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15.1 Os sistemas clássicos de interpretação das regras que regulam as relações humanas e sua adequação no mundo jurídico contemporâneo.

A tradição jurídica considerava a atividade interpretativa uma verdadeira ciência, nos moldes positivo-lógicos, a qual deveria seguir um rigoroso método de investigação, como forma de legitimação de seus resultados. Assim, Maximiliano considerava a Hermenêutica Jurídica a ciência que estudava e sistematizava os processos utilizáveis para a fixação de sentido e alcance das expressões do Direito340. Desta forma, a Hermenêutica Jurídica deveria seguir passos bem delineados e concatenados para uma correta interpretação do Direito, respectivamente ordenados: processo gramatical; processo lógico; processo sistêmico e processo teleológico.

O primeiro passo para uma ‘correta’ interpretação do Direito teve sua origem no início das sociedades civilizadas, nas quais as prescrições de ordem social proviriam da palavra divina, revelada ao legislador. Desta forma, não se discutia o porquê da norma, dever-se-ia apenas cumpri-la. Para uma correta apreciação da ‘intenção da norma’, bastaria conhecer profundamente a língua em que foi emanada. O processo gramatical tinha como mandamentos para o intérprete uma série de requisitos como: o conhecimento perfeito da língua em que foi escrita e

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Idem. Ibidem, p. 70.

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MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 11ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 1.

do objeto da norma; o estudo prévio sobre a vida do legislador; e a certeza da autenticidade do texto. Quanto às possíveis dúvidas acerca de palavras no substrato textual das normas, privilegiando-se o princípio da segurança jurídica, o intérprete deveria: a) preferir o sentido atribuído à palavra ao tempo em que foi emanada pelo legislador ao invés do sentido que possui ao tempo em que está sendo interpretada; b) havendo discrepância entre o sentido ordinário de uma palavra e o geralmente adotado por um legislador, prefere-se o último; e, não existindo elementos de convicção em sentido diverso e presumindo-se que o legislador foi sempre ciente de sua obrigação de ser o mais preciso possível, o intérprete deve ater-se à letra do texto341.

Uma vez utilizado o processo gramatical e não se obtendo uma ‘correta’ interpretação da norma, utilizar-se-ia o processo lógico. Este consistiria na procura pelo sentido e o alcance das expressões jurídicas sem se valer de nenhum elemento exterior ao dispositivo interpretado, valendo-se do raciocínio dedutivo342 para a obtenção da interpretação ‘correta’ da norma343.

Após o processo lógico, viria o processo sistemático que compararia o dispositivo a ser interpretado com outros referentes ao mesmo objeto, existentes na mesma norma ou no mesmo sistema jurídico. Este processo era guiado pela crença na conexão íntima entre as partes de um sistema científico e, considerando-se que o Direito constituía-se num sistema e não num amontoado caótico de normas, uma correta interpretação adviria de uma visão global do sistema, adquirindo a

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Idem. Ibidem, pp. 107-109 e 120-121.

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O qual é elaborado a partir da passagem necessária de premissas à conclusão, tal como explicado por ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Traduzido por Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2000, pp. 39-42.

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interpretação de uma norma presunção de certeza quando confirmada pelo estudo de outras normas do mesmo sistema344.

O processo teleológico seria o próximo passo no método da Hermenêutica Jurídica e consideraria a finalidade da Lei, o porquê de sua criação, tendo em vista que, para atingir a sua atuação prática, a norma deve ser interpretada de forma que melhor corresponda à sua finalidade colimada. Neste processo de interpretação, considerar-se-iam as condições sociais presentes à época em que a norma surgiu, como forma de limitar-lhe o conteúdo e completar ou retificá-la. Como diretivas para este processo, destacavam-se: a atribuição textual de um sentido favorável e não prejudicial à espécie tutelada; e a premissa que os títulos, as epígrafes, o preâmbulo e as exposições de motivos auxiliariam ao reconhecimento do fim da norma345.

Entretanto, observa-se que não há uma obrigatória necessidade de se seguir o rígido processo anterior para a interpretação de normas jurídicas. Os “processos interpretativos” lógico, sistêmico e teleológico, respectivamente, surgiram como formas de corrigir os erros do anterior, porém, não adstritos ao prévio uso dos demais, na ordem mencionada.

Desta forma, a denominação mais adequada para estes “processos interpretativos” seria a de ‘argumentos ou estratégias de interpretação jurídica’, observando-se que a incompatibilidade da interpretação gramatical ao progresso da sociedade, em virtude de seu evidente formalismo, gerou a interpretação lógica. Todavia, esta interpretação padecia de semelhante defeito do anterior: ela era rígida demais e não se adaptava à regulação da vida humana, objeto do direito, que é

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Idem. Ibidem, p. 130.

