• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 Vivência, Projeto de Vida e Sentido: ponte entre teorias e cotidianos

2.2. Vivência

A obra de Vigotski é marcada pela incompletude, em razão de sua morte prematura e algumas obras que se perderam. O conceito de vivência também é marcado por elementos diversificados, encontrando-se intrinsecamente relacionados ao conceito de consciência, tendo um papel fundamental na teoria vigotskiana.

Desde o seu primeiro livro, por volta de 1917, Vigotski já tratava da vivência e das emoções. Sua proximidade, desde a infância, com as artes possibilitou-lhe desde cedo empregar a categoria vivência ou perejivânie, no russo, em seus primeiros manuscritos sobre a “Tragédia de Hamlet”, tendo um papel central em suas análises (Toassa, 2009).

Como aponta Toassa (2009), não é fácil captar o sentido da palavra

perejivânie, pois é bastante usada no cotidiano russo, porém na obra de Vigotski ela é

dotada de um caráter singular, com traços conceituais originais e consistentes. Tal autora, ao buscar ajuda de outros estudiosos da cultura russa, encontra que perejivânie tem em seu tempo verbal o aspecto imperfectivo, que denota ações inacabadas. Ou seja, são ações “que foram/são/serão realizadas uma só vez, mas não se sabe dizer se terminam /terminaram” (pp.58).

Dessa forma, como apontam Toassa e Souza (2010), perejivânie adquire uma resposta própria, na qual se expressam mutantes relações dos processos psíquicos

48

individuais e do meio social no qual os sujeitos se constituem. Toassa e Souza (2010) e Toassa (2009) fazem o percurso do estudo da perejivânie por Vigotski, identificando as três formas que ela emerge na obra do autor.

Primeiramente emerge a vivência com um sentido mais voltado para as emoções, a qual vem como um processo básico da vida humana, caracterizando-se como um acontecimento profundo na vida do sujeito. Dessa forma a vivência tem relação com o sentido dos acontecimentos para o sujeito, não implicando em imediatismo, relacionando as características pessoais do sujeito ao meio em que se encontra. Era entendida, neste momento, como tendo um caráter irracional, marcado por sentimentos e sensações que demandavam compreensão após ser vivenciado (Toassa, 2009).

Um segundo momento de estudos sobre a vivência se inicia nos textos sobre a pedologia. A vivência deixa de ser situado como algo do plano irracional no psiquismo, o pensamento passa a não ser isolado das emoções. A concepção de consciência vai se formando como um sistema que supera as operações da razão, tendo na vivência a sua unidade de análise sistêmica (Toassa, 2009).

Naquele momento, Vigotski encontrava-se influenciado principalmente pela Gestalt e pelo Materialismo dialético. Da Gestalt pegava emprestada a proposta de fundamentar um método subjetivo-objetivo que abarcasse os pontos de vista descritivo, introspectivo e funcional. Porém, diferente dos gestaltistas, focava a percepção, consciência, personalidade, entre outros problemas da psicologia, numa perspectiva materialista dialética (Van Der Veer e Valsiner, 1991).

Do materialismo dialético Vigotski adota a relação indivíduo e meio na tentativa de se distanciar das dicotomias dualistas da psicologia tradicional, na qual o meio e o indivíduo encontravam-se cindidos (Van Der Veer e Valsiner, 1991). O meio

49

social vigotskiano é caracterizado pela influência marxista, um meio histórico-cultural, coberto por valências positivas e negativas na relação sujeito-objeto.

Dessa forma a vivência vai se tornando um conceito coringa, delimitando a relação do homem com o mundo, desde o seu nascimento, relação que vai se complexificando com a estruturação dos processos mentais superiores. A cada idade o sujeito vivencia sua realidade de um modo qualitativamente superior com relação à idade antecedente (Vigotski, 2006).

Para Vigotski, a cada momento foi ficando cada vez mais clara a necessidade de se conhecer a natureza interna dos processos de desenvolvimento, o que, para ele, demandaria uma compreensão mais aprofundada das vivências e dos processos de internalização. Nesse contexto, é realizada uma crítica por parte do autor à predominância das características da personalidade ou do meio, primando pelo encontro de ambos como unidades de análise e pela tentativa de analisá-los de forma acessível ao investigador (Toassa e Souza, 2010).

Nesse terceiro momento, a vivência encontra-se contemplando todo tipo de conteúdo mental, referindo-se a diversas idades e situações da vida. No decorrer da ontogênese, como aponta Vigotski (1996), a vivência adquire um papel de articuladora entre o núcleo interno (processos mentais singulares) e externo (percepções de objetos), o que vai se tornando nítido a partir da crise dos sete anos de vida (Vigotski, 2006).

