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1. INICIAÇÃO A JOHN RAWLS

2.7 OS PRINCÍPIOS PRIMEIROS DA JUSTIÇA

Em sua investigação sobre a justiça, Rawls deseja saber quais princípios de justiça são os mais apropriados para determinar direitos e liberdades fundamentais e para regular as desigualdades sociais e econômicas das perspectivas de vida dos indivíduos em uma sociedade considerada como um sistema eqüitativo de cooperação entre cidadãos livres e iguais.O professor de Harvard chega então aos dois princípios de justiça, que acredita que serão os escolhidos pelas partes na posição original, formulados da seguinte forma:

(a) cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com o mesmo esquema de liberdades para todos.

(b) as desigualdade econômicas e sociais devem satisfazer duas condições: [i] primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades; [ii] e, em segundo lugar, têm de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade (o princípio da diferença).113

111 RAWLS, John. Justiça como eqüidade: uma reformulação. p. 137

112 “Os sujeitos em questão não sabem qual é a probabilidade que têm a seu alcance; nem têm um particular interesse em benefícios maiores que o mínimo; nem querem opções que envolvam riscos muito graves.” GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. p. 24.

113 RAWLS, John. Justiça como eqüidade: uma reformulação. p. 60

O primeiro princípio enunciado surge como conseqüência da ignorância das partes na posição original em relação a sua própria concepção de bem. Assim, ao escolher o princípio da igual liberdade (equal liberty principle), as partes estão

“interessadas em que, seja qual for a concepção do bem que acabem adotando, as instituições básicas da sociedade não os prejudiquem ou discriminem.”114 Rawls refere-se apenas às liberdades civis e políticas115 que fornecem condições essenciais para o adequado desenvolvimento e realização das faculdades morais das pessoas livres e iguais. O filósofo norte-americano frisa que essas liberdades não são absolutas, uma vez que podem vir a se chocar umas com as outras, contudo, o que importa é elas sejam ajustadas de modo a formar um único sistema, que deve ser o mesmo para todos.116

O segundo princípio desdobra-se em dois, o princípio da igualdade eqüitativa de oportunidades (fair equality of opportunities) e o princípio da diferença (difference principle) ou princípio da justiça distributiva. Ambos têm origem na ignorância que as partes na posição original têm em relação a seus talentos e a sua posição social e econômica na sociedade real.117

Os dois princípios propostos por Rawls aplicam-se à estrutura básica da sociedade, entretanto, o primeiro princípio deve ser empregado principalmente na Constituição da sociedade, escrita ou não. Já o segundo princípio deve estar focado nas instituições de fundo da justiça social e econômica.118

Pode-se afirmar que os princípios propostos por Rawls são análogos aos princípios clamados pela Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.

114 GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. p. 25.

115 As liberdades iguais listadas por Rawls: “Liberdade política (o direito de votar e ocupar um cargo político) e a liberdade de expressão e reunião; liberdade de consciência e de pensamento; as liberdades da pessoa que incluem proteção contra a opressão psicológica e a agressão física (integridade da pessoa); o direito à propriedade privada e a proteção contra a prisão e a detenção arbitrárias, de acordo com o conceito de estado de direito.”

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. p.65

116 Cf. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. p.65

117 Cf. GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. p. 25.

118 “[…] as instituições de fundo têm de funcionar no sentido de manter a propriedade e a riqueza tão uniformemente partilhados ao longo do tempo quanto o seja necessário para preservar o valor eqüitativo das liberdades políticas e a igualdade eqüitativa de oportunidades entre as gerações. Essas instituições fazem isso por meio de leis que regulam os legados e as heranças de propriedade, e de outros mecanismos tais como impostos, para evitar concentrações excessivas de poder privado.” RAWLS, John. Justiça como eqüidade: uma reformulação. p. 72

