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VIOLÊNCIA REVOLUCIONÁRIA

No documento A FILOSOFIA DO DIREITO EM WALTER BENJAMIN (páginas 94-98)

Do mesmo modo como, em todas as áreas, Deus se opõe ao mito, assim também opõe-se ao poder mítico o poder divino. Se o poder mítico é instituinte do direito, o poder divino é destruidor do direito [...] (Benjamin, Crítica da violência - crítica do poder ).

Convivemos diuturnamente com a violência mítica, que é uma violência imediata, ou seja, uma violência que é só manifestação e não meio para um fim. Essa violência, já se ressaltou, pode engendrar a violência que institui e mantém o direito; que institui e mantém aquela ordem do destino da qual não se pode escapar.

Embora a violência que institui o direito seja admitida, ela não está prevista no ordenamento jurídico. É tão-somente uma violência aceita pelo direito, mas que, segundo Benjamin, está fora, está além do direito.

Benjamin pretendeu no ensaio Crítica da violência comprovar a existência de uma violência fora, além do direito.

A discussão quanto à existência ou não de uma violência que não tem previsão legal é muito importante, pois, como exposto, a teoria do direito moderna tenta afastar a possibilidade de um poder fora do direito, de uma anomia, pois esse poder fora do direito ameaça o próprio direito. Portanto, não se trata de pretender afastar a possibilidade de um poder além do direito para garantir os fins jurídicos, ou seja, garantir aqueles fins legitimados, mas de garantir o próprio direito. O direito quer se garantir mais do que garantir os fins que legitima.

Será a existência da violência mítica, que está fora do direito, que garantirá, segundo Benjamin, a existência de uma outra violência, que também não se encontra inserida no ordenamento jurídico, e que possibilitará romper com o direito instituído, com a dialética entre a violência instituidora e mantenedora do direito. Essa outra violência que está fora do direito é a violência pura ou violência divina 163.

Desdobrando sua crítica, Benjamin deduz da identidade entre a Gewalt mítica e a do sistema jurídico a tarefa (Aufgabe) da sua aniquilação. Esta só pode se dar via oposição da Gewaltmmítica por parte de uma outra, com um

163 O termo “violência divina”, utilizado por Benjamin para expressar a violência que depõe o direito,

caráter inteiramente outro, que barre a simples reprodução desta força. Trata-se de encontrar uma Gewalt pura e imediata164.

A violência divina não está relacionada a um fim, não é meio para um fim. É apenas manifestação sem quaisquer condicionamentos. Como não tem um fim, não é um meio para atingir determinado objetivo, é pura. A violência pura é apenas manifestação.

Embora não esteja relacionada a um fim, é a violência divina que abre a possibilidade de saída do estado de exceção.

A garantia da existência da violência pura além do direito torna possível a violência revolucionária, que é a violência manifestada pelo homem. Ou seja, é a violência pura na esfera humana.

Se a existência do poder, enquanto poder puro e imediato, é garantida também além do direito fica provada a possibilidade do poder revolucionário, termo pelo qual deve ser designada a mais alta manifestação do poder puro, por parte do homem165.

A importância da violência revolucionária, que é pura, decorre do fato de ela ser responsável por romper a dialética existente entre a violência instituidora do direito e a violência mantenedora do direito.

A violência pura não tem o intuito de instituir ou manter o direito. Neste sentido, ela rompe aquela ordem ameaçadora do destino. Ao promover a ruptura com o direito instituído, com a ordem demoníaca do destino, ela não faz surgir um novo direito, neste sentido, portanto, diferencia-se da violência mítica. A violência pura depõe o direito. Ao romper a dialética entre violência que põe e violência que mantém o direito, a violência pura inaugura uma nova história. Esta nova história pode não se identificar com a catástrofe, pois o fim do direito pode tornar possível uma nova história, uma história que recupera a vida.

Longe de abrir uma perspectiva mais pura, a manifestação mítica do poder imediato mostra-se profundamente idêntica a todo poder jurídico, fazendo com que a suspeita de sua problemática se transforma em certeza do

164 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Walter Benjamin: o estado de exceção entre o político e o estético.

