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1 INTRODUÇÃO

3.3 Vocação ao Magistério

Concebido como vocação, o magistério era uma missão nobre e santa (PATRÍCIO, 2005). “O professor era tido, nessa concepção, como uma figura estratégica, o guardião de uma ordem cujo sistema de referência era o sagrado e cujas normas econômico-sociais se legitimavam por normas e valores religiosos” (PATRÍCIO, 2005, p. 24). E, em se tratando de valores religiosos, o ato de educar era semelhante à ordem da filantropia, pois era uma atividade que prezava ideologicamente pelo bem do outro sem necessariamente haver remuneração condizente com o trabalho exercido.

Wingren (2006, p. 87) ao mencionar os estudos de Lutero, afirma que “a vocação é uma convocatória para trabalhar em favor do próximo [...]”. A vocação seria concebida como ofício e lei precisando ser cumprida com espontaneidade de coração, na obediência e com ética, desse modo, as obras provenientes da vocação do homem seriam capazes de libertá-lo. Ao ensinar, o professor vocacionado precisaria fazer isso pelo amor de se doar ao outro.

O ensino, que durante a Idade média se centrava nas „mãos‟ da Igreja, passa a ser regido na República sob o controle do Estado “[...] sem que, no entanto, tenha havido mudanças significativas nas motivações, nas normas e nos valores originais da profissão docente: o modelo do professor continua muito próximo do modelo do

padre” (NÓVOA, 1999, p. 15). Assim, continuava, a ser estruturado sob bases quase filantrópicas de trabalho.

A vocação “[...] traz a ideia de que [...] uma força interna que orienta e encaminha as pessoas para determinadas profissões” (PATRÍCIO, 2005, p.14). Desse modo, a profissão de professora foi considerada como uma vocação independente do sexo, embora a mulher fosse à figura privilegiada para ocupar essa função, pois se considerava que ela tinha a predisposição e o dom natural para cuidar dos outros e de se envolver afetivamente com seu parceiro de ofício. Essa foi a imagem que se construiu e desencadeou-se junto às condições precárias em que esse ofício era desenvolvido, acrescido de remuneração quase inexistente.

Aos poucos, as mulheres foram ocupando a condição do magistério de primeiras letras, que posteriormente tornou-se uma ocupação feminina. Na sociedade prevalecia a discursividade de que ela com seu dom natural para o cuidado e a educação das crianças contribuiria significativamente para o projeto de formação humana preconizado, como o caminho mais próximo de se chegar uma sociedade desenvolvida no futuro.

O poder [...] contido nos discursos oficiais indicavam que a educação das crianças era um dos caminhos profissionais mais “adequados” para as mulheres. Isso porque essa atividade era vista, em relação à mulher, como um prolongamento do seu papel de mãe e, portanto, como uma extensão de seu trabalho de instrutora da infância e guardiã dos valores sociais vigentes (CHAMON, 2005, p. 52).

Diante desse discurso, mesmo a docência sendo considerada uma atividade que podia ser exercida sem distinção de sexo, se acreditava que a mulher era o ser indicado para desempenhar tal tarefa, especificamente no grau que compete à iniciação ao sistema educativo, baseada na ideia de “mãe educadora”.

Aspectos da tarefa docente, como o cuidado e a educação das crianças, foram considerados em parte como extensão das atividades já realizadas no lar pelas mulheres. A maternagem espiritual foi associada ao exercício da docência na escola elementar (BATISTA e CODO, 2006, p. 65).

No entanto, essa inclinação à maternagem não era suficiente para garantir o desenvolvimento social e econômico do país. As mulheres precisavam ser

ensinadas a ensinar e, para isso, precisavam deter certo arcabouço de saberes previamente elaborado.

Esse arcabouço de saberes possibilitava, em certa medida, à professora autonomia e autoridade sobre seu trabalho e sobre seu parceiro de ofício. Segundo Louro (1997, p. 93), desde o princípio do ofício de ensinar no Brasil aqueles que por ele eram responsáveis possuíam em seu arcabouço de conhecimentos “[...] um detalhado e minucioso conjunto de dispositivos de poder [...]”, que instituía um conjunto de saberes sobre aqueles que deles recebiam instrução. Desse modo, mesmo quando a vocação transforma-se em profissão, o trabalho docente continuava sendo concebido como um trabalho artesanal em que os professores tinham em seu poder o processo e o produto de seu trabalho. A profissão de docente ainda é aquela em que o trabalho é artesanal, em que os professores são os detentores do processo de seu trabalho com práticas discursivas que reforçam o ideal de modificar a realidade (CODO, 2006).

A professora teve a responsabilidade de realizar um projeto de formação humana preconizado pelo Estado, que direcionava e orientava suas atividades, assim como o currículo que deveria ser desenvolvido junto às crianças, no entanto, essa posição que mostrava resquícios de um trabalho estabelecido dentro de certos limites permitia a professora o uso de metodologias e estratégias que efetivassem o plano proposto, atribuindo a si, autonomia no exercício de seu trabalho.

Segundo Vasquez-Menezes e Gazzotti (2006) o trabalho do professor é um dos únicos, que mesmo depois do processo de proletarização disponibiliza nas mãos de seu realizador todo o processo de viabilizar-se. Ao professor pertence o trabalho: desde o planejamento até a avaliação de seus resultados. Essa prática gera no profissional que a executa expectativas sobre a atividade exercida, despertando em si a crença marcada fortemente pela esperança de que em suas mãos está a responsabilidade de mudar o mundo. “[...] a vontade de realizar algo e a certeza que pode e que vai conseguir dar algo de si para a educação” (2006, p. 369).

Azzi (2005) diz que foi a partir da profissionalização que se iniciou a ótica da docência enquanto trabalho. Essa autora explica que falar sobre o trabalho docente exige a análise da categoria trabalho abordando a docência enquanto especificidade. Desse modo, salienta que “O trabalho docente constrói-se e

transforma-se no cotidiano da vida social” (2005, p. 39), nas descontinuidades dos tempos, de conceitos e fatos.

Levando em consideração as especificidades do trabalho docente, aspectos evidenciados como elementos do processo de trabalho e a relação entre o profissional e seu parceiro de trabalho, que é também sujeito desse processo, mostram-nos o quão particular são as características da profissão de professor. E, sendo específico, “[...] não pode ser equiparado àquele decorrente da divisão detalhada do trabalho” (AZZI, 2005, p. 42), pois o ensino é uma atividade desenvolvida em sua totalidade, mas também, não deve ser tido como algo não profissionalizado devido essas especificidades.

Então, quando o professor reclamou para si um lugar comum, em que o seu trabalho tivesse o mesmo status e remuneração de outros trabalhos desenvolvidos em outras profissões, ele foi contribuindo para o esfacelamento da discursividade que o colocava enquanto ser próximo do divino e foi assistindo a sua identidade sendo ameaçada, vendo-a “[...] por um fio a cada tema, todos os dias, em cada pergunta...” (VASQUEZ-MENEZES; GAZZOTTI, 2006, p. 373).