2.7.1 Os quatro estágios de concretização dos princípios da justiça.

Os princípios da justiça como eqüidade são adotados e aplicados em uma seqüência de quatro estágios. O primeiro estágio é o momento da escolha dos princípios de justiça na posição original, sob o véu da ignorância. Depois de escolherem tais princípios, as partes retornam para seus lugares na sociedade e procuram formar uma convenção constituinte. Agora, já sem o véu da ignorância, as pessoas têm um conhecimento tanto teórico quanto genérico a respeito de sua sociedade, o que lhes dá condições de “escolher a constituição justa mais eficaz, que satisfaça os princípios da justiça e seja a mais bem projetada para promover uma legislação eficaz e justa.” 119

O terceiro estágio é então caracterizado pela promulgação de leis, as quais devem estar em consonância com o que a constituição admite e com as exigências dos princípios de justiça inicialmente acordados. Nesse estágio de legislatura “toda a gama de fatos sociais e econômicos de caráter geral entra em jogo.”120 É assim que

Os diversos institutos legais devem satisfazer não apenas os princípios da justiça, mas também respeitar quaisquer limites estabelecidos na constituição. Por meio desse movimento de avanços e recuos entre os estágios da legislatura e da convenção constituinte, descobre-se a melhor constituição.121

Por fim, no quarto estágio as normas são aplicadas aos casos particulares pelos governantes e magistrados, e de um modo geral são seguidas pelos cidadãos.

É nesse último estágio que a constituição e as leis são interpretadas pelo judiciário.122

2.8 JUSTIÇA PROCEDIMENTAL: PRIORIDADE DO JUSTO SOBRE O BEM

Uma das críticas que faz ao utilitarismo é que para esta corrente filosófica o que importa é que a conseqüência de uma ação proporcione o maior grau de felicidade geral possível, assim, o bem (a felicidade) antepõe-se a noção de justo.

119RAWLS, John. Uma teoria da justiça. p. 213.

120 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. p. 216.

121 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. p. 215.

122 RAWLS, John. Justiça como eqüidade: uma reformulação. p. 68

Na teoria da justiça como eqüidade, entretanto, nas questões de justiça importa é promover antes a justiça do que a felicidade geral. A justiça procedimental pura se verifica quando

existe um procedimento correto ou justo de modo que o resultado também será correto ou justo, qualquer que seja ele, contanto que o procedimento tenha sido corretamente aplicado.123

No caso da teoria da justiça como eqüidade, o procedimento de escolha dos princípios na posição original, sob um véu da ignorância remete à justiça procedimental. No momento da escolha dos princípios, todas as partes são consideradas como iguais e livres de qualquer interesse externo, são autônomas. A posição original proporciona um ambiente em que as escolhas ali feitas são eqüitativas e, ao seguir-se um procedimento correto ou justo, o resultado também será correto ou justo.

123 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. p. 92.

3. UMA INTRODUÇÃO À FUNDAMENTAÇÃO DO DIREITO A PARTIR DA TEORIA DE JOHN RAWLS

3.1 UM PROBLEMA URGENTE PARA A FILOSOFIA POLÍTICA

Na obra Justiça como Eqüidade, o autor apresenta como uma das funções da filosofia política colocar em evidência “questões profundamente controversas e verificar se, a despeito das aparências, é possível descobrir uma base subjacente de acordo filosófico e moral.”124 Rawls detectou um conflito, aparentemente irreconciliável, nas sociedades democráticas no que diz respeito às reivindicações de liberdade e as de igualdade, as quais “são ambíguas, para não dizer equívocas, e o modo de equilibrá-las nunca foi exposto de forma que mereça a aprovação geral.”125 Surge então uma meta para a filosofia política responder como é possível explicar os conceitos de liberdade e igualdade e descrever um modo de ordená-los e equilibrá-los de maneira que os cidadãos de tais sociedades concordem com eles.

