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3. OBSERVAÇÕES CRIMINOLÓGICAS SOBRE A SELETIVIDADE NO DIREITO

3.1 CRIMINOLOGIA: CONCEITO, CARACTERÍSTICAS, FUNÇÕES

3.1.1 Vitimologia e vitimodogmática

Quanto à vítima, pode-se identificar três momentos históricos referentes ao seu tratamento, tanto na ciência criminológica, quanto no Direito Penal: protagonismo total, neutralização e redescobrimento.

Assim, a vítima desfrutou do máximo protagonismo na época da justiça privada, sendo drasticamente neutralizada pelo sistema legal moderno. Isso porque, a experiência histórica demonstrou que não era possível deixar nas mãos da vítima ou de seus familiares a resposta ao agressor. Entendeu-se “que a resposta ao crime deve ser uma resposta distante, imparcial, pública, desapaixonada.”155

Na segunda fase histórica, portanto, tem-se uma neutralização do poder da vítima. Ela deixa de ter o poder de reação ao fato delituoso, que é assumido pelos poderes públicos. A pena passa a ser uma garantia de ordem coletiva e não vitimária (principalmente a partir do Código Penal francês e com as ideias dominantes do liberalismo moderno). A partir do momento em que o Estado monopoliza a reação penal, quer dizer, desde que proíbe as vítimas castigar as lesões de seus interesses, seu papel vai diminuindo, até quase desaparecer.156

As novas tendências criminológicas, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, finalmente, a redescobrem, e, em muitos países, são adotadas legislações de

155

Idem. Ibidem. p. 79.

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proteções às vítimas157, como forma de melhoramento de sua situação perante o Direito Penal material e processual. Entretanto, como indica Hassemer, três observações merecem ser feitas: esta proteção às vítimas “está somente na superfície de um objetivo aprovado e de valor reduzido; não significa o mesmo na ciência e na legislação; a tendência de neutralização da vítima não foi rompida”.158

Atualmente, dois movimentos (quase antagônicos) fazem parte desta crescente redescoberta da vítima: Vitimologia e a Vitmodogmática.159 A Vitimologia é um ramo da Criminologia que estuda especificamente a vítima e os processos de vitimização.

A Vitimologia, tal como conhecida atualmente, adveio do processo de macrovitimização do povo judeu, com o fim da II Guerra, ajudados com a reparação positiva por parte do provo alemão. Porém, o seu nascimento oficial enquanto ciência de alcance mundial se dá em 1979, por oportunidade da realização do Terceiro Simpósio de Vitimologia, ocorrido na Alemanha, em Münster, quando é fundada a Sociedade Mundial de Vitimologia.160

A primeira observação que se deve fazer é uma advertência, para que não se confundam os conceitos de vítima e de sujeito passivo do delito. Vítima, para a doutrina vitimológica moderna, tem conceito mais amplo do que o de simples sujeito passivo do delito: é um conceito que inclui o sujeito passivo enquanto vítima, mas também suplanta esta única ideia. Vítima, portanto, “são todas as pessoas naturais ou jurídicas que, direta ou indiretamente sofrem um dano notável [...] como consequência da infração.”161

157 No Brasil, Lei 9807/1999, que “estabelece normas para a organização e a manutenção de

programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, institui o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas e dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal.”

158

HASSEMER, Winfried. Introdução aos Fundamentos do Direito Penal. Tradução da 2ª Ed. Alemã, rev. e ampl. Por Pablo Robrigo Aflen da Silva. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Ed., 2005. p. 96

159

BARROS, Flaviane de Magalhães. A Participação da Vítima no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

160

BERISTAIN, Antonio. A Nova Criminologia à luz do Direito Penal e da Vitimologia. tradução Cândido Furtado Maia Neto. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. p. 83.

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Para a Vitimologia, ainda, vítima não se restringe àquela que sofre danos com um delito, havendo outras fontes de vitimização além do delito. Aponta, portanto, para os processos de vitimização primária, secundária e terciária162.

A vitimização primária é aquela própria provocada pelo cometimento do crime, em que algum objeto jurídico pertencente à vítima é violado. Perde-se a vida, o patrimônio, tem-se a honra menoscabada, e a integridade física violada.

Porém, ao ser vítima de um crime, a pessoa precisa (em tese) procurar as instâncias formais de controle: polícia, Ministério Público, juiz. Sobre o contato inicial entre polícia e vítima, pode-se notar que já há um novo processo de vitimização: demora de atendimento, menoscabo pelo crime sofrido, falta de pessoas para realização das oitivas, e isso de dá “em virtude da falta de preparo das autoridades em lidar com a vítima, que já se encontra fragilizada com a situação vitimizadora, ou, mesmo, da própria estrutura do inquérito e da polícia, assim como das questões estruturais que se denotam da contingência brasileira”.163

Este é o fenômeno da vitimização secundária ou revitimização164.

