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1 INTRODUÇÃO

2.1 A EVOLUÇÃO DA CONCEPÇÃO DE CIÊNCIA

2.1.3 A Visão Moderna de Ciência

Como vimos, o exame cuidadoso da história da ciência e os argumentos filosóficos desenvolvidos pelos filósofos da ciência contemporâneos mostram que a visão clássica de ciência não somente não corresponde ao que de fato ocorreu e continua ocorrendo com as ciências bem estabelecidas, como também pressupõe procedimentos impossíveis de serem respeitados. Vimos, na seção anterior, que a visão comum de ciência, segundo a qual as teorias científicas são o resultado da aplicação de um método indutivo seguro a uma base empírica neutra e sólida, enfrenta dificuldades de várias ordens. Quando isso foi se tornando claro, começou a busca de uma concepção de ciência que não ficasse sujeita às limitações

daquela concepção. Muito embora os desenvolvimentos nesse sentido hajam mostrado que a tarefa de reunir sob uma descrição única o complexo, variado e dinâmico elenco das teorias científicas é, até certo ponto, irrealizável, existe um relativo acordo sobre algumas características centrais da ciência (CHIBENI, 1998). A presente seção será dedicada à exposição sucinta dessas características.

O movimento filosófico conhecido como positivismo lógico, cujo núcleo original formou-se em torno do chamado Círculo de Viena, na década de 1920, exerceu uma influência marcante sobre a comunidade científica, que perdura até nossos dias, não obstante a sua insustentabilidade perante as objeções incisivas que foram levantadas já em 1934, pelo filósofo Karl Popper, exatamente quando essa doutrina vivia o seu apogeu. Entretanto, tais objeções, enfeixadas no livro Logik der Forschung, publicado em Viena naquele ano, foram ignoradas durante quase trinta anos, só recebendo atenção no final da década de 1950, quando os próprios positivistas lógicos já haviam admitido muitas limitações no seu programa original. Em 1959, o livro de Popper foi revisto, ampliado e vertido para o inglês, sob o título The Logic of Scientific Discovery. A partir de então instalou-se um período de significativos avanços na filosofia da ciência, com o aperfeiçoamento e crítica das teses popperianas, e com o aparecimento de outras concepções de ciência, entre as quais cumpre destacar as de Thomas Kuhn e Imre Lakatos (CHIBENI, 1998).

A idéia central de Popper é a de substituir o empirismo justificacionista- indutivista da concepção tradicional por um empirismo não-justificacionista e não-indutivista, que ficou conhecido por falseacionismo. Popper rejeita que as teorias científicas sejam construídas por um processo indutivo a partir de uma base empírica neutra, e propõe que elas têm um caráter completamente conjetural. Teorias são criações livres da mente, destinadas a ajustar-se tão bem quanto possível ao conjunto de fenômenos de que tratam. Uma vez proposta, uma teoria deve ser rigorosamente testada por observações e experimentos. Se

falhar, deve ser sumariamente eliminada e substituída por outra capaz de passar nos testes em que a anterior falhou, bem como em todos aqueles nos quais tenha passado. Assim, a ciência avança por um processo de tentativa e erro, conjeturas e refutações. “Aprendemos com nossos erros”, enfatiza Popper (POPPER, 1968, 1972). Em suas palavras Popper afirma que: “Nosso conhecimento consiste, em cada momento, daquelas hipóteses que mostraram sua (relativa) adaptação, por terem até então sobrevivido em sua luta pela existência, uma luta competitiva que elimina as hipóteses não-adaptadas.” (1968, p. 261). Enfatizando a primazia que dá a teorias altamente falsificáveis, Popper assume que:

Eu posso, portanto, admitir alegremente que falsificacionistas como eu preferem uma tentativa de resolver um problema interessante por uma conjectura audaciosa, mesmo (e especialmente) se ela logo se revela falsa, a alguma récita da seqüência de truísmos irrelevantes. Preferimos isto porque acreditamos que esta é a maneira pela qual podemos prender com nossos erros; e porque ao descobrirmos que nossa conjectura era falsa podemos ter aprendido muito sobre a verdade, e teremos chegado mais perto dela. (POPPER, 1968, p. 231)

Para Popper, a cientificidade de uma teoria reside não em sua impossível prova a partir de uma base empírica, mas em sua refutabilidade. Ele argumenta que somente as teorias passíveis de serem falseadas por observações fornecem informação sobre o mundo; as que estejam fora do alcance da refutação empírica não possuem “pontos de contato” com a realidade, e sobre ela nada dizem, mesmo quando na aparência digam, caindo no âmbito da metafísica.

