessa forma, a violência física chega a ser consi-derada um simples sintoma de um problema maior de desajuste social, o que algumas correntes chamariam de anomia, e outras, de exclusão social.

Até o conceito mais restrito de violência física possui múltiplas inter-pretações e implicações em diversas áreas. Além de se referir a condutas de agressão deliberada contra outros ou contra si mesmo, ou seja, condu-tas que provocam dano à integridade física de alguém, a violência pode ser interpretada de várias formas.

A violência pode ser entendida em alguns lugares como uma gramá-tica das relações sociais, um sistema de regras que governa a interação entre as pessoas e legitima, sob certas condições, as agressões e ameaças como formas de resolução de conflitos. Em ambientes em que a violência é comum, as pessoas naturalizam seu uso, desde que determinadas regras sejam respeitadas, e interiorizam os valores que fazem isso possível. Assim, a legitimidade social oferecida a certos atos de violência funciona de forma independente dos códigos formais ou penais. Não é raro, por exemplo, assistir a depoimentos de mães de jovens torturados ou executados por agentes do Estado lamentando que seus filhos “tivessem sido tratados como bandidos”. Ou seja, eles receberam um tratamento que é aceito para cer-tos grupos sociais – os bandidos –, dos quais eles não fariam parte. Dessa

maneira, em vez de se questionar a ilegalidade desses atos, que constituem crimes, discute-se o critério de seleção das pessoas que serão alvo dos mes-mos.

Em algumas comunidades, a violência pode ser compreendida ain-da como uma ferramenta de construção de identiain-dade por parte dos jo-vens excluídos, que, com as armas fornecidas pelo tráfico de drogas, pare-cem obter a renda para o consumo imediato e o respeito e a visibilidade que a sociedade lhes nega por outras vias. Assim, ser temido pode ser preferível a ser ignorado.

Como qualquer conduta social e complexo atitudinal, aprende-se e ensina-se a violência. Existe uma socialização, uma pedagogia da violência, sem a qual ela não poderia se perpetuar nos moldes atuais.

Efeitos da violência

Uma das características mais perversas da violência é sua capacidade de autoperpetuação. Ser vítima real ou potencial da violência estimula a ansiedade, a agressividade na resposta e, em última análise, a paranóia.

Em 2005, após múltiplos conflitos armados na área da Rocinha e do Vidigal, no Rio de Janeiro, vários homens foram presos por andarem dentro do Túnel Zuzu Angel “armados com uma faca”, pois alguém teria denunciado que eles iriam cometer um assalto. Os homens alegaram que iam colher jacas e não possuíam antecedentes penais. De fato, a idéia de assaltar al-guém com uma faca dentro de um túnel de alta velocidade pertence mais ao reino da ficção do que ao da realidade, mas o pânico no imaginário da cidade conseguiu levar essas pessoas para a delegacia.

Do ponto de vista psicossocial, a violência estimula a desconfiança e o individualismo. Do ponto de vista político, aumenta o apoio social a uma intervenção estatal também mais violenta, inclusive com ações à margem da lei, como torturas e execuções sumárias. Todos esses traços tensionam o clima social e elevam a probabilidade de a violência voltar a acontecer.

Os efeitos da violência, como se pode observar, são múltiplos. O primeiro e mais grave é a perda de vidas humanas. Além disso, nos casos de violência não-letal, encontramos lesões e seqüelas provocadas por eles.

Um terceiro impacto acontece sobre as pessoas próximas das vítimas dire-tas – família, amigos etc. –, que também sofrem o trauma; particularmente nos episódios de morte violenta, elas podem vir a desenvolver sintomas psicopatológicos (Soares, s. d.).

O simples medo de sofrer violência leva as pessoas a restringir seus horários e espaços e a mudar seus costumes, perdendo qualidade de vida.

A cidade, criada como um lócus da abertura e da livre circulação, em contraposição ao interior feudal em que movimentos e pessoas eram

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trolados, acaba adquirindo o papel contrário. As cidades são espaços cada vez mais privatizados, entre grades e condomínios fechados, em que qual-quer transeunte não-identificado passa a ser suspeito.

Por último, não se pode esquecer o custo econômico da violência, que vai do tratamento de feridos até o investimento em segurança pública e privada. Alguns estudos estimaram que, na cidade do Rio de Janeiro, a violência custava, no mínimo, 5% do PIB local (Londoño, Gaviria e Guerrero, 2000).

Perfis das vítimas

É verdade que somos, de diversas maneiras, vítimas da violência – inclusive após considerar seus impactos psicossociais e sociopolíticos. No entanto, há notáveis diferenças no grau em que as pessoas estão expostas ao risco direto dela.

No mundo inteiro, os jovens são os grandes protagonistas da violên-cia, tanto como autores quanto como vítimas. O diferencial, no Brasil, são as altíssimas taxas de violência letal dos jovens de sexo masculino. Nos últimos anos, o país tem tido taxas de homicídio próximas a trinta por 100 mil habitantes; cidades como o Rio de Janeiro, por exemplo, superam os cinqüenta. Por sua vez, a coorte de maior incidência no Rio de Janeiro, os homens entre 20 e 24 anos, apresenta taxas estarrecedoras de mais de 300 homicídios por 100 mil habitantes.

Dados de 1998 permitiram estimar que 3,1% dos homens brasileiros e 6,5% dos homens fluminenses são assassinados em algum momento de suas vidas (Cano e Ferreira, 2004). Como as taxas de homicídio femininas são muito inferiores, isso acaba provocando um agravamento do desequilíbrio natural entre os sexos em favor das mulheres. Calcula-se que, para cada 100 mil homens e 100 mil mulheres nascidos num determinado ano, mais de 4.700 homens terão falecido por causa da violência ao chegar aos cinqüenta anos de idade. Isto significa que muitas mulheres ficarão sem parceiro em virtude desse fenômeno.

Os homicídios vitimam, sobretudo, pessoas pretas e pardas, cujas taxas são aproximadamente o dobro das dos brancos. A diferença entre os grupos de cor acontece principalmente entre os jovens. Aparentemente, esse risco maior para pretos e pardos não pode ser explicado exclusiva-mente em função de diferenças de renda ou classe social. Um dado que apóia essa interpretação é o de que, mesmo entre pessoas de escolaridade média ou alta, os negros (pretos e pardos) apresentam sempre maior risco de vitimização letal do que os brancos.

Os dados também mostram que a probabilidade de homicídio é maior para os jovens solteiros, comparados aos casados ou divorciados. Há

inclu-sive uma interação estatística entre idade, cor e estado civil, de modo que o perigo é particularmente alto se uma pessoa é jovem, negra e solteira.

Assim, os jovens negros seriam os que mais se beneficiariam do casamento, em termos de diminuição do risco.

Comparando as taxas de homicídios de áreas diferentes, comprova-mos que a variável que parece ter mais peso é a desigualdade: países mais desiguais tendem a ter uma taxa de homicídio mais alta, embora as varia-ções sejam muito grandes (Fajnzylber, Lederman e Loayza, 1998).

Já traçando um paralelo entre os estados do Brasil, a urbanização parece ser o fator mais importante. Os estados mais urbanizados, e não os mais pobres, sofrem maiores níveis de violência letal (Cano e Santos, 2001).

O mesmo acontece quando comparamos municípios do estado do Rio de Janeiro: os mais urbanizados são também os mais violentos.

No entanto, quando analisamos as taxas dentro das cidades, pesqui-sas diverpesqui-sas em várias regiões metropolitanas brasileiras mostram que a incidência do homicídio é muito mais alta nas áreas pobres e carentes de recursos públicos do que nas áreas nobres. Em suma, é claro que a vitimização letal afeta, sobretudo, os pobres, mesmo que outros tipos de violência – como a doméstica e crimes contra a propriedade – possam ter alvos mais variados.

Políticas públicas de prevenção da violência

Em vista desse quadro, o poder público precisa desenvolver políti-cas específipolíti-cas para pôr um fim nessa tragédia. Tradicionalmente, os ho-micídios nunca foram prioridade nas políticas de segurança pública no Brasil, pois afetam primordialmente, como acabamos de ver, grupos so-ciais de baixa renda, que não têm a capacidade de mobilizar a sociedade nem o aparato do Estado.

Toda política pública que pretenda ter sucesso nessa área deve fo-calizar o grupo em que se encontra a maioria das vítimas da violência letal: jovens do sexo masculino, negros e moradores de áreas carentes.

Sem programas que consigam a inserção social dessas populações, será muito difícil diminuir drasticamente os níveis de violência das periferias urbanas brasileiras.

Para além da repressão da violência, obviamente necessária, é pre-ciso investir em programas preventivos. Junto a planos universais (pre-venção primária), é necessário dar ênfase a projetos voltados para popu-lações em risco (prevenção secundária), em complementação aos pro-gramas para pessoas que já tenham sido vítimas ou autoras de violência (prevenção terciária).

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O maior problema é que a prevenção tende a produzir resultados ape-nas a médio ou longo prazo, e uma sociedade refém do pânico e da inseguran-ça nem sempre tem a paciência necessária para esperar esses frutos.

A própria repressão à violência pelo aparato do Estado deve ser rea-lizada com o cuidado de não estimular ainda mais a espiral da mesma. De fato, o uso excessivo da força por parte dos aparatos policiais brasileiros tem se mostrado incapaz de conter a violência urbana e, muito provavel-mente, tem contribuído para alimentá-la.

Em vez de se continuar no paradigma da guerra “contra o crime”, que até agora tem incrementado a militarização das políticas sem frutos concretos, valeria a pena a aposta em políticas de redução de danos focali-zadas nas populações de risco.

Seria conveniente que as autoridades estaduais e federais promoves-sem planos de redução de homicídios. Esses planos deveriam contar com metas específicas, a serem acompanhadas pela sociedade, a fim de tirar o Brasil do lugar em que se encontra, como um dos países mais violentos do mundo.

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Juventude, sexualidade e gênero: mudanças e permanências

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