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1 A propósito da violência e da violência no trabalho

3 Violência ou dominação simbólica?

Antes de passarmos aos próximos tópicos, gostaríamos de resgatar o trabalho de Cristophe Dejours (1999) sobre o assédio moral. Para ele é preciso, antes de tudo, entender a questão da violência como grande diferencial entre o sistema neoliberal que vivemos e os sistemas totalitários. Na ditadura, diz ele, a violência é usada sistematicamente para submeter às pessoas, no sistema neoliberal, ao contrário, a banalização da injustiça não passa pelo exercício da violência, mas pela colaboração da maioria das pessoas que compõe o sistema, por isto ele diz que a violência passa pela dominação simbólica..

Este autor define que uma conduta é violenta se coloca em ato uma intenção de destruição ou de alteração de um objeto, mesmo que este objeto não esteja ciente da intenção. Dentro da categoria violência no trabalho, ele defende a existência de dois tipos de configurações subjetivas: a violência de tipo reativa e a violência de tipo ativa. (DEJOURS, 1999) A violência reativa é mobilizada por uma reação subjetiva, ocorrida no limite da vontade do sujeito, no momento em que perde o controle de si. Este tipo de conduta violenta é vista nas condutas compulsivas de vandalismo, sabotagem, ameaças à mão armada contra outros empregados, ou seja, condutas impulsivas que são resultado de injustiças ou de sofrimentos nascidos no ambiente de trabalho. Já o tipo ativo revela a intenção premeditada, implica o exercício de uma vontade deliberada para danar, agredir. Nas empresas, diz este autor, ela aparece diretamente ligada ao sadismo, ou seja, ao prazer ou antecipação de um prazer de fazer o outro sofrer.

No caso da violência dita reativa a identidade do sujeito está em perigo, e é para tentar resguardar sua identidade que este age impulsivamente. Certas pessoas, diz o autor, diante do impasse de uma situação que ultrapassa sua capacidade psicológica de suportar, acabam agredindo o outro. Por outro lado, na violência ativa, a identidade em risco não é a do agressor, mas a da vítima. Nela, a violência ativa visa roubar a identidade do outro, degradando-a, deteriorando-a ou destruindo-a. Dejours (1999) desnuda o processo psicológico que faz com que diante da violência os sujeitos percam sua subjetividade, pois todas as formas de constrição dirigidas ao corpo destroem sua afetividade:

trancar alguém dentro de uma prisão, jogá-lo no isolamento, privá-lo de todo tipo de estímulo.. ou ao, contrário, submetê-lo a muitos estímulos sem dar ao sujeito a capacidade de absorvê-los ou processá-los, levam à violência. Impedir um corpo de urinar, privá-lo de alimentos ou bebida, ao contrário, obrigá-lo a beber sem sede, impedi-lo de dormir quando precisa descanso, impor uma posição fixa quando ele precisaria se mexer etc.. todas estas manobras sobre o corpo têm em comum humilhar e contrariar as necessidades fisiológicas. A partir de um certo nível de constrição, a fortiori si se infligem dores ou ferimentos ao corpo, colocamos paradoxalmente o corpo contra a obtenção das necessidades fisiológicas contrariadas. Então, o pensamento se esvazia progressivamente pelo apelo das necessidades, o campo da consciência se contrai, o pensamento se polariza, a vida do espírito é abolida. No limite, não há mais um sujeito, ou seja, o corpo subjetivo se dissolveu no corpo fisiológico. O sujeito é levado a cuidar das funções imperiosas, as funções fisiológicas ou a sua humanidade se perde. (DEJOURS, 1999, p. 20, tradução nossa)

O autor explica que em muitos casos a violência não visa a morte do sujeito, mas utilizar de sua submissão ou envolver a vítima em atos que esta não cometeria, se não estivesse submetida pela manipulação violenta exercida contra ela.

Dejours (1999) explica que um ato violento stricto sensu tem como características a mobilização da vontade do sujeito e a abolição de seu senso de moral. Para ele, a violência fica à margem do sistema e a maioria das pessoas consente em participar do sistema sem ser ameaçada de violência. Este consentimento, em sua opinião, é resultado de uma dominação simbólica e não da violência direta.

Podemos trazer isto para a realidade do assédio moral quando refletimos que muitas pessoas assistem ou participam das situações de assédio não porque são obrigadas, o autor sublinha que não há violência stricto sensu. O que as “obriga” a calarem-se é uma violência mais sutil, que fica num segundo plano. Para ele, dentro do mundo do trabalho o modo que esta dominação simbólica subtrai as vontades ou ataca a integridade de cada pessoa não se dá pela violência, mas através da persuasão, através de um discurso coerente e de instrumentos de comunicação eficientes, que ofuscam o prestígio de outros discursos. Portanto, não é através de ameaças, mas através da “sedução”, que as pessoas consentem em participar desta banalização da injustiça.

Dejours (1999) ressalta que costumamos atribuir os atos violentos a pessoas com psicopatologias individuais independente do contexto do trabalho, mas a análise detalhada

revela que esta fragilidade psicológica parece ser provocada, ou ao menos revelada e agravada, pelo contexto do trabalho. O autor explica como o processo acontece: 1) um momento de indignação e revolta nasce dentro do sujeito, 2) ao invés de criar emoção e mobilização coletiva isola ainda mais o sujeito, 3) a passividade, a inércia dos colegas, provavelmente devido à sua submissão à dominação simbólica, aumenta o sofrimento do sujeito; 4) ele critica o comportamento dos colegas, aumentando seu isolamento; 5) ele começa a ter comportamentos violentos ou agressivos que faz com que ele se isole ainda mais. Neste momento o sujeito entra em um estado mórbido onde ele busca defender-se a seu próprio modo.

Assim, para Dejours (1999), a organização do trabalho não utiliza a violência, mas gera a violência na forma de patologias individuais ou, em outras palavras, a dominação simbólica não-violenta faz eclodir a violência nos outros. Então, algumas formas de violência individuais (como por exemplo, o assédio moral) nascem entre aqueles que, incluídos dentro do mundo do trabalho, recusam as condições psíquicas encontradas, se fragilizando psicológica e socialmente, e a dominação simbólica é parte fundamental deste processo que pode ser descrito, nas palavras do autor como “violência reativa como resposta à dominação simbólica”. (DEJOURS, 1999, p. 26) Na sua visão, o que permite a banalização do assédio moral e da tolerância social face a esta injustiça não é o exercício da violência explícita, mas o exercício de uma violência muito mais sutil, simbólica.