Convém dizer que, segundo a concepção falseacionista, a investigação científica não pretende começar por observações. Discorrendo sobre as relações entre observação e teoria, Popper afirma:

Acredito que a teoria  pelo menos alguma expectativa ou teoria rudimentar  sempre vem primeiro, sempre precede a observação; e que o papel fundamental das observações e testes experimentais é mostrar que algumas de nossas teorias são falsas, estimulando-nos assim a produzir teorias melhores.

Conseguintemente, digo que não partimos de observações, mas sempre de problemas  seja de problemas práticos ou de uma teoria que tenha topado com dificuldades. (Conhecimento Objetivo, p. 258.).

Foge ao escopo deste trabalho efetuar uma análise completa do pensamento popperiano, bem como avaliar as críticas que lhe foram feitas. Convém apenas extrair da

análise de Chibeni (1998) o fato de que mesmo as versões mais sofisticadas do falseacionismo não estão isentas de dificuldades, o que deu lugar ao surgimento de diversas teorias da ciência alternativas. Essas teorias vão desde a metodologia dos programas científicos de pesquisa, de Lakatos, entendidas como continuação das idéias popperianas, até o auto-denominado “dadaísmo metodológico”, ou, o assim chamado, por outros, “anarquismo”, de Paul Feyerabend, que nega a existência de qualquer método na ciência (CHALMERS, 1982; FEYERABEND, 1978). Daremos abaixo uma descrição breve das idéias centrais de Lakatos, não somente por suas virtudes intrínsecas, mas também por servir bem às nossas construções teóricas e análises posteriores. Antes, porém, exporemos de forma sucinta algumas das objeções que têm sido levantadas contra o falseacionismo, e que motivaram o desenvolvimento das concepções lakatosianas.

Segundo Quine (1953a), as verdadeiras teorias nunca são proposições gerais isoladas, mas conjuntos de tais proposições, e não podem, além disso, ser submetidas a testes empíricos senão quando suplementadas por teorias e hipóteses auxiliares, proposições acerca das condições iniciais e de contorno, etc. Se então esse complexo de proposições permite inferir uma proposição que conflita com alguma evidência empírica, o máximo que a lógica nos informa é que o conjunto de proposições está refutado, caso se assuma a verdade dessa evidência. Porém, interessa notar, que Quine não responsabiliza por essa refutação apenas uma das proposições do conjunto, nem mesmo o subconjunto delas que constitui a teoria particular que estamos procurando testar.

Quine (1953a) expressou metaforicamente o problema considerando que nossas proposições sobre o mundo externo enfrentam o tribunal da experiência sensível não individualmente, mas corporativamente. Ilustrou as relações entre teoria e experiência utilizando-se de duas metáforas. A primeira é a de que a totalidade do conhecimento é um tecido feito pelo homem, que toca a experiência somente em suas bordas. E, na segunda; a

ciência é como um campo de força que tem como condições de contorno a experiência. Assim, um conflito periférico na experiência causa reajustes no interior do campo. A reavaliação de algumas proposições implica na reavaliação de outras, devido às interconexões lógicas entre todas elas. Mas o campo é de tal modo subdeterminado por suas condições de contorno (a experiência), que há muita liberdade de escolha sobre quais proposições devem ser reavaliadas à luz de qualquer experiência individual contrária.