Segundo Toassa e Souza (2010), para Vigotski, neste momento, a vivência se dá como um tipo de apreensão do real. É um componente fluido da consciência, cuja função é fazer uma inter-relação entre os aspectos cognitivos e afetivos, influenciando o desenvolvimento em seus diversos aspectos. Logo, em uma única situação, diferentes características podem ser implicadas, considerando o nível de desenvolvimento e consciência da criança e os recursos externos de que esta dispõe para compreendê-los.

50

Segundo Teixeira (2003) Vigotski trata o desenvolvimento como algo dialético, que se dá em forma de processo transformando o ser humano, inserindo-o em uma relação complexa entre fatores internos e externos. Assim, o desenvolvimento é marcado pelos conflitos, com períodos estáveis e críticos, que ocorrem a partir de certas condições materiais.

Logo, nos desenvolvemos a partir de nossas vivências, proporcionando o surgimento de novas formações qualitativas, que têm ritmo próprio e acontecem por meio das mediações. Segundo Vigotski (2006) uma nova formação diz respeito a uma nova estrutura de personalidade que se constitui por essas novas atividades e formação psíquica e social, que vai ditar a formação da consciência e estabelecimento de novas relações sociais.

Apesar de Vigotski não se deter à periodização do desenvolvimento, deve-se levar em conta as crises vividas por cada sujeito e as atividades que caracterizam tais crises, já que entendemos que estas são históricas e vindas também com suas funções atribuídas socialmente. Dessa forma, cada crise tem uma atividade característica que a guia, congregando situações que a diferenciam de outras.

Vigotski (2006), no seu texto sobre a crise dos sete anos, compreende que, por volta dessa idade, forma-se na criança uma estrutura de experiências que permite a compreensão do significado de situações como: estou feliz, sou boa, sou má, que vão adquirindo sentido. Nessa crise, pela primeira vez as vivências e afetos são generalizados aparecendo a lógica dos sentimentos, fazendo com que a criança forme relações novas consigo mesma e que mudarão seu comportamento. Há então a diferenciação do exterior e interior, a formação da vivência vai atribuindo sentido e originando conflitos entre as vivências.

51

Segundo Vigotski (1933-1934/2009) a vivência é uma unidade dinâmica da consciência, a sua base, que abrange a forma como se percebe, interpreta e reage emocionalmente a um evento. Nem todas as características pessoais estão envolvidas de uma vez para tal ação, apenas algumas delas terão papel decisivo dependendo da situação experimentada. Para o autor, é importante conhecer quais características têm papel central em determinadas situações, levando em conta o nível de desenvolvimento, a consciência, os recursos pessoais, visto que os eventos podem ter impactos diferentes dependendo do ponto de desenvolvimento.

Portanto, com base em tal referencial teórico e nos objetivos da presente dissertação, indaga-se como se dá a interligação entre os fatores cognitivos - que advêm da formação que tinham antes da seleção para o Projeto Integrado, - e como isto é articulado aos seus sentimentos - de terem conseguido ser selecionados pelo projeto - e apresentarem prováveis condições e técnicas para se exercer uma profissão.

A vivência constitui a unidade da personalidade e do desenvolvimento,através da qual os elementos pessoais se realizam , no caso em questão, do jovem egresso do Projeto Integrado. Como Vigotski afirma, a vivência é vivência de algo, ou seja, há um motivo, há consciência, tornando-a única e pessoal. Assim, caracteriza-se como unidade da consciência, pois é quem possibilita a consciência ser caracterizada como tal..

Para isso, a vivência possui uma orientação biossocial, encontra-se de forma intermediária entre personalidade e meio, e a relação entre esses dois é que vai significar a experiência. A partir daí, influenciará o desenvolvimento, a relação consigo e o modo como se vive, manifestando-se de acordo com as propriedades que se formaram ao longo da vida do indivíduo.

Assim procura-se entender: como o contato com o Projeto Integrado constrói a consciência das potencialidades pessoais desses jovens? Como constrói perspectivas de

52

futuro ou projetos de vida? E se de fato constrói, como tais perspectivas podem ser acessadas através da formação oferecida, constituindo-o e formando sua subjetividade? Logo, se nos desenvolvemos a partir das nossas vivências, o Projeto Integrado constitui os sujeitos a partir da mediação dessa experiência. Mas que sujeito constitui?