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VISÕES ILUSTRADAS DE UMA CULTURA VERBAL

A série de Euclides da Cunha não foi acompanhada de fotografias no jornal A Província de São Paulo, mas três imagens16 faziam parte da primeira edição do livro. “Um meio de representação relativamente moderno na produção editorial da época, que reforça o empenho do autor pela presentificação visualizadora: a fotografia”, analisa o pesquisador Berthold Zilly, também tradutor de Os sertões para o alemão. O livro de Euclides se tornou um clássico da literatura brasileira e, para Zilly (1999), o texto é imagético e parece narrar as fotos de Flávio de Barros. Do mesmo modo, o incensado João do Rio (1881-1921), jornalista carioca que ajudou a fundar a reportagem no Brasil, apresenta uma escrita de “estilo inconfundível, visual e imaginístico, e de notável laconismo fotográfico, e que é um dos mais originais de nossa língua literária”, conforme considera Lêdo Ivo (2012, p. 10) na apresentação da coletânea João do Rio: cadeira 26, ocupante 2 (2012), organizada pela Academia Brasileira de Letras. O impacto das novas visualidades é sentido também na prosa de João do Rio – é o olhar da modernidade moldando as formas do texto. “Ele escrevia como se pintasse. Ou fotografasse. Mestre das entressombras, o impressionista João do Rio possuía também uma palheta expressionista habilitada para a produção de paisagens e cenas claras e cruas” (IVO, 2012, p. 12). O repórter publicou em revistas e jornais cariocas, sendo o principal a Gazeta de Notícias. Sua obra é mais conhecida pelos livros17 compostos pelos textos de jornal organizados por temas correlatos e podem ser considerados como crônicas e reportagens em série.

Ivo (2012) recorda como João do Rio encarna o flâneur, figura bastante associada à passagem do século XIX para o XX, participando do mundo como um observador da sociedade moderna, sobretudo da vida urbana. Ele próprio teorizou a flanerie no livro A alma encantadora das ruas (1910). A crônica com a qual abre a obra, “A rua”, enaltece a necessidade do flâneur de alimentar um “espírito vagabundo, cheio de curiosidades”. Se pode ser “vagabundagem”, considera que, talvez, “a distinção é de perambular com inteligência” (RIO, 2008, p. 31-32). Na prosa, explica o olhar ingênuo e encantado e, de certo modo, ensina um modo de ver. “O

16 As fotografias de Flávio de Barros publicadas na edição de 1902 continham “Divisão Canet”, “7º Batalhão de Infantaria nas trincheiras” e “400 jagunços prisioneiros”. No livro, Euclides da Cunha trocou suas legendas para “Monte Santo: base das operações”, “Acampamento dentro de Canudos” e “As prisioneiras”. O fotógrafo não foi creditado, como era comum na época.

17 Religiões do Rio (1906), Cinematógrafo (1909), A alma encantadora das ruas (1910), Vida vertiginosa (1911) e Os dias passam (1912).

balão que sobe ao meio-dia no Castelo18 sobe para seu prazer; as bandas de música tocam nas praças para alegrá-lo; se em um beco perdido tem uma serenata com violões chorosos, a serenata está ali para diverti-lo” (RIO, 2008, p. 32-33). A obsessão de ver o mundo aparece na analogia com o dispositivo de contato fotográfico para explicar o olho do flâneur. “E de tanto ver o que os outros quase não podem entrever, o flâneur reflete. As observações foram guardadas na placa sensível do cérebro, as frases, os ditos, as cenas vibram-lhe no corticol” (RIO, 2008, p. 33).

Ser repórter exige dos jornalistas olhar atento à cidade. Em relação ao texto da reportagem, há uma raiz visual, na qual a narrativa coloca o leitor no olho do repórter, que pode visualizar a cena e experimentá-la. O trabalho de João do Rio não era acompanhado de imagens, em grande parte das vezes. Alguns de seus textos foram ilustrados na luxuosa Kosmos, revista editada por Olavo Bilac. João do Rio foi um escritor de prestígio e reconhecimento entre literatos e leitores do povo. Na figura 22, percebe-se a valorização dada à sua obra, com a produção de ilustrações do artista gráfico K. Lixto19 (1877-1957), que acompanham toda a narrativa. O espaço editorial foi de seis páginas, todas ilustradas. Na edição 11, apenas outro texto recebeu imagens, ocupando três páginas, duas delas com ilustrações.

O texto conta uma conversa com um amigo durante a passagem de um cordão de carnaval. O fidalgo acabrunhado na imagem seria o próprio narrador, que confessa não gostar dos cordões, demonstrando preconceito com a cultura africana. O mais notável no texto é a forma didática com que João do Rio reproduz o diálogo e faz o leitor se sentir dentro do carnaval. A conversa ocorre durante uma tentativa de fuga daquela multidão, enquanto o narrador observa como funcionam os cordões e as simbologias da cultura africana. As explicações atestam que o cronista/repórter fez uma pesquisa sobre os costumes africanos no carnaval. O registro da vestimenta do afoxé na ilustração, em contraste com a roupa estilizada do burguês, aumenta o valor de documento desse leiaute. Ao longo de toda a narrativa, misturam-se personagens da cultura africana com imagens universais de fantasias. A ilustração que abre o texto, em página ímpar, sintetiza a narrativa com os personagens em movimento, criando a ambiência do texto.

18 Refere-se ao então Morro do Castelo, no centro do Rio, que foi demolido em 1921.

19 Calixto Cordeiro ou K. Lixto foi um importante ilustrador e caricaturista nascido no Rio de Janeiro. Desenhou para inúmeras publicações, tais como Fon-Fon, Gazeta de Notícias, D. Quixote e O Cruzeiro. Fundou, com o artista gráfico Raul Pederneiras (1874-1953), a revista O Tagarela, famosa por uma série de charges contestando a obrigatoriedade da vacina de varíola, em 1904.

No jornal, na maioria das vezes a obra era composta como na crônica “Os que viajam a pé pelos estados” (figura 23). Apesar de ser apresentada sem imagens, tem destaque no topo da página e com caracteres do título em caixa alta, o que confere importância ao conteúdo. Posteriormente, imagens alusivas ao texto de João do Rio apareceriam na primeira página, mesmo sem um vínculo claro entre a imagem e o texto da página 2. A visibilidade do texto, associada a uma imagem na capa, marca o início do uso das chamadas, que viriam a ser regra básica do jornalismo visual (figura 24). Percebem-se as primeiras tentativas de manchetar o jornal no topo, separando os assuntos por travessão. Anos depois veremos, nas crônicas de Benjamin Costallat para o Jornal do Brasil, uma composição semelhante para a capa. Para Ivo (2012, p. 10-11), na época de João do Rio a era da imagem começava a se incorporar à visão humana. “Era uma nova ficção endereçada ao olhar”.

João do Rio trouxe para o jornalismo brasileiro tanto as madames da sociedade quanto os personagens do povo. “Mestre incontestável da reportagem, adentrava-se com igual desembaraço tanto nos terreiros de macumba, bancas de cartomantes, sessões de espiritismo, espeluncas das favelas como nos palácios presidenciais e embaixadas” (IVO, 2012, p. 15). Entretanto, estava longe de uma obra humanista. Foi pioneiro na catalogação de religiões africanas, mas também considerado racista, além de naturalizar preconceitos de classe. O trabalho de escritores como João do Rio é concomitante ao crescimento do uso de imagens pelos jornais. A Gazeta de Notícias, segundo Marialva Barbosa (2007), no livro História cultural da imprensa: Brasil, 1900-2000, foi o jornal precursor da entrevista, reportagem fotográfica e ilustração diária, elementos da reportagem moderna. Letícia Pedruce Fonseca estudou, em sua dissertação de mestrado, a construção visual do Jornal do Brasil antes de sua reforma gráfica da década de 1950. Para um panorama comparativo com o JB, investigou os principais jornais do início do século: Jornal do Comércio, Gazeta de Notícias, O Estado de S. Paulo, O País e o Correio da Manhã. Quando comparou as páginas dos periódicos, reiterou a tese de Marialva Barbosa. “Nota-se a semelhança [com o JB] no caráter popular e a acirrada disputa nas experimentações visuais e investimentos gráficos, como, por exemplo, a inserção quase simultânea de ilustrações diariamente em 1900 e de páginas coloridas em 1907” (FONSECA, 2008, p. 206).

Figura 23 – crônica de João do Rio, Gazeta de Notícias (07/01/1907)

Figura 24 – chamada para crônica de João do Rio, Gazeta de Notícias (16/03/1904)

O design das páginas dos jornais pouco a pouco começou a moldar-se aos olhos da massa moderna, buscando a sedução estética que as revistas ilustradas já dominavam. Nelson Werneck Sodré (1999), em História da imprensa no Brasil, resume a fase que começa em meados 1875 e se consolida nas primeiras décadas do século XX com a modernização dos sistemas de impressão e, posteriormente, de transmissão de imagens. “O país vivia uma fase de mudança; uma dessas fases em que o conteúdo se adianta à forma, até que o conteúdo novo acabe por exigir a mudança na forma e o aprimoramento exterior se equilibre com a expressão nova que se impõe” (SODRÉ, 1999, p. 223).