Com isso, Quine objeta alguns dos fundamentos da concepção falseacionista de ciência, pois assume que as previsões teóricas e observações são resolvidas não pelo abandono da teoria particular que levou à previsão, mas por ajustes nas teorias subsidiárias requeridas para a efetivação do teste. Essa observação de Quine, segundo Chibeni (1998), ganha relevância quando é confrontada com o testemunho da história da ciência, que fornece muitos exemplos desses conflitos e reajustamentos.

Chibeni finaliza sua exposição de algumas das principais dificuldades do falseacionismo, mencionando que: “temos ainda que mencionar que a ênfase que dá ao processo de falseamento das teorias conduz freqüentemente a uma subestimação do papel das confirmações3 no desenvolvimento da ciência” (1998, p. 9). O falseacionismo não reconhecia a importância das confirmações, de vez que considera as observações e os experimentos como testes de nossas conjeturas ou hipóteses, como tentativas de refutação. Isso fica claro quando Popper aconselha: “Tenha por ambição refutar e substituir suas próprias teorias.” (POPPER, 1972b, p. 266), ou ainda nesta frases: “Todo teste genuíno de uma teoria é uma tentativa de falseá-la ou refutá-la” (p. 36). A esse respeito Chibeni expressa que:

Não podemos disfarçar nossa estranheza diante de tais afirmações, dado seu contraste com a atitude usual dos cientistas, que vem norteando o desenvolvimento da ciência. (...) Definitivamente, parece não haver exemplos de cientistas que se tenham empenhado ansiosamente na refutação de suas próprias teorias, ou daquelas com as quais simpatizem. (1998, pp. 9-10)

3 .O sentido de “confirmação” não é o da concepção tradicional de ciência, que em geral se confunde com “prova”; por esse termo Chibeni significa apenas a “evidência empírica favorável”.

Naturalmente, porém, o pensamento popperiano mostra-se mais refinado quando é visto em seu todo, que, embora não tenha feito justiça plena ao papel que a confirmação efetivamente desempenha na ciência, chega a tratar da “evidência corroborativa” (CHIBENI, 1998, p. 10). Isso fica claro quando Popper considera que: “Evidência confirmatória não deve contar, exceto quando é o resultado de um teste genuíno da teoria, ou seja, quando possa ser apresentada como uma tentativa séria, não obstante mal sucedida, de falsear a teoria.” (POPPER, 1972a, p. 36). Chalmers, no entanto, sugere que o cientista deve observar a irrelevância de certas refutações para a ciência.

É um erro ver a falsificação de conjecturas audaciosas, altamente falsificáveis, como ocasiões de avanços significativos na ciência (...) Serão assinalados avanços significativos pela confirmação de conjeturas audaciosas ou pela falsificação de conjecturas cautelosas. Casos do primeiro tipo serão informativos, e constituirão uma importante contribuição ao conhecimento científico, simplesmente porque assinalam a descoberta de algo que era previamente desconhecido ou considerado improvável (...) As falsificação de conjecturas cautelosas é informativa porque estabelece que o que era visto como uma verdade não-problemática é, na realidade, falso. (...) Em contraste, pouco se aprende a partir da falsificação de uma conjectura audaciosa ou da confirmação de uma conjectura cautelosa. Se uma conjectura audaciosa é falseada, então tudo o que se aprende é que mais uma idéia maluca revelou-se errada (...) Da mesma forma, a confirmação de hipóteses cautelosas não é informativa. Tais confirmações simplesmente indicam que alguma teoria que era bem estabelecida e vista como não-problemática foi aplicada com sucesso mais uma vez. (CHALMERS, 1982, pp. 83-84).

Posto isso, porém, seria lógico concluir que se o objetivo precípuo dos cientistas fosse refutar ou falsear, não lhes faltariam razões para dar como refutadas todas as teorias científicas, até as mais bem estabelecidas (CHIBENI, 1998). Assim, Chalmers compartilha da mesma idéia afirmando que:

Um fato embaraçoso para os falsificacionistas é que sua metodologia tem sido aceita estritamente por cientistas cujas teorias são vistas geralmente entre os melhores exemplos de teorias científicas que nunca teriam sido desenvolvidas porque teriam sido rejeitadas ainda na infância. Dado qualquer exemplo de uma teoria científica clássica, seja na época em que foi proposta pela primeira vez ou numa data posterior, é possível encontrar proposições observacionais que eram geralmente aceitas na época e foram consideradas inconsistentes com a teoria. Não obstante, aquelas teorias não foram rejeitadas, e foi bom para a ciência que tenha sido assim. (CHALMERS, 1982, p. 97).

Uma outra constatação em face de algumas das principais limitações das concepções indutivista e falseacionista de ciência, é que, em tais perspectivas, as teorias

científicas e suas relações com a experiência são demasiadamente simples e fragmentárias. Chibeni (1998, p. 10) sustenta essa noção contrapondo uma outra visão mais moderna:

A inspeção da natureza, gênese e desenvolvimento das teorias científicas reais evidencia que devem ser consideradas como estruturas complexas e dinâmicas, que nascem e se elaboram gradativamente, em um processo de influenciação recíproca com a experiência, bem como com outras teorias. Essa visão da ciência é ainda apoiada por argumentos de ordem filosófica e metodológica.

Se é verdade que as teorias científicas devem apoiar-se na experiência  embora não dos modos descritos pelo indutivismo e pelo falseacionismo , residindo mesmo nela a sua principal razão de ser, não é menos verdade que a busca, condução, classificação e análise dos dados empíricos requer diretrizes teóricas. Vale ressaltar que, nem o empiricismo indutivista, e nem o falseacionismo, mas estruturas teóricas complexas e dinâmicas que nascem e se desenvolvem em um processo de simbiose entre teoria, experiência e outras teorias auxiliares. O exame de criação e evolução dos conceitos mais abstratos da ciência mostra que eles surgem tipicamente como idéias vagas, só adquirindo significado gradualmente mais preciso na medida em que as teorias em que comparecem se estruturam, embasam e ganham coerência.

Chalmers também sustenta que uma das razões pelas quais é necessário considerar as teorias como um todo estruturado origina-se de um estudo da história da ciência. O argumento histórico não é, contudo, a única base para essa afirmação. Um outro argumento é que existe uma dependência entre a observação e a teoria. As proposições de observação devem ser formuladas na linguagem de alguma teoria. Consequentemente, as informações e os conceitos que nelas aparecem serão tão precisos e tão informativos quanto for precisa e informativa a linguagem em que forem expressos. Nestes termos, Chalmers afirma que:

A dependência dos sentidos dos conceitos da estrutura da teoria em que ocorrem e a dependência da precisão dos primeiros da precisão e do grau de coerência entre esses últimos podem tornar-se mais plausíveis notando-se as limitações dos modos alternativos em que se pode pensar que um conceito adquira sentido. Uma tal alternativa é o ponto de vista de que os conceitos adquirem seu sentido por meio de uma definição. As definições devem ser rejeitadas como procedimento fundamental para o estabelecimento de sentidos. Os conceitos somente podem ser definidos em termos de outros conceitos, os sentidos dos quais são dados. (CHALMERS, 1982, pp. 109-111).

Assim, o estudo histórico demonstra que as teorias possuem essa característica de estrutura organizada, e somente por meio de uma teoria coerentemente estruturada é que os

conceitos adquirem um sentido preciso. Além disso, a ciência tem necessidade de crescer, a estrutura teórica deve ser progressiva, ou seja, deve incorporar novos princípios que também serão observados empiricamente. Está claro que a ciência avançará mais eficientemente se as teorias forem estruturadas de maneira a conter em seu interior indícios e receitas bastante claras quanto a como elas devem ser desenvolvidas e estendidas, como um programa de pesquisa (CHALMERS, 1982).

Enfim, reforçando essa idéia, e contrastando a proposta indutivista e falseacionista, Chibeni ressalta que “as teorias científicas não consistem de meros aglomerados de leis gerais. Devem incorporar ainda regras metodológicas que disciplinem a absorção de impactos empíricos desfavoráveis, e norteiem as pesquisas futuras com vistas ao seu aperfeiçoamento” (CHIBENI, p. 11).