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7. DISCUSSÃO

7.1. VULNERABILIDADE HUMANA NO CONTEXTO DO TRÂNSITO MOTOCICLÍSTICO

7.1.2. Vulnerabilidade social relacionada ao agravo

Em bioética e saúde coletiva, a questão da vulnerabilidade social supera o caráter individualizante do conceito de risco e aparece como um conjunto coletivo que remete à suscetibilidade de agravos à saúde (18). Os efeitos prejudiciais relacionados à pobreza socioeconômica que caracteriza as situações de violência ainda são agravados pela desigualdade relacionada a sexo, raça, etnia, região geográfica e intergrupos (80-81), como é o caso dos motociclistas.

As respostas aos questionários confirmaram que a maioria dos participantes dos grupos “transporte” e “trabalho” tinha o perfil de baixa escolaridade e, consequentemente, predominaram as profissões de nível médio no grupo “transporte” e de ensino fundamental no grupo “trabalho”, composto por motoboys. Outras características que fragilizam os perfis e os assentam em condições sociais desfavoráveis foram baixo poder aquisitivo, veículos de baixa cilindrada, residência em regiões periféricas do Distrito Federal, além do fato de terem escolhido a motocicleta como veículo em decorrência do baixo preço/economia e, no caso do trabalho, pela necessidade de obtenção de renda.

Nesse sentido, a vulnerabilidade social é um fenômeno determinado pela estrutura de vida diária das pessoas, dos grupos e das comunidades, interferindo na capacidade de autodeterminação e consequente aumento da exposição aos riscos causados pela exclusão social (106).

Igualmente, o estudo quantitativo apresentou que a elevada mortalidade entre motociclistas mantém estreita relação com os grupos socialmente fragilizados da sociedade, dado ao baixo nível de escolaridade que se associou à prevalente raça/cor parda. Este fenômeno não atinge somente o Brasil, mas também outros países da América Latina (39), e o associa diretamente à presença de exclusão social. Um estudo (60) baseado nos dados da Organização Pan-Americana da Saúde afirmou que a realidade das mortes e incapacidades resultantes dos acidentes de trânsito motociclísticos em toda a América Latina são desconhecidas, mas infere forte associação com os indicadores socioeconômicos.

No tocante às notificações sobre raça/cor, vale sinalizar que 4,36% foram ignoradas no período de 2004 a 2014, resultando em imprecisão das informações. Observou-se que os óbitos entre indígenas e amarelos foram relativamente baixos; no entanto, são acompanhados de certa preocupação. Um estudo recente (129) refere que a motocicleta foi o principal veículo usado pelos indígenas atendidos após acidentes de trânsito em urgências do SUS, sendo que a maioria dos condutores eram crianças e adolescentes sem carteira de habilitação e que associaram álcool à condução.

Castellani e Montagner (131) mencionam que geralmente a atenção à saúde dos indígenas é caracterizada por indiferença, discriminação e desrespeito às suas características culturais, e sugere a criação de um Comitê de Bioética para acompanhar as políticas públicas, em especial a saúde indígena. A perspectiva social adotada pela bioética propicia sua atuação no setor da saúde e contribui para aprofundar a discussão destinada aos grupos particulares, como os povos indígenas que historicamente são expropriados em amplo sentido. Feitosa (93) reforça ainda que “qualquer intervenção diante dos povos indígenas deve ser uma ação política construída e contextualizada socialmente”.

Como ocorre o sub-registro em relação à raça/cor, a situação da vulnerabilidade envolvendo a raça/cor em acidentes de trânsito motociclístico pode ser um problema maior do que o apresentado. Neste sentido, o Sistema Viva representa um avanço, pois possibilita conhecer dados dos serviços de urgência e emergência sobre acidentes e violências não registrados nos demais sistemas de informação do país (129). Assim, tornam-se necessários novos estudos que relacionem a díade raça/cor e acidentes de trânsito, especificamente na saúde indígena.

No que tange à mortalidade nas grandes regiões brasileiras, observou-se que as maiores variações médias estiveram concentradas nas regiões geográficas mais vulneráveis, sendo elas Nordeste, Norte e Centro-Oeste. O Nordeste liderou o aumento nos óbitos envolvendo motocicletas, além de ter o maior aumento na frota circulante de veículos de duas rodas. É também do Nordeste o primeiro lugar em número de óbitos entre os acidentes de transporte, sendo que o aumento populacional da região não acompanhou esses resultados.

Conforme afirma Vasconcellos (16), a maioria dos compradores de motocicletas, cerca de 80%, realiza o pagamento por meio de mensalidades ou

integra grupos de consórcio, o que facilita a aquisição da motocicleta às classes de menor poder aquisitivo.

Solbakk (108), ao interpretar o conceito de vulnerabilidade social, enfatiza que além das variáveis macrocontextuais, as considerações microcontextuais devem ser analisadas, como as relações entre as pessoas ou grupos específicos ou os contextos em que estão inseridos. Assim, os acidentes com motociclistas acontecem de forma dispersa pelo território brasileiro, mas as mortes acontecem principalmente em localidades que não reconhecem o problema, que são cortadas por vias expressas, com estradas movimentadas em má conservação, principalmente em cidades em crescimento onde os veículos circulam com pouco ou sem fiscalização e sinalização (35). Um estudo (44) mostra o aumento de mortes em cidades com menos de 20 mil habitantes onde é crescente o número de veículos associado a pouco ou nenhum investimento em relação aos fatores de risco no trânsito.

Essas situações de desigualdade e vulnerabilidade social estão intimamente interligadas e remetem ao contexto de fragilidade humana (81) – “O princípio do respeito pela vulnerabilidade humana reconhece que em determinadas circunstâncias todos os indivíduos podem perder suas capacidades ou os meios para se protegerem e necessitam de proteção” (106).

Assim, alguns indivíduos são mais vulneráveis que outros e são suscetíveis ao dano (77). Essas diferentes formas de tratar a vulnerabilidade humana – intrínseca e social – permitem que se possam aplicar medidas éticas específicas voltadas para reduzir de modo ativo a vulnerabilidade intrínseca em duplo cuidado (107).

A próxima seção discutirá as considerações estruturais da vulnerabilidade citada por Solbakk (108), motivada pela necessidade de denunciar as fontes condicionantes da vulnerabilidade humana no contexto do trânsito motociclístico.

7.1.3. Dimensão estrutural – político-econômica – como força motriz de