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multifacetada. A aparência de certeza científica e rigor de raciocínio dificultam a atividade interpretativa afastando-se do ideal jurídico de um direito socialmente efetivo346. Assim, sugeriu-se a interpretação sistêmica, porém esta restringe a interpretação a elementos intra-sistêmicos, desprezando a importante ligação de elementos da realidade sócio-histórica com o direito, que é uma ciência voltada para a atividade humana. Por isso, adveio a interpretação teleológica.

Outrossim, deve-se atentar para a necessidade de se fazer um juízo interpretativo não somente regressivo (teleológico – busca das razões da norma) como também um juízo interpretativo prospectivo (teleológico ou, então, deontológico – o qual relaciona-se com os deveres ou objetivos do direito), encarando não somente a história da criação das normas, mas também o papel que estas podem desempenhar na realidade, sem que precisem ser formalmente alteradas347.

15.2 A exegese e a interpretação.

Convém, neste ponto, fazer uma pequena digressão histórica acerca do surgimento dos termos exegese e interpretação a fim de melhor esclarecer ambas as palavras. O termo interpretação deriva-se do latim interpretatio, verbo derivado de interpres348 e tem duas origens possíveis: surgiu do diálogo entre vendedor e comprador na busca do preço adequado a ambas as partes; ou advém da revelação do futuro pela leitura das entranhas de certos animais (hepatoscopia),

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Idem. Ibidem, pp. 123-124.

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No presente trabalho estes juízos interpretativos foram denominados ‘estratégias’ interpretativas e serão adequadamente explicadas em 16.1, infra.

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sendo o intérprete uma espécie de mago, vidente ou sacerdote. Esse sacerdote era um intermediário entre as divindades e os homens349.

A segunda hipótese da origem do termo interpretação, condizia com o uso feito durante a história humana no sentido da extração de um sentido escondido, a ser revelado. Neste trabalho, adotar-se-á como origem do termo interpretação a primeira hipótese, uma vez que nela pressupõe-se que a interpretação é uma atividade de construção do significado e do alcance de um texto por meio da união da intenção do autor, do leitor e da obra em si mesma350. Em última análise, a segunda hipótese levantada conduz ao conceito do termo exegese.

A palavra exegese advém do grego exegeomai, palavra extraída do verbo exegesis351. O prefixo ex tem o sentido de extrair, externar, exteriorizar, expor; ou seja, como em boa parte da história humana, conduzir ou guiar. O termo exegese expressa uma revelação, significado este que tomou força como termo que explicitava a interpretação dos textos bíblicos. Exegese é termo que se ligou historicamente à interpretação das Sagradas Escrituras desde o século II da Era Cristã, como método de revelação das mensagens profundas existentes nas entrelinhas dos textos sagrados, os quais eram acessíveis apenas aos escolhidos.

Para estabelecer uma distinção significativa entre exegese e interpretação, é necessário diferenciar a explicação e a compreensão352. Interpretar uma norma significa compreender a norma. O Direito é uma parte da cultura, daquilo

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DJI. Interpretação da Lei. Disponível em: <http://www.dji.com.br/civil/interpretação_da_Lei.htm>. Acesso em: 05 mar 2003.

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Conforme as já mencionadas intentio auctoris, intentio lectoris e intentio operis, de ECO, Umberto. Os

limites da interpretação. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 6. 351

HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Op. cit., p. 1283.

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CORETH, Emerich. Questões fundamentais de hermenêutica. Tradução de Carlos Lopes de Matos. São Paulo: EPU, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973, p. 19-20.

que o homem cria em seu próprio benefício e que acrescenta ao mundo da natureza. A cultura e a natureza não podem ser conhecidas da mesma maneira. A cultura se compreende (atividade que envolve a ação de sentimentos), mas a natureza somente se explica.

A explicação de um fenômeno natural significa revelar suas causas, ou seja, consiste na revelação de seus nexos com os fenômenos que o precederam. A explicação objetiva revelar aquilo que na realidade mesma se contém. Ela é direta e voltada para a realidade empírica. Quanto a aspectos deontológicos, permanece neutra. A explicação de um fenômeno da natureza passa diretamente do fato observado para o enunciado da Lei, sem considerar uma possível valoração do fato. Uma explicação é uma mera descrição das causas de um fato. Para o mundo da cultura, entretanto, a explicação não basta. Conhecer não é explicar de que material um objeto cultural é feito, ou quem é seu autor. Conhecer é chegar ao seu sentido, o seu significado. Para compreender qualquer manifestação cultural, é necessário entendê-la em razão dos seus fins.

Assim, compreender é um fenômeno cultural porque na natureza os fenômenos se desenvolvem em razão de fins alheios ao conhecimento humano. O homem conhece apenas o fim de seus próprios atos, porque as ações humanas são produzidas pelo próprio homem. Conhecer um ato humano é interpretá-lo e construir o seu significado, teleológica e deontologicamente. Portanto, como o Direito e suas normas integram o mundo cultural, sua interpretação deve ser encarada de forma não reveladora, mas sim construtiva de seu significado. A explanação acerca das estratégias de construção do significado das normas jurídicas é o próximo objetivo.