Porém, de acordo com Cortina Orts, para atingir esse objetivo “é preciso submeter à revisão os fundamentos do direito a partir de uma filosofia moral.”126

As teorias morais até sua época, no entender de Rawls, eram insuficientes ou frágeis demais para atender essa demanda da filosofia política. O filósofo então elabora sua teoria da justiça como alternativa às explicações vigentes para as liberdades e direitos básicos.127 O objeto da justiça social rawlsiana é a forma como as instituições sociais mais importantes distribuem os deveres e direitos fundamentais e o modo como dividem os benefícios da cooperação social. Uma vez

124 RAWLS, John. Justiça como eqüidade: uma reformulação. p. 02

125 […] los conceptos de ‘libertad’ e ‘igualdad’ son ambiguos, por no decir equívocos, y el modo de equilibrarlos nunca ha sido expuesto de tal forma que merezca la aprobación general.” (tradução livre) CORTINA ORTS, Adela. La justificacion etica del derecho como tarea prioritaria de la filosofia política. Una discusion desde John Rawls. 129.

126 “[…] es preciso someter a revisión los fundamentos del derecho desde una filosofía moral.” (traduçao livre) CORTINA ORTS, Adela. La justificacion etica del derecho como tarea prioritaria de la filosofia política. Una discusion desde John Rawls. 130.

127 Cf. RAWLS, John. Prefácio à edição brasileira. _____ Uma teoria da justiça.

que distribuição é feita pelos códigos jurídicos estes devem ser submetidos a uma revisão sob a ótica da justiça, porém, como é possível “dizer nas sociedades democráticas que um código jurídico é justo, de tal modo que possa ser considerado criticamente legítimo?”128 Esta pergunta remete à análise dos critérios de legitimidade e justiça de uma decisão. Desde já, deixa-se claro que Rawls diferencia questões de ‘legitimidade’ das de justiça, enfatizando estas últimas129.

3.2 LEGITIMIDADE OU JUSTIÇA?

LUCIO LEVI afirma que o significado mais geral do vocábulo “legitimidade”–

cujo verbete correlato é processo legislativo - aproxima-se do sentido de justiça ou de racionalidade. Em termos políticos, a legitimidade aparece em um sentido mais estrito, ligada a um atributo do Estado,

[…] que consiste na presença, em uma parcela significativa da população, de um grau de consenso capaz de assegurar a obediência sem a necessidade de recorrer ao uso da força, a não ser em casos esporádicos.130

Seguindo este autor, pode-se analisar a justiça de uma decisão ou de um governo apenas sob o aspecto da legitimidade. Admitir essa proposição como verdadeira implica em aceitar que as decisões tomadas por maioria serão “lei, sempre que forem respeitados os procedimentos apropriados, o conjunto de regras que identificam a lei.”131 Rawls, embora não negue que exista uma relação vigorosa entre processo democrático e justiça132, chama atenção para o fato de que uma decisão que atenda aos critérios de legitimidade, ainda assim pode ser injusta.

128 “¿Como podemos decir en las sociedades democráticas que un código jurídico és justo, de tal modo que pueda considerar-se criticamente legítimo?” (tradução livre) CORTINA ORTS, Adela. La justificacion etica del derecho como tarea prioritaria de la filosofia política.

Una discusion desde John Rawls. p. 130

129 Cf. ARAÚJO, Cícero. Legitimidade, justiça e democracia: o novo contratualismo de Rawls. Lua Nova: Revista de Cultura e política. São Paulo, v. 57, n. pp. 73-76, 2002.

130 LEVI, Lucio. Verbete “legitimidade”. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola;

PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Tradução: Carmen C. Varriale…[et. al] 4.

ed. Brasília, Editora UnB, 1998. p. 675.