In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). Leituras de Walter Benjamin. São Paulo: FAPESP: Annablume, 2007, p. 222.

165 BENJAMIN, Walter. Critica da violência – crítica do poder. In: BENJAMIN, Walter. Documentos de

cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. São Paulo: Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, 1986, p. 175.

caráter nefasto de sua função histórica, levando assim à proposta de seu aniquilamento. Tal tarefa suscita, em última instância, mais uma vez, a questão de um poder puro, imediato que possa impedir a marcha do poder mítico 166.

Só a violência pura, que não está no direito, é capaz de libertar o homem daquela ordem demoníaca do destino, de construir uma outra história que não seja apenas a história dos vencedores. Portanto, a violência pura é uma manifestação que invade o continuum da história para romper com o vir-a-ser. A violência pura promove a saída do vir-a-ser para o Ser. A violência pura é o momento em que o passado é resgatado para tornar possível a construção de um futuro livre da opressão.

A violência pura é a não-violência, é o momento em que se tem a não-violência, ou seja, em que se depõe o poder do estado e todo o ordenamento jurídico que o fundamenta. É apenas uma violência capaz de findar com a mera vida 167.

No momento da violência divina há a destruição da lei. Assim, pode-se afirmar que a violência pura pode possibilitar o nascimento da justiça. A justiça não é certa, é apenas uma possibilidade decorrente da saída do vir-a-ser. A violência pura é apenas uma abertura para a justiça, mas como o futuro não é certo, não é possível afirmar que com a violência pura haja o surgimento da justiça.

O poder divino é, portanto, aniquilador. Mas ao contrário do poder mítico que aniquila a vida, o poder divino não aniquila o homem, a vida, mas o estado de exceção. Enquanto a violência que institui e mantém o direito pretende afastar a possibilidade de fim da catástrofe, a violência pura é a possibilidade de se alcançar a justiça.

Importante destacar que a ideia de uma violência que elimina diretamente o Estado e a lei é anarquista, como admite Benjamin no ensaio Crítica, conforme ressaltado. Marx propõe que a violência revolucionária, embora em última instância vise uma sociedade sem classes e sem Estado, não elimina imediatamente o

166 BENJAMIN, Walter. BENJAMIN, Walter. Critica da violência – crítica do poder. In:, documentos de

barbárie: escritos escolhidos. São Paulo: Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, 1986, p. 172- 173.

Estado, mas institui ainda um aparato estatal transitório, que é a ditadura do proletariado.

Lenin, ao desenvolver o conceito de violência revolucionária em O Estado e a revolução, explica que a ditadura do proletariado consistiria, ao mesmo tempo, numa democracia para os operários (via sovietes) e numa ditadura sobre a burguesia, a ditadura persistiria até que fossem eliminadas as distinções de classe. Ou seja, a dualidade opressores/oprimidos (e, portanto, o poder jurídico) teria um capítulo final, no qual burguesia e proletariado inverteriam seus papéis.

Neste ponto, portanto, a formulação de Benjamin sobre a violência revolucionária está mais próxima de Sorel, um anarquista, do que de Marx.

Entretanto, não se pode relevar o fato de que, para Marx, o poder político é o poder organizado de uma classe opressora sobre uma classe oprimida168, ou seja, é o poder do Estado. Ainda se pode afirmar que esse poder político-Gewalt, para Marx, perderá o caráter político com o fim da sociedade burguesa. Isso significa afirmar que, mesmo com o desaparecimento da sociedade burguesa, persistirá um poder, que não será político, mas apenas público. Um poder-força ou força política (politischen Kraft), reconhecido como uma força social não separada do homem.

Neste sentido, pode-se concluir que o conceito de violência, que se encontra fora do direito, de Benjamin, aproxima-se do conceito de poder político de Marx, pois para este, embora acabe a Gewalt, persiste a força.

No documento A FILOSOFIA DO DIREITO EM WALTER BENJAMIN (páginas 94-98)