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DO CAMPO

No documento nucleacao_miolo_ebook.pdf (páginas 43-63)

Thaíse da Paixão Santos Ramofly Bicalho Pedro Clei Sanches Macedo

O presente artigo parte das experiências de vida e formação dos autores, em debate no Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação do Campo, Movimentos Sociais e Pedagogia da Alternância, na UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Portanto, esta pesquisa está imbricada com as experiências formativas vivenciadas nas escolas públicas do campo e sua estreita relação com os movimentos sociais.

O recorte partiu das nossas experiências, enquanto educadores. Nesse sentido, foi possível vivenciar e conviver com a realidade de professores que trabalham com classes multisseriadas. A inserção nesse contexto, possibilitou-nos outros saberes, possibilidades e compreensões que “en- sinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua produção ou a sua construção” (FREIRE, 2014, p. 24).

Para compreendermos o direito de ter direitos nas classes multis- seriadas, priorizaremos neste artigo, uma parte da trajetória acadêmica da Professora Thaíse da Paixão Santos. Ela inicia a docência em 2010 no ensino público, ministrando aulas numa classe multisseriada no Assen- tamento Frei Vantuy, fundado em 27/10/1999, localizado na Rodovia Ilhéus – Itabuna, Km 10. Tinha acabado de terminar a graduação em

pedagogia e ser aprovada no processo seletivo da Prefeitura de Ilhéus, quando foi encaminhada para essa escola. Essa realidade se apresentou desafiadora, pois estava diante de um contexto que durante sua forma- ção não tinha vivenciado. Nesse sentido, como nos escritos de Freire (2014, p. 25) “vai ficando cada vez mais claro que embora diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado”.

No primeiro momento foi muito difícil, afinal estava iniciando a docência. Thaíse se deparou com alguns desafios, tais como: 1) Sala multisseriada com uma turma que atendia da educação infantil aos anos iniciais do ensino fundamental I. 2) Falta de estrutura física na sala de aula. Durante um bom período de tempo as aulas ocorreram debaixo de barcaças, pois era o lugar que oferecia “melhores” condições. 3) Rejeição por não ser da comunidade. 4) Falta de materiais didáticos alinhados com a realidade dos estudantes das salas multisseriadas. 5) Distância da escola sede, dificultando o apoio e a assessoria da equipe gestora.

O retorno às classes multisseriadas ocorreu quando ao voltar de licença do Mestrado em Educação de Jovens e Adultos, Thaíse se apresenta na Secretaria Municipal de Educação de Ubaitaba e, logo em seguida, é encaminhada para coordenação das escolas do campo de Educação Infantil, com classes multisseriadas. Assim, ao assumir essa enorme responsabilidade, ela se viu em um novo recomeço, pois tinha iniciado sua atuação na escola pública em classes multisseriadas e, até então, não possuía nenhuma formação especifica para atender tais de- mandas. Diante disso, surgiu a necessidade de investigar a educação do campo, inclusive, as questões relacionadas com as classes multisseria- das, não somente no âmbito dos marcos legais que amparam este direito à educação, mas pensar nas possíveis contribuições e um breve diálogo entre currículo e educação problematizadora (BICALHO, 2017).

Para sustentar e aprofundar a temática aqui proposta, trabalha- mos com inúmeros referenciais publicados em dissertações de mes- trado, teses de doutorado, livros e artigos em revistas especializadas.

Desse modo, o presente texto teve como base metodológica a pesquisa bibliográfica que, segundo Fonseca (2002, p.32) “é feita a partir do le-

vantamento de referências teóricas já analisadas, e publicadas por meios escritos e eletrônicos, como livros, artigos científicos, páginas de web sites”.

O primeiro tópico deste artigo se inicia com uma breve discussão sobre as interfaces entre educação do campo, direitos humanos e currí- culo, apresentando alguns marcos legais que legitimam o direito à edu- cação. No tópico seguinte, apresentamos alguns conceitos e as princi- pais correntes teóricas sobre currículo, a partir dos referenciais teóricos aqui trabalhados, procurando analisar a corrente que melhor se aproxi- ma das discussões sobre as classes multisseriadas, realidade presente no contexto da educação do campo (BICALHO, 2017).

A relevância desta pesquisa pode contribuir com os debates acer- ca dos direitos humanos presente, de forma reflexiva, nos currículos das escolas do campo. Buscamos, principalmente, apresentar as possibilida- des de se pensar na interface entre as noções de cidadania, as práticas de convivência, o respeito ao direito instituído, bem como, a participação dos sujeitos, individuais e coletivos, no exercício da democracia.

O DIREITO À EDUCAÇÃO E A EDUCAÇÃO COMO DIREITO:

INTERFACES ENTRE EDUCAÇÃO DO CAMPO, DIREITOS HU- MANOS E CURRÍCULO

A educação sempre foi alvo dos sistemas de governo e carrega- da de sentido e intencionalidade. Quando discutimos sobre as relações entre Educação do Campo, Direitos Humanos e Currículo na perspec- tiva das demandas populares compreendemos o quanto os movimen- tos sociais têm um papel fundante na garantia do direito a educação.