Ilustradores também iam aos locais dos fatos e elaboravam gravuras para acompanhar o texto. Assim, “o desenho realista construía o jornalismo visual” (BUITONI, 2011, p. 48). No Brasil, um exemplo dessa prática na história da grande reportagem brasileira é a série de textos “Mistérios do Rio” (figuras 25 e 26), produzida por Benjamin Costallat para o Jornal do Brasil, em maio de 1924. Nessa época, o texto carregava o hibridismo literário em estilo de crônica. Conforme Marcelo Bulhões (2007), os textos de Costallat assinalam uma transição entre o folhetim e as histórias “reais”, o que chama de contos-reportagem. É uma prosa que flerta com a reportagem brasileira de aprofundamento e interpretação. Benjamin Costallat foi um escritor- jornalista famoso nas décadas de 1920 e 1930. Segundo Bulhões (2007, p. 113), “era um verdadeiro fazedor de best-sellers”. Seus textos transitavam pela crônica, reportagem, conto e romance.

Figura 25 – chamada na capa para a reportagem “Mistérios do Rio” (05/1924)

Assim como João do Rio, Costallat é um repórter que se embrenhou na periferia carioca em busca das histórias dos outros, produzindo um relato extenso, publicado em série. O próprio Costallat anuncia esse trabalho como distinto das habituais histórias de ficção que escrevia. “Hoje o que os escritos procuram dar, e que o próprio público ledor exige, é a verdade. A verdade nos ambientes, a verdade na ação e a verdade nos personagens” (COSTALLAT, s/d, p. 11-12). Embora a leitura dos textos revele uma forte carga ficcional narrativa, demarca sua fidelidade com o real e a mudança para uma forma textual mais próxima do que viria a ser a reportagem. Se o público quer “verdade”, ilustrar essas histórias deveria apresentar uma base “real”.

Durante sucessivos dias, o JB publicou chamadas de capa anunciando a série com ilustrações que depois comporiam os leiautes. O destaque foi diário durante todo o mês de maio. Na estreia, o perfil de uma operária é ilustrado com pontos-chave da narrativa: o trabalho na “casa de moda”, da qual se demitiu por despertar o olhar exacerbado dos homens, e o socorro da ambulância para a jovem, que mal conseguia comer, mas trabalhava 18 horas por dia. No texto da série “No bairro da cocaína”, o ilustrador da reportagem é o acompanhante do narrador- repórter, conforme Bulhões (2007) – um indício de que o ilustrador acompanhou Costallat. Essa menção demonstra como havia preocupação em atestar a veracidade dos desenhos, incorporando a informação visual e recriando cenas-síntese do que os “repórteres” viram. No texto “Casas de amor”, há um mapa para o leitor entender os corredores do local. Em “A favela que eu vi” e no “Bairro da cocaína”, a diagramação pressupõe que é preciso subir o morro para imergir nesse universo. Nas narrativas factuais desenhadas ou encenadas com fotografias, mencionadas anteriormente, o resultado era uma “crônica visual” sem texto associado. Fora legendas ou títulos, aqui o desenho realista acompanha o texto.

Nos exemplos, a imprensa transita entre o jornalismo opinativo e o interpretativo, cenário em que jornalistas e escritores ficcionais trabalham em um campo profissional ainda não totalmente delineado. Porém, as bases do jornalismo moderno20, valorizando a objetividade com dados verificáveis, também estão presentes. Nelson Werneck Sodré (1999, p. 275), em História da imprensa no Brasil (1999), considera a passagem do século XIX para o XX o momento da transição. “Os pequenos jornais de estrutura simples, as folhas tipográficas, cedem lugar às empresas jornalísticas, com estruturas específicas, dotadas de equipamento gráfico necessário ao exercício de sua função”. Costa (2012b, p. 9) acrescenta que “esse quadro (…) dizia respeito à grande imprensa como um todo”. O ser humano moderno é um observador de um mundo caótico que precisa ser organizado. O próprio diagrama dos jornais é uma resposta à necessidade de selecionar e, mais, de hieraquizar os acontecimentos do mundo. Essa visualidade hierarquizante da primeira página é o embrião da cultura visual jornalística que se desenvolverá no século XX.

20 O termo moderno, quando não utilizado como sinônimo de algo novo ou inovador, refere-se à época da aceleração das técnicas e produções humanas, marcadas pela industrialização, aperfeiçoamento da ciência e crescimento dos centros urbanos, período que corresponde desde a Revolução Francesa até o pleno desenvolvimento no século XX. A modernidade é entendida aqui como a visão macro do projeto moderno, sua massificação. Já o termo modernismo designa os movimentos artísticos iniciados no século XIX e que ganharam força no século XX, até a década de 1930, em variadas expressões, tais como as artes visuais, a literatura e a arquitetura.

4 A MODERNIDADE DIAGRAMADA