131 RAWLS, John. Justiça como eqüidade: uma reformulação. p. 205

132 “Embora a idéia de legitimidade esteja claramente relacionada à justiça, deve-se observar que seu papel especial nas instituições democráticas […] é autorizar um

[…] [um regime democrático] pode ser legítimo e de acordo com uma longa tradição originada quando sua constituição foi aprovada pelo eleitorado (o povo)… E no entanto ele pode não ser muito justo, ou muito pouco justo, e assim também suas leis políticas.133

Nesse sentido, o fato de a eleição dos governantes e das leis atenderem aos critérios do processo democrático sendo escolhidos por maiorias, e portanto legítimos, não implica que o conteúdo das decisões e das leis seja justo. Para analisar uma decisão ou o conteúdo de uma norma, é insuficiente fazê-lo verificando apenas a correção dos procedimentos, tem-se de levar em conta os princípios substantivos de justiça, ou seja, os valores morais envolvidos. 134

A legitimidade dos atos legislativos depende da justiça da constituição […] e quanto maior é o desvio da justiça, mais provável é a injustiça dos resultados. Para que possam ser legítimas, as leis não podem ser injustas demais. Procedimentos políticos constitucionais podem de fato ser […] puramente procedimentais quanto à legitimidade. Em vista da imperfeição de todos os procedimentos políticos humanos, não pode haver tal procedimento com relação à justiça política, e nenhum procedimento poderá determinar seu conteúdo substantivo. Logo, sempre dependemos de nossos juízos substantivos de justiça.135

Há um limite para a injustiça das decisões e quando estas são muito injustas, corrompe-se a própria legitimidade do processo democrático, que está alicerçado no arcabouço constitucional. A partir de certo momento, decisões injustas contaminam a legitimidade dos atos do governo. Disso, pode-se dizer que os limites da legitimidade democrática são estabelecidos pela justiça.136 Neste momento é relevante fazer a distinção entre democracia e justiça para posteriormente reaproximá-las.

procedimento apropriado para tomar decisões quando os conflitos e desacordos na vida política tornam a unanimidade impossível ou raramente esperada.” (Reply to Habermas In:

Political Liberalism, 1996, p. 428). Apud. ARAÚJO, Cícero. Legitimidade, justiça e democracia: o novo contratualismo de Rawls. p. 74.

133 (Reply to Habermas In: Political Liberalism, 1996, p. 427). Apud. ARAÚJO, Cícero.

Legitimidade, justiça e democracia: o novo contratualismo de Rawls. p. 74.

134 Cf. ARAÚJO, Cícero. Legitimidade, justiça e democracia: o novo contratualismo de Rawls. p. 83.

135 (Reply to Habermas In: Political Liberalism, 1996, p. 429). Apud. ARAÚJO, Cícero.

Legitimidade, justiça e democracia: o novo contratualismo de Rawls. p. 74-75.

136 “Se quisermos avaliar quão justas são as decisões dos regimes democráticos, olhar para os procedimentos de legitimação das decisões é claramente insuficiente, mesmo quando as consideramos aceitáveis, isto é, dentro da margem de tolerância necessária à sustentação do jogo democrático.” ARAÚJO, Cícero. Legitimidade, justiça e democracia: o novo contratualismo de Rawls. p. 75

3.3 DEMOCRACIA E JUSTIÇA

De acordo com Bobbio137, a democracia é uma forma de governo na qual o poder político é exercido pelo povo (por todo o povo, pela maioria ou por muitos). A teoria democrática tem caráter normativo (aponta para o que devem ser as instituições políticas), descritivo e explicativo. Estes dois últimos preocupam-se em responder como as instituições democráticas funcionam.138

Araújo apresenta como diferença de perspectiva entre a teoria da democracia e uma teoria geral da justiça o fato de esta última ser eminentemente normativa. A teoria da justiça tem que tomar parte nas questões que relacionam igualdade e desigualdade entre pessoas ou grupo de pessoas, e estabelecer quais desigualdades podem ser moralmente justificadas e quais igualdades são moralmente injustificáveis. Contudo, a questão que trata igualdade e desigualdade é multidimensional, o que significa que reconhecer a igualdade em uma dimensão, não implica estendê-la para os demais níveis.139

Ainda no âmbito das teorias da justiça, há uma preocupação específica no que se refere à política, qual seja, o exercício poder político. Como as questões atinentes ao poder político são englobadas pela parte normativa da teoria democrática, é possível estabelecer uma base de diálogo entre as duas teorias.140 Tanto a justificação do poder político quanto à da justiça (a partir de Rawls) utiliza-se do procedimento do contrato para firmar, respectivamente, um governo legítimo e princípios de justiça.

137 Cf. BOBBIO, Norberto. Democracia e ditadura. In: _____. Estado, Governo e Sociedade: para uma teoria geral da política. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. 3.ed.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

138 Cf. ARAÚJO, Cícero. Legitimidade, justiça e democracia: o novo contratualismo de Rawls. p. 75

139 Cf. ARAÚJO, Cícero. Legitimidade, justiça e democracia: o novo contratualismo de Rawls. p. 75

140 Neste diálogo, entram questões como “quem pode participar e como deve participar das decisões coletivas. Há uma questão de igualdade neste problema? Todos os que são afetados pelas decisões políticas, e são obrigados a obedecê-las, devem participar igualmente dessas mesmas decisões?” Cf. ARAÚJO, Cícero. Legitimidade, justiça e democracia: o novo contratualismo de Rawls. p. 76

3.4 O LIBERALISMO CLÁSSICO E O NOVO LIBERALISMO

O termo liberalismo será tratado aqui sob o ponto da filosofia política. A inquietação dos pensadores do liberalismo clássicos dizia respeito à justificação e extensão do poder político, aos limites do governo.141 Descontentes com a explicação divina do poder, buscaram “[…] justificar racionalmente a existência do Estado e de encontrar um fundamento racional para o poder político, para o máximo de poder do homem sobre o homem […]”.142 A preocupação com os limites da ação estatal levou liberais clássicos a formular “uma teoria normativa do governo: uma teoria do governo legítimo.”143 Os principais autores desta teoria,

[…] partem de uma concepção de direitos naturais que serve (1) como um guia para pensar o correto procedimento para construir um governo legítimo; (2) como um delimitador da ação desse governo, uma vez constituído; (3) para formular um conceito de soberania.144

A teoria do contrato social apresentou-se como o mais como o correto procedimento para justificar o poder145, construir um governo legítimo e limitar a ação do Estado. A partir do contratualismo, o poder já não pode mais ser justificado em entidades divinas, pois a autoridade é vista como uma criação dos próprios indivíduos. Daí dizer-se que a tradição filosófica e política liberal considera primordial o valor da autonomia da pessoa.146

De acordo com Gargarella, com o advento da teoria do contrato, questionamentos morais que antes só encontravam respostas na religião, como “o que a moral exige de nós” e “porque devemos obedecer a certas regras” podem ser respondidas recorrendo à autonomia: “a moral exige que cumpramos aquela

141 “[…] os liberais consideravam um tema mais urgente e mais ameaçador para a ordem política, a hipertrofia estatal, e procuravam pensar em limites nessa esfera exatamente para reservar um lugar ao sol às liberdades individuais e/ou à propriedade.” ARAÚJO, Cícero.

Legitimidade, justiça e democracia: o novo contratualismo de Rawls. p. 77

142 BOBBIO, Norberto. Liberalismo velho e novo. In: _____O futuro da democracia.

Tradução: Marco Aurélio Nogueira. 7.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. p. 158

143 ARAÚJO, Cícero. Legitimidade, justiça e democracia: o novo contratualismo de Rawls. p.

77 144 ARAÚJO, Cícero. Legitimidade, justiça e democracia: o novo contratualismo de Rawls. p.

77 145 […] e de um modo particular daquele poder que não tem acima de si nenhum outro poder, ou seja, do poder soberano. BOBBIO, Norberto. Liberalismo velho e novo. p. 158.

146 Cf. GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. p.14

obrigações que nos comprometemos a cumprir” e “a razão pela qual devemos obedecer a certas regras é porque nos comprometemos a isso.” 147

O ponto central da teoria do governo legítimo no liberalismo clássico é o conceito de soberania. A comunidade política é pensada como uma nação, em que os membros se ligam por “laços históricos, afetivos, lingüísticos, de nascimento ou de lutas políticas comuns.”148 E é esta comunidade que vai justificar o Estado soberano.

Rawls retoma a teoria do contrato socialnão para justificar o poder ou um governo legítimo, mas sim para justificar racionalmente a justiça, que em sua teoria é resultado de um contrato original entre pessoas racionais. Por este motivo, Araújo149 afirma que “[…] o pensamento de Rawls é um marco na recuperação contemporânea do pensamento liberal.”

Ao retomar a teoria contratualista, Rawls tirou de foco a soberania do Estado e nacional, tão cara ao liberalismo clássico, e colocou como questão central o problema da justiça.

[…] a questão da justiça reduz a importância do problema da soberania e da identidade nacional que a especifica. Quando a justiça passa para o centro da reflexão, é menos importante saber se pertencemos a esta ou àquela nação do que se fazemos parte de uma comunidade que é normatizada por regras de cooperação justas, e se temos um governo que se esforça para conservá-las.150 O problema quando do Estado democrático, fundado pela soberania popular, é que a vontade da maioria empresta legitimidade às decisões democráticas. A soberania está ligada à legitimidade, à aprovação pela maioria. As reflexões dos novos liberais voltam-se para análise do conteúdo normativo, a justiça das decisões do governo. 151

147 GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. p.14

148 ARAÚJO, Cícero. Legitimidade, justiça e democracia: o novo contratualismo de Rawls. p.

81 149 ARAÚJO, Cícero. Legitimidade, justiça e democracia: o novo contratualismo de Rawls. p.

77 150 ARAÚJO, Cícero. Legitimidade, justiça e democracia: o novo contratualismo de Rawls. p.

77 151 ARAÚJO, Cícero. Legitimidade, justiça e democracia: o novo contratualismo de Rawls. p.

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3.5 JUSTIÇA E LEGITIMIDADE

Neste momento, a discussão entre justiça e legitimidade é retomada, sob o enfoque do novo liberalismo, mostrando que na análise do conteúdo normativo das decisões são consideradas as questões de justiça e as a legitimidade. Contudo, agora a legitimidade não é apresentada no sentido de apenas ser decisão da maioria.

Em Justiça como Eqüidade152, antes de apresentar seus dois princípios de justiça, Rawls reitera que uma concepção de justiça tem que ser política. Dizer que uma concepção de justiça é política significa que é, em primeiro lugar, uma concepção moral elaborada com vistas à estrutura básica da sociedade e restringe- se à idéia de sociedade como um sistema eqüitativo de cooperação e à idéia de cidadãos livres e iguais. E mais, nestas sociedades bem-ordenadas, todos aceitam os mesmos princípios de justiça. 153

Assim, depois de a concepção de justiça ser afirmada política nos termos acima, Rawls anuncia o princípio liberal de legitimidade, segundo o qual

[…] o poder político só é legítimo quando é exercido de acordo com uma constituição (escrita ou não), cujos elementos essenciais todos os cidadãos, considerados como razoáveis e racionais, podem endossar à luz de sua razão humana comum. Este é o princípio liberal de legitimidade.154

A partir deste princípio, o Estado não precisa mais emprestar a legitimidade da vontade da maioria. O poder político passa a ser limitadado por um corpo constitucional, cujos principais elementos estão fundados em princípios da justiça racionalmente justificados. Foram, pois, escolhidos consensualmente por pessoas autônomas, dispostas a cooperar com a justiça, a discutir, revisar e até a desconsiderar seus juízos morais até chegar a um equilíbrio. E tudo isso feito em condição de eqüidade, em que todas as partes são consideradas igualmente dignas, todas têm o mesmo direito de questionar, de decidir e debater as leis pelas quais serão regidos. Dito de outro modo, o poder político só é legítimo quando fundado na justiça como eqüidade.

152 RAWLS, John. Justiça como eqüidade: uma reformulação. p. 57

153 RAWLS, John. Justiça como eqüidade: uma reformulação. p. 37

154 RAWLS, John. Justiça como eqüidade: uma reformulação. p. 57

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