Nessa visão, a educação “é compreendida como um direito em si mesmo e um meio indispensável para o acesso a outros direitos” (BRASIL, 2006, p. 18). Para tanto, cabe destacar que neste artigo nos referimos a escola- rização apesar de reconhecermos outros espaços como formativos. Um dos grandes desafios é o de que esses envolvidos se reconheçam nesse processo histórico, possibilitando a compreensão de si e do seu entorno.

De acordo com Arroyo (2011, p. 25), “Uma das tarefas do movi- mento docente e do movimento cívico-democrático foi tentar trazer de

volta a educação: Educação direito de todo cidadão. Escolas, redes e co- letivos docentes retomando a função da docência e dos currículos como territórios da garantia do direito à educação”. Importante ressaltar que passamos por um longo período de escravidão e curtos períodos demo- cráticos que dificultaram essas conquistas. No entanto, é válido ressaltar os contornos feitos para que os Direitos Humanos fossem arrolados pela dignidade, igualdade, liberdade e justiça dos movimentos sociais, pro- cesso esse marcado por muitas lutas e resistências. Segundo o PNEDH (2011, p. 3):

Os Direitos Humanos são frutos da luta pelo reconhecimento, realização e universalização da dignidade humana. Histórica e socialmente construídos, dizem respeito a um processo em constante elaboração, ampliando o reconhecimento de direi- tos face às transformações ocorridas nos diferentes contextos sociais, históricos e políticos.

Discutir as propostas curriculares no contexto atual de luta por efetivação dos Direitos Humanos torna-se um processo contra hege- mônico não somente de enfrentamento ao conservadorismo, mas as

inércias do pensamento crítico e da política de esquerda eurocêntricos

(SANTOS, 2013, p.124) visto que, existem novas formas de autoritaris- mo que coabitam com regimes democráticos. Por mais que tenhamos um discurso democrático, sempre estamos nos deparando com atitudes que violam os Direitos Humanos.

Pensando nas escolas do campo que atendem as classes populares, concordo com (FREIRE, 2014, p. 95): “Se a minha opção é democrática, progressista, não posso ter uma prática reacionária, autoritária, elitista”.

Não existe neutralidade no espaço pedagógico progressista. O autor nos adverte que a ideologia dominante “insinua a neutralidade da educação [...] propondo um espaço em que se treinam os alunos para práticas apo- líticas, como se a maneira humana de estar no mundo fosse ou pudesse ser uma maneira neutra”. Consideramos que a escola pode ser o espaço político da diversidade e de conflitos de ideias. Território que motiva e

sustenta suas lutas, pois “se a educação não pode tudo, alguma coisa fun- damental a educação pode” (FREIRE, 2014, p. 110). Sabemos que a edu- cação não é a solução para que todas as transformações sociais ocorram, mas pode se tornar resistência à reprodução da ideologia dominante, demonstrando através de práticas emancipadora e lutas que é possível mudar.

Devemos considerar a Resolução nº 01, do Ministério da Educa- ção – Conselho Nacional de Educação (CNE) de 2012, que estabeleceu as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos, a serem observadas pelos sistemas de ensino e por suas instituições. O seu Art.3º aborda os princípios que fundamentam a Educação em Direitos Huma- nos (EDH) com a finalidade de promover a educação para a mudança e a transformação social, a saber: I – Dignidade Humana; II – Igual- dade de Direitos; III – Reconhecimento e Valorização das diferenças e diversidades; IV – Laicidade do Estado; V – Democracia na educação;

VI – Transversalidade, vivência e globalidade e VII – Sustentabilidade socioambiental.

O processo histórico da educação brasileira privilegiou, por sé- culos, algumas classes em detrimento de outras, ocasionando inúmeras desigualdades. Segundo (CAPUCHO, 2012, p. 26): “os direitos sociais, dentre eles o direito a educação, exige a redistribuição de bens, serviços e renda”. Compreendemos que existe uma difícil conciliação entre o pro- clamado e o efetivado, no sentido de garantir a educação para todos. O viés neoliberal, segundo Gentili (2013, p. 229):

[...] ataca a escola pública a partir de uma série de estratégias privatizantes, mediante a aplicação de uma política de descen- tralização autoritária e, ao mesmo tempo, mediante uma polí- tica de reforma cultural que pretende apagar do horizonte ide- ológico de nossas sociedades a possibilidade mesma de uma educação democrática, pública e de qualidade para as maio- rias. Uma política de reforma cultural que, em suma, pretende negar e dissolver a existência mesma do direito à educação.

Diante dessa afirmativa, as políticas neoliberais no cenário con- temporâneo, tem acentuado as desigualdades e, principalmente, a viola- ção dos Direitos Humanos. Entretanto, tais violações não recaem igual- mente sobre os diversos grupos sociais e culturais, mas sobre aqueles que ocupam um lugar social de desvantagens nas oportunidades de acesso à educação escolar. Candau (2007) afirma, certamente, em concordância com os escritos de Hanna Arendt (1997), que os sujeitos, individuais e coletivos, resistem à possibilidade de se adequarem a uma sociedade cada vez mais competitiva. A escola, nessa conjuntura, no mesmo tem- po em que forma para atender o mercado, descarta os sujeitos e lhes nega o “direito a ter direitos” (CANDAU, 2007, p. 127).

Se nos reportarmos aos dados e indicadores apresentados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), sobre o panorama da educação no campo eles apontam:

