• Nenhum resultado encontrado

Vivenciando uma troca de correspondências em turmas de alfabetização

Um projeto didático sobre correspondências entre alunos foi rea- lizado por quatro professoras da Rede Municipal de Recife e Moreno, buscando estabelecer uma troca de cartas entre alunos do 1o e 2o ano do 1o ciclo do ensino fundamental. Nesse projeto, o produto final visa- va à leitura e produção (coletiva e individual) de cartas, bem como à produção de cartões de Natal com mensagens criadas pelos alunos.

As professoras realizaram uma ruptura com a leitura clássica e des- critiva que geralmente direciona as atividades sobre correspondências,

principalmente, como as propostas em alguns livros didáticos, em que é priorizado o levantamento dos aspectos tradicionais caracterís- ticos no tratamento de uma carta ou de um bilhete, evidenciando apenas os seus aspectos estruturais.

No exercício do diálogo e da reflexão entre destinatário e reme- tente, os textos de natureza epistolar possibilitam desenvolver ati- vidades em que o sentido da leitura e escrita não se limita apenas aos objetivos meramente escolares, em que somente os componen- tes estruturais da carta (o lugar, a data, o vocativo inicial e a despe- dida) sejam trabalhados. Espera-se que tais atividades revelem os aspectos múltiplos da utilização desse gênero na diversidade de eventos de letramento a qual estamos expostos em nosso cotidiano pessoal e profissional, enriquecendo assim a prática de leitura e de produção de textos na escola.

Para exemplificar as possibilidades que surgem na sala de aula, a professora Cláudia de Vasconcelos, lotada na Escola Municipal Sítio do Berardo, lembra-nos a situação que gerou a troca de cartas em sua turma de alfabetização:

Foi a partir de uma situação cotidiana de sala de aula que surgiu a idéia principal do projeto. Uma aluna estava faltan- do muito as aulas, as crianças me perguntavam o que estava acontecendo com ela e eu não sabia responder, foi quando me veio a idéia e eu perguntei aos alunos se eles queriam escrever uma carta para a colega, já que não tínhamos o telefone dela, mas sim seu endereço. As crianças toparam e ficaram bastan- te estimuladas e esta situação suscitou a curiosidade das cri- anças a respeito desse gênero.

Nesse contexto, a professora descobriu que os alunos trazi- am questões sobre os gêneros epistolares, expressas, por exem- plo, na indagação sobre “o que é carta?”. Outras questões foram formuladas pela própria professora aos alunos, buscando proble- matizar esse objeto de estudo: “Qual o universo de correspondên- cia que existe na vida familiar desses alunos? Será que sabem da estrutura de uma carta? Sabem identificar a diferença entre as cartas pessoais e públicas no universo das correspondências que circu- lam no ambiente familiar?”

A professora colheu depoimentos dos alunos revelando alguns conhecimentos prévios sobre o universo epistolar: “É um envelope com papel dentro”; “É um papel escrito”; “É uma carta que manda para o carteiro e ele leva pra casa das pessoas”, partindo, em seguida, para um planejamento de ações que inserisse os questionamentos expressos em sala de aula.

Quanto aos tipos de carta que os alunos conheciam, a professo- ra constatou que o conhecimento prévio dos alunos já expressava a realidade complexa e diversa dos gêneros epistolares nos eventos de letramento, como vimos nos seguintes depoimentos:

Pode ser conta de água, conta de luz, conta de celular, carta de namorado, poesia.

Pode ser uma carta pra dar a notícia que está chegando de algum lugar.

Pode ser um convite pra um aniversário ou casamento Pode ser um convite pra passear na praia, no piquenique. (falas dos alunos do 1o ano do 1o ciclo da Professora Cláudia

de Vasconcelos)

Portanto, a professora verificou, nesse diagnóstico inicial, a di- versidade de concepção que os alunos traziam sobre o universo epis- tolar. Nesse momento, coube incentivar os alunos para reunir os dife- rentes tipos de correspondência que circulavam no ambiente doméstico, estimulando o diálogo e o confronto com o material escrito em diferen- tes condições de produção, os possíveis interlocutores e a adequação no tratamento do vocativo, seja mais ou menos formal dependendo do destinatário, as inúmeras possibilidades de iniciar e finalizar uma carta, a variedade no formato dos textos que integram esse universo, entre outros aspectos.

Como vimos, essa professora iniciou seu trabalho com base em uma demanda real – comunicar-se com uma aluna que estava faltando às aulas – e passou a explorar a diversidade de gêneros a que as crianças tinham acesso, através de um levantamento, que foi sistemati- zado em sala de aula. Dessa forma, a professora refletiu com os alu- nos sobre os diferentes gêneros textuais do universo epistolar, fazen- do-os reconhecer as diversas finalidades a que se prestam.

A professora Leônia Malta, lotada na Escola Municipal Sítio do Berardo, em uma turma de alfabetização, também relatou a sua expe- riência, afirmando que, assim como Cláudia, propôs a escrita de uma carta para uma colega que estava ausente:

Parti de uma situação real de sala de aula – a ausência de uma aluna – ressignificada pedagogicamente para uma situação de aprendizagem, em que o gênero epistolar surgiu como uma necessidade de recorrer a um registro escrito, suscitando as- sim o desejo dos alunos em criar outras situações em que este gênero textual fosse utilizado.

Com o objetivo de problematizar e conhecer as representações dos alunos, a professora formulou as seguintes questões: como as pessoas se comunicavam no passado? O que circula sobre corres- pondências na sua família? Em que situações as pessoas costumam escrever cartas? Você já escreveu ou recebeu algum tipo de corres- pondência? A partir dessa enquete, a professora buscou ampliar a compreensão do repertório familar dos alunos.

O projeto “De palavra em palavra escrevemos cartas” foi vivenci- ado por essas professoras e suas turmas, reunindo o trabalho com outros gêneros textuais. A leitura de histórias infantis, por exemplo, “A Pomba Colomba” de Sylvia Orthof e a “Carta errante, avó atrapalhada, menina aniversariante” de Mirna Pinsky serviram para contextualizar o universo epistolar, permitindo que as professoras introduzissem a im- portância do preenchimento correto das informações no envelope para que a correspondência tivesse seu destino garantido.

Em seu relato, a professora Leônia recordou os procedimentos e escolhas realizadas na execução do projeto.

A minha intenção foi fazê-los perceber que escrever é uma forma de comunicação muito útil, da qual eles poderiam se utilizar em diversas situações. Salientei que, ao escrever um texto, estamos nos dirigindo a alguém (para quem) com o objetivo de transmitir uma mensagem (o que se deve escrever) e, dependendo do interlocutor e de qual é a mensagem, devemos escolher entre diferentes formas de organização do texto (como).

Durante a escrita da carta, iniciada de forma coletiva, ações de planejar o que deveria ser escrito e de revisar o texto produzido foram alguns dos procedimentos utilizados pela professora.

Passamos dois dias escrevendo a carta. Fizemos a leitura e houve a necessidade de fazer algumas modificações. A ativi- dade de reescrita do texto possibilitou aos alunos acrescentar informações, retirar outras, mudar trechos de lugar, além de exercitarem a capacidade de tornar o texto mais legível, dan- do-lhe coerência e melhorando a coesão (Leônia Malta).

Por fim, a professora reconhece que houve engajamento dos alunos na produção do texto, garantindo uma eficácia dos gestos que fornecem significados ao envolvimento entre os correspondentes no ritual epistolar. Assim, os indícios do cerimonial epistolar, por exem- plo, a maneira de iniciar a carta, a menção da data e lugar, o vocativo inicial e outros vocativos utilizados, a despedida, etc., podem forne- cer ou dispor para o leitor da carta um conjunto de menções sobre o ambiente, os acessórios, a postura e os movimentos dos “atores”, oferecendo, portanto, as marcas necessárias à compreensão da “peça” para aquele que realiza sua leitura.

Considerando esses indícios, a professora e seus alunos refle- tiram os modos e os procedimentos que apoiaram a escrita de textos epistolares no contexto escolar.

Percebi que a atividade com carta favorece a reescrita do texto e a reflexão sobre o uso da língua, pois, além das ques- tões textuais, permite que a criança perceba o seu processo de evolução na compreensão do funcionamento da língua escrita. Por outro lado, a vivência com situações de escrita faz com que os alunos percebam de que maneira as diferentes estruturas de um texto as ajudam a estabelecer uma comuni- cação com as pessoas (Leônia Malta).

A vivência desse projeto ampliou o conhecimento sobre a leitu- ra e a escrita de textos epistolares, privilegiando as demandas reais identificadas no contato e na familiaridade com a realidade cultural do aluno. O livro didático deixou de ser, portanto, o único e incontestável material de apoio para o professor pensar as propostas de atividades de leitura e produção escrita.

Vale ressaltar que, nas atividades propostas, as professoras Cláu- dia e Leônia não consideraram as cartas como “textos acabados” que revelam as fórmulas iniciais e finais próprias desse gênero, mas prio- rizaram no trabalho com as cartas as situações e os modos da enunci- ação epistolar. Portanto, novos objetos se definiram como possibili- dade de compreensão, como, por exemplo, as representações, nas cartas, das condições de sua redação e o “pacto epistolar”.

Lins e Silva (2004) afirma que o “pacto epistolar” se expressa no discurso específico produzido pelos correspondentes na troca de cartas, valendo-se de quatro dispositivos principais: os indícios que expressam a ausência (as menções às cartas recebidas e/ou espera- das); aqueles que definem o princípio do prazer; aqueles que avaliam o gosto da troca e, enfim, os que definem o ritmo e o movimento da troca de correspondências. Se o professor considerar somente os aspectos da estrutura inicial e final próprios da carta, a diversidade de conteúdos e finalidades de leitura e escrita não será ampliada para contextos de usos mais significativos.

Enfim, o universo das correspondências pode ser utilizado para uma pluralidade de finalidades nos campos pessoais e públicos. Na teia da escrita epistográfica, encontram-se estudos que atestam a inesgotável fonte das cartas como expressão de pensamento, como manifestação de idéias ou questionamentos existenciais e que tam- bém revelam o retrato de uma trajetória biográfica e do contexto cultu- ral, histórico e sociopolítico de um escritor, intelectual ou pessoa comum em determinada época.

Como aponta Lins e Silva (2004), o fascínio exercido pelas cartas pode ser constatado pelos numerosos estudos destinados à história das correspondências literárias. Podemos encontrar uma infinidade de publi- cações sobre correspondência entre personalidades públicas, escritores e pessoas comuns, que se destinam, por anteciparem uma circulação pública, a fixar uma memória, uma forma de expressão do mundo, uma expressão de uma individualidade e de uma escrita literária.

Lendo e (re)escrevendo as cartas: a revisão textual