Por fim, há, ainda, o processo de vitimização terciária, fruto do contato da vítima com a sociedade. Especificamente em relação a determinados crimes – exemplo, os sexuais – a vítima, ao retornar para a comunidade e a família, será alvo de certos comentários desagradáveis, certo ar de pena, que em nada contribuem para seu processo de recuperação.

162

BUSTOS RAMIREZ, Juan; LARRAURI PIJOAN, Helena. Victimología: Presente y Futuro de La

Victimología. Barcelona: PPU, 1993. p. 41.

163

BARROS, Flaviane de Magalhães. Ob. cit. p. 77.

164 “Mesmo depois de ocorrer o evento vitimizador (vitimização primária), a vítima precisa continuar a

se relacionar com outras pessoas, colegas, vizinhos, profissionais da área dos serviços sanitários, tais como enfermeiros, médicos, psicólogos e assistentes sociais, e profissionais da área dos serviços judiciais e administrativos, funcionários de instâncias burocráticas, policiais, advogados, promotores de justiça e juízes, podendo ainda se defrontar com o próprio agente agressor ou violador, em procedimentos de reconhecimento, depoimentos ou audiências. Essas situações, se não forem bem conduzidas, podem levar ao processo de vitimização secundária, no qual a vítima, por assim dizer, ao relatar o acontecimento traumático, revive-o com alguma intensidade, reexperenciando sentimentos de medo, raiva, ansiedade, vergonha e estigma. Devido a essa possibilidade, as agências de cuidados sanitários e judiciais devem estar adequadamente aparelhadas, tanto do ponto de vista material, quanto do ponto de vista humano, para evitar a revitimização-hetero-secundária, ou pelo menos, para minimizá-la.” TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para Operadores do

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García-Pablos de Molina, contudo, explica que, além desses processos acima apontados, a vítima ainda pode vir a sofrer “um severo impacto ''psicológico'' que se acrescenta ao dano material ou físico provocado pelo delito. A vivência criminal se atualiza, revive e perpetua.” Desde o momento em que a infração é praticada, à necessidade de enfrentar as esferas de controle (polícia, judiciário), “a impotência frente ao mal e ao temor de que se repita produz ansiedade, angústia, depressões, processos neuróticos etc.”. Além disso, se “acrescentam, não poucas vezes, outras reações psicológicas, produto da necessidade de explicar o fato traumático: a própria atribuição da responsabilidade ou autoculpabilização, os complexos etc.”165

Em verdade, para coibir esse processo de vitimização, é imperioso que se desenvolvam políticas públicas que podem ser consubstanciadas por serviços de atenção às vítimas de crimes, bem como informações para se prevenir a situação de vítima de delitos, notadamente com ações específicas em grupos de riscos, como, por exemplo, mulheres, prostitutas, menores, homossexuais, dentre outros, atentando-se, sempre, para não incidir, ainda mais em uma estigmatização, ao invés de informação com fins de prevenção.

Este é um dos centros de atenção da Vitimologia, se adotada a moderna Criminologia, que pode ter destacados três pontos principais de interesses, quando se trata da temática atinente à vítima: além de descrever o fenômeno da delinquência, cabe à Vitimologia explicar a interação entre delinquente vítima, com suas variáveis; trabalhar com a prevenção do delito também sobre o enfoque vitimário, entendendo que o fenômeno da seletividade também se estende às vítimas; estudar a vitimização como forma de chegar aos números reais de criminalidade, através de pesquisas de vitimização, demonstrando certas falhas nos números oficiais, que não consideram as cifras ocultas.166

Por outro lado, o movimento denominado Vitimodogmática, redescobre, também, a vítima no processo penal. Porém, a abordagem que se faz é diferente: nesta oportunidade, é estudado o comportamento da vítima como forma de influenciar a dogmática penal. Assim, é importante salientar que uma das perspectivas da

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GARCÍA-PABLOS DE MOLINA. Antonio. GOMES, Luiz Flávio. Ob. cit. p. 93.

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doutrina da vitimodogmática é valorar a incidência do comportamento da vítima para a prática do delito, podendo ser usada como fator de redução de pena ou até mesmo de exclusão do crime. Trata-se do princípio da autorresponsabilidade, ou corresponsabilidade da vítima.

Contudo, todos os conceitos aqui tratados servem apenas para a denominada criminalidade comum. A chamada criminalidade econômica atinge bens jurídicos difusos, em que não se pode identificar uma vítima ou grupo de vítimas especificas. É a denominada vitimização difusa.

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