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Violência de gênero

Violência de gênero

Eva Faleiros Mestre em Serviço Social (Universidade Laval), professora aposentada da UnB, membro fundador e pesquisadora do CECRIA

Nos últimos anos, temos procurado compreender a complexidade da questão da violência sexual. Estamos ainda tratando de “decifrar o DNA”

desse problema, ou seja, buscando entender suas raízes, motivos, “funcio-namento”, articulações. Evidentemente, essa forma de se referir às dificul-dades e desafios que a violência, no caso a sexual, nos coloca não tem conotação biológica, pois não a entendemos como algo exclusivamente

“da natureza” – e, portanto, imutável.

Quantos gêneros existem?

A extensa bibliografia sobre violência de gênero está centrada na dominação masculina sobre as mulheres. Apesar de sabermos que esta é a violência mais freqüente, tal centralidade é limitativa, pois desconsidera a diversidade das formas de expressão sexual (gênero e sexualidade) exis-tentes na natureza, nas sociedades e no mercado do sexo. Além disso, des-preza o fato de as expressões da sexualidade humana não serem sempre unívocas e singulares, mas diversas e plurais. A partir de suas pesquisas, a bióloga Joan Roughgarden (2004) afirmou que “a divisão (binária) entre macho e fêmea não explica[va] a diversidade sexual do reino animal”.

Em nível individual, pensar relações de gênero implica considerar o corpo (constituições sexuais anatômicas e metabólicas), a cabeça (desejos, auto-representações sexuais, identidades) e as práticas sexuais (escolhas sexuais); e, em nível sociocultural, entender como as sociedades estruturam as relações sexuais e de gênero.

Nas sociedades historicamente machistas, homofóbicas e religiosas, como a brasileira, a diversidade de gênero e de opções sexuais é negada e rejeitada. Nega-se que nasçam em número não-desprezível pessoas com indefinição sexual; que nem sempre ao sexo corresponde o gênero, haven-do indivíduos que não sentem e não desejam sua identidade sexual

deter-minada biologicamente; que as pessoas tenham o direito de escolher sua orientação sexual; que há indivíduos que adotam gêneros e orientações sexuais plurais – por exemplo, os transgêneros (transexuais, travestis), os bissexuais e os michês (bissexuais viris).

Violência de gênero: como se estrutura e a quem serve

Torna-se cada vez mais evidente que as diferentes formas da violên-cia de gênero têm como substrato a sexualidade e o trabalho, os quais, por sua vez, definem articulada e socialmente os lugares e o poder dos homens e das mulheres.

A violência de gênero estrutura-se – social, cultural, econômica e politicamente – a partir da concepção de que os seres humanos estão divi-didos entre machos e fêmeas, correspondendo a cada sexo lugares, papéis, status e poderes desiguais na vida privada e na pública, na família, no trabalho e na política.

Historicamente, os machos estruturaram o poder patriarcal de do-minação sobre as fêmeas, ou melhor, sobre o gênero feminino – exercido, como diz Saffioti (2003), “diretamente pelo patriarca ou por seus prepostos”.

Trata-se da estruturação social da propriedade, dos poderes, do mando, dos territórios e das condutas: propriedade e poder sobre os corpos, a sexualidade e as condutas sexuais dos gêneros não-masculinos, sobre os territórios públicos no mercado de trabalho, nos postos de decisão e dire-ção e na política.

O poder patriarcal estrutura-se, pois, na desigualdade entre os gêne-ros masculino e feminino, numa “lei do status desigual dos gênegêne-ros”. Se-gundo Saffioti (ibid.),

no exercício da função patriarcal, os homens detêm o poder de determi-nar a conduta das categorias nomeadas (mulheres, crianças e adolescen-tes de ambos os sexos), recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio.

O uso e abuso do poder patriarcal são exercidos duramente, por intermédio das mais variadas formas de violência, principalmente sobre as mulheres adultas que se desviam dos territórios (lugares, espaços, papéis, poderes) estruturados por esse poder.

Como o gênero feminino é considerado inferior e subalterno, os homens que assumem o “gênero não-masculino” – transexuais, travestis, homossexuais – tornam-se “objetos” de dominação e de punição violenta (psicológica, social e física); são marginalizados de certas profissões e de postos de decisão ou mesmo eliminados fisicamente. Os michês e os

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bissexuais, por sua vez, não sofrem as mesmas violências porque guar-dam, ainda que parcialmente, a identidade e os comportamentos sexuais masculinos.

Como foi dito, a cada gênero corresponde um lugar no trabalho, determinado pelos patriarcas. Segundo Strey (2001), “na base de todos os sistemas de estratificação de gênero está a divisão do trabalho baseada no gênero”. Ao gênero feminino, cabem as funções ligadas à reprodução da força de trabalho – procriar, alimentar, lavar, socializar, cuidar, proteger – em nível privado. Mesmo no mercado de trabalho, às mulheres são des-tinados, prioritariamente, os espaços de reprodução e cuidado: domésti-cas, lavadeiras, faxineiras, crecheiras, professoras, enfermeiras, assistentes sociais. Ao gênero masculino, cabem os lugares de produção, direção e mando: operários, chefes, executivos, planejadores, banqueiros, engenhei-ros, políticos. Para os transgêneros e os michês, resta o mercado do sexo:

prostituição e pornografia. Já os homossexuais costumam exercer profis-sões ligadas ao estético: cabeleireiros, maquiadores, estilistas de moda, decoradores, artistas. Há inclusive uma piada bastante ilustrativa nesse sen-tido entre engenheiros machistas: “arquiteto é aquele que não é suficiente-mente macho para ser engenheiro, nem suficientesuficiente-mente bicha para ser decorador”.

A violência surge quando os gêneros não-masculinos saem dos luga-res que lhes são determinados e se tornam subversivos – quando o poder patriarcal estruturado é contestado e se acha ameaçado. A violência prati-cada pela sociedade patriarcal se realiza de diversas formas: identitária, física, psicológica, sexual, institucional, social e politicamente. Articuladas, elas constituem o arsenal de que dispõe o gênero masculino para manter seu poder sobre os outros gêneros.

Quando há referência à violência de gênero, a representação gene-ralizada na sociedade é de que se trata de violência física de homens contra mulheres. No entanto, existem modos de violência mais sutis e destruido-res da identidade dos gêneros não-masculinos. É o que chamamos de vio-lência identitária; ela não permite às pessoas adotarem o gênero, a identi-dade, os comportamentos que julgam os mais próximos de seus desejos e projetos e que lhes possibilitam serem mais verdadeiras consigo mesmas – mais realizadas, felizes e cidadãs. Um exemplo de anulação da identidade nos deu a faxineira de nosso departamento na Universidade de Brasília.

Ao ser cumprimentada por um professor pelo Dia da Mulher, ela pergun-tou: “Eu sou mulher?”. Segundo Rita Segato (2003),

a violência física não constitui a forma mais eficiente nem a mais habitual de reduzir a auto-estima, minar a autoconfiança e desestabilizar a autono-mia das mulheres. A violência moral [termo que ela prefere à violência

psicológica], por sua invisibilidade e capilaridade, é a forma corrente e eficaz de subordinação e opressão feminina, socialmente aceita e valida-da. [...] A violência moral é tudo aquilo que envolve agressão emocional, mesmo que não seja consciente nem deliberada. Entram aqui a ridicularização, a coação moral, a suspeita, a intimidação, a condenação da sexualidade, a desvalorização cotidiana da mulher como pessoa, de sua personalidade e seus traços psicológicos, de seu corpo, de suas capacida-des intelectuais, de seu trabalho, de seu valor moral.

A violência sexual é uma forma de violência física e psicológica, es-pecialmente destruidora e humilhante, que reforça a supremacia e o po-der do macho. Sua imensa destrutividade explica por que é utilizada comumente como punição e tortura em guerras, prisões, interrogatórios policiais de presos comuns e políticos, de ambos os sexos e de todos os gêneros não-masculinos.

A violência institucional – praticada em hospitais psiquiátricos, pri-sões, abrigos, escolas, igrejas e conventos, por exemplo – é especialmen-te grave porque é praticada por deespecialmen-tentores autorizados de poder e/ou saber, contra pessoas em situação de especial fragilidade, impossibilita-das de defesa.

O sistema patriarcal constitui, em si mesmo, uma violência social e política contra os gêneros não-masculinos, deslegitimando sua cidadania e alijando-os do exercício do poder, seja ele privado ou público.

Não-cidadania: a violência negada

Numa sociedade patriarcal, adultocêntrica, machista, autoritária e de-sigual como a brasileira, existe ainda muita resistência ao fato de que todos os cidadãos devem ter direitos iguais – e mesmo que têm direitos. Não é por acaso que no Brasil as crianças, as mulheres, os homossexuais masculinos, os transexuais e os travestis não gozam de direitos identitários, sociais e políti-cos. Em virtude dessa não-cidadania, as violências perpetradas contra esses grupos não são levadas em conta. Dominá-los, golpeá-los, humilhá-los, eliminá-los física e socialmente é aceito como o correto, como o que deve ser feito para mantê-los em seu lugar de inferiores e subalternos.

A manutenção, reprodução e perpetuação desse tipo de sociedade são resultados do que é feito na família, nas escolas, nas igrejas, na justiça, na tevê – tudo isso com base em mitos ancestrais, como o da pedagogia que emite a dupla mensagem “te bato e te corrijo para o teu bem”; o da “natu-reza sexual incontrolável” do homem; o da “prostituição como um traba-lho igual aos outros e a mais velha profissão do mundo”; e o da “natural divisão biológica macho e fêmea”.

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Aqueles que se arvoram de “educadores” e buscam “corrigir os des-viados” estão convencidos de uma missão, um dever – produzir e reprodu-zir a hierarquia “salvadora”, contribuindo com a disseminação do homo-gêneo. Parece que, para existir, a violência de gênero – incorporada à sociedade patriarcal e machista – deve ser “confirmada” por outros que não suas vítimas. Não à toa o testemunho e as denúncias dessa violência são rotineiramente desqualificados. Como lembra Patrick Baudry (1997),

“toda posição dogmática diminui o valor do testemunho. O não-saber fun-damental da palavra humana pode tornar-se o próprio argumento de um discurso terrorista”.

Essa ideologia, ainda hegemônica na sociedade brasileira, sustenta os pactos familiares, comunitários, institucionais e societários de aprova-ção ou tolerância, silêncio e impunidade frente às diferentes formas de violência e aos crimes cometidos contra os gêneros não-masculinos.

Os defensores da cidadania e dos direitos humanos, críticos desse sistema e militantes dessa causa, são rejeitados e acusados de proteger vio-lentados e “desviados”: as crianças e os adolescentes que denunciam os abusos de que são vítimas, as mulheres “liberadas” e os homossexuais, travestis e transexuais “pervertidos”.

A resistência de gênero

A luta dos gêneros não-masculinos contra o ancestral domínio patriar-cal tem sido incessante, organizada e crescente. Apesar dos riscos, denúncias têm sido feitas e mitos têm sido derrubados por intermédio da divulgação de pesquisas, da publicação de artigos e livros, da produção de filmes. No mun-do inteiro, os movimentos feministas e as organizações de homossexuais e transexuais vêm provocando uma das maiores revoluções da humanidade.

Trata-se de uma batalha irreversível, mas de longa duração.