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Capítulo II O Imaginário do Bordel

3.2 A dimensão do Imaginário

O imaginário envolve muitos aspectos relacionados à consciência, uma vez que, para a consciência, só tem existência, só tem significado, aquilo que tiver um valor. Estamos sempre em busca dos valores revestidos nos objetos e, essa relação é, em parte, responsável pelo modo com compreendemos a percepção da imagem. A consciência pura e desembaraçada de todos os obstáculos cria um mundo verdadeiro, sem nenhuma mistura de devaneio. A consciência só começa a ser, determinando um objeto, e mesmo os fantasmas de “experiência interna” só são possíveis por empréstimo à experiência externa. Portanto não há vida privada na consciência, e a consciência só tem como obstáculo o caos, que não é nada (Merleau- Ponty, 1999, p.55).

Para compreendermos parte da gênese do trabalho de Tereza Costa Rêgo, além do conceito do imaginário, também precisamos observar as questões fenomenológicas da percepção através de Merleau-Ponty (1999). O primado da percepção é, em suma, a colocação em relevo de nossa maneira primordial de nos relacionarmos com o mundo, para que fique claro, faremos uma breve exposição do período anterior à fenomenologia até as ideias do teórico em questão.

Os empiristas pensavam a sensação como algo atribuído a questões exteriores, causadas por estímulos externos que agiam sobre os sentidos e isto gerava sensações: cores, sabores, odores, texturas. Já os intelectualistas falavam da percepção como uma capacidade individual do sujeito, ou seja, a compreensão da percepção dependia da competência do indivíduo em interpretar os objetos, o mundo. Os empiristas e os intelectualistas não deram conta da capilaridade e profundidade da percepção, pois pensavam a percepção de forma parcial, como uma soma ou junção de sensações. Foram superados com uma nova concepção a partir da fenomenologia e a teoria da Gestalt. Fenomenologia e Gestalt não vão fazer distinções entre sensação e percepção, pois sente-se e percebe-se formas integrais, estruturadas com significados e sentidos. A percepção continuamente percebe uma totalidade completa.

A obra de Tereza Costa Rêgo tem sua origem a partir das percepções que são carregadas por sensações, vermelhos, texturas, silêncios. Sentimos e percebemos as qualidades das sensações, que são parte integrante de cada elemento em cena. A artista faz uma trama imagética carregada de interioridades e exterioridades singulares e particulares. O conhecimento sensível registrado em sua obra é organizado pela sua percepção particular do mundo.

O caminho fenomenológico ajuda a compreender a essência da percepção na obra de Tereza Costa Rêgo. Trata-se de descrever, não de explicar nem de analisar a percepção estética e cosmológica na obra da artista. A pintora encontra no mundo os meios para sua produção artística. É a partir das suas percepções de mundo que sua obra nasce. A verdade da sua obra está na facticidade da sua percepção e do mundo a sua volta. A artista expressa um mundo que parte de si mesma, das suas experiências e não de uma ideia normatizada pela sociedade ou pela cultura judaico-cristã. Portanto, não é preciso perguntar-se se nós percebemos verdadeiramente o mundo, é preciso dizer, ao contrário: o mundo é aquilo que nós percebemos (Merleau-Ponty, 1999, p.13). Buscar a verdade da essência da percepção não é assumir que ela é verdadeira, mas que ela é um acesso à verdade.

Sob a perspectiva do imaginário, que tem sido amplamente estudado, o que atrai tantos interesses é o estudo dos mitos, dos símbolos e de sua importância na relação homem/cosmos, isto é, como as configurações simbólicas que formatam as maneiras do pensar, bem como as práticas sociais que instituem o homem e seu meio. Na obra “As Estruturas Antropológicas do Imaginário” (2002), Gilbert Durand conceitua o imaginário como “o conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens” (DURAND, 2002, p. 18). Isso significa que o imaginário não é apenas fantasia delirante e desprovida de valor. O imaginário vai além, pois é através de imagens de grandes temas, isto é, temas recorrentes em todos os tempos e sociedades, que se convergem e se organizam. É através do imaginário que o homem cria e recria, constrói significados e ressignifica simbolismos, para explicar o que não consegue por via lógica e/ou racional.

Gaston Bachelard (1978) vai traz em seus pensamentos, novas reflexões a respeito do imaginário e da ciência. Bachelard vai apontar a importância do poético como conhecimento, vai redescobrir o imaginário como elo nas construções humanas. Ele se esforçou para distinguir a imaginação enquanto simples registro passivo, da imaginação que, aliada à vontade, é poder de criação. O filósofo tem o grande mérito de ter reabilitado a poesia como meio de conhecimento; poesia que é do domínio do simbólico, do sensível, do subjetivo.

Tudo o que pode esperar a filosofia é tornar a poesia e a ciência complementares, é uni-las como dois contrários bem feitos [...] Bachelard vai descobrir que o imaginário, muito longe de ser a expressão de uma fantasia delirante, desenvolve-se em torno de alguns grandes temas, algumas grandes imagens que constituem para o homem os núcleos ao redor dos quais as imagens convergem e se organizem (DURAND, 2005, p.13/14).

Na obra A Poética do Espaço (1978), Bachelard afirma que só a fenomenologia da imaginação, isto é, "a consideração do início da imagem numa consciência individual (como um produto direto do coração, da alma. do ser do homem tomado em sua atualidade), pode ajudar-nos a reconstituir a subjetividade das imagens e a medir a amplitude, a força, o sentido da transubjetividade da imagem". Bachelard não foi apenas o filósofo do “novo espírito científico”. Investigou também a natureza do imaginário poético e soube extrair novos significados das obras de arte. Para ele somente os pensamentos e as experiências saciam os valores humanos. Em diversas obras filosófico-poéticas, a imaginação foi valorizada como um processo mental criador, que dinamiza todo o saber humano. E, em especial, valoriza-a como invenção que organiza as obras de arte, pois o mundo da arte é o mundo imaginário. Em sua concepção, a imaginação se desdobra: é uma força primitiva, agente essencial da percepção e é uma capacidade secundária – a fantasia – que age ao nível da vontade consciente, deformando e recriando as imagens primeiras.

Conceitualmente, o imaginário pode ser entendido como fonte atuante da ideia e da representação mental da imagem. Energia que se formaliza individual e coletivamente, materializando-se em ações informadas por imagens e símbolos. Uma espécie de relação psicológica do homem com seu meio, os lugares físicos de vida íntima, o elo afetivo entre a pessoa e o lugar. No irremediável rasgão entre a fugacidade da imagem e a perenidade do sentido que o símbolo constitui, precipita-se a totalidade da cultura humana, como uma mediação perpétua entre a esperança dos homens e sua condição temporal (DURAND, 1995, p.108).

Em As Estruturas Antropológicas do Imaginário (2002), Durand, retoma os estudos de Bachelard, sistematizando-os. Endossa as intuições bachelardianas como fundamentais na concepção geral do simbolismo imaginário: "a imaginação é um dinamismo organizador, e este dinamismo organizador é fator de homogeneidade na representação" (p. 26).

Segundo Durand, os sistemas simbólicos não são independentes, pois eles nascem de uma visão de mundo particular, imaginária, que é da própria cultura. O trabalho de Tereza Costa Rêgo nos mostra os vínculos e intercâmbios com a sua cultura. A artista produz

“representações” de um imaginário particular através de símbolos cheios de significados, que contém a essência de suas pulsões culturais subjetivas. Através do seu mapa imaginário, as

imagens de Tereza Costa Rêgo resgatam algo, e conecta-nos a uma noção de pertencimento com a cultura e com a imagem produzida,

[...] não se trata de classificar uma cultura em tal ou tal estrutura, mas de perceber qual é a “polarização” predominante, isto é, o tipo de dinamismo que se encontra em ação, o que leva a determinação do trajeto antropológico” em determinada cultura ou grupo social. O trajeto antropológico é “o incessante intercâmbio existente, ao nível do imaginário, entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social”.[...] O trajeto antropológico pode partir tanto da cultura como do natural psicológico, o essencial da representação e do símbolo estão contidos entre essas duas dimensões (PITTA, 2005, p.19 e 21)

Para o pesquisador Ruiz (2003), o imaginário remete a alma, ao ser total em todas as suas instâncias, que não se explica de modo absoluto, pois, nele reside a dimensão criadora do ser humano. Ele clama para sermos mais cautelosos com as classificações genéricas das pessoas e dos pensamentos, e nos estimula a saborear a riqueza peculiar e particular do detalhe.

Aceitemos a vertigem de perceber em nós um sem-fundo humano inesgotável, incomensurável, inatingível, singular e disforme, universal por ser diferente (RUIZ, 2003, p.21). Na fase “Bordéis Pernambucanos” de Tereza Costa Rêgo, as imagens não são apenas mediações entre o homem e o mundo, elas se apresentam como realidades simbólicas da dimensão humana.

À manifestação artística particular da artista transcende por intermédio de uma autonomia consciente. Ela se serve das vivências, segredos, memórias e percepções como instrumentos que propiciam voz a sua cosmovisão. A obra de arte ganha livre-arbítrio face à realidade e liberta-se da sua função de representar, tornando-se a expressão de suas experiências, valores e sentimentos. Defendemos aqui uma visão de superação da representação enquanto categoria de análise, uma vez que ela é apenas uma etapa de sentido da imagem, relacionada à iconização. Justificamos esta reflexão sobre a forma de “representação” de Tereza Costa Rêgo, através do conceito do imaginário que expressa, sem dúvida, uma matiz de desejos, de modelos, de sentidos e de valores que permitem que os humanos estruturem a sua experiência, desenvolvam as suas construções intelectuais e dê início a ações (ARAÚJO, 2003, p.17).

A obra da artista revela uma relação imagem-imaginário estreita, complexa e profunda. As imagens de Tereza Costa Rêgo, não representam o mundo, mas conceitos relativos ao mundo.

Para decifrar esses conceitos abstraídos em imagens é necessário deixar o olhar vaguear pela

superfície de suas telas, e identificar os possíveis mitos que aparecem como uma forma de representação simbólica mais elaborada e complexa do imaginário.

O imaginário é imponderável, inesgotável, incomensurável, inatingível. O que fica no imaginário da humanidade é o que toca a alma. Assim como um fluxo de energia, o imaginário é o real e autêntico, é a expressão de um todo na sua originalidade e singularidade imaginante. O imaginário sempre deverá ser apresentado pelos seus efeitos, pois nunca poderá ser elucidado por meio de definições conclusivas. Os efeitos da obra de Tereza Costa Rêgo são inesgotáveis e tocantes na alma de quem tem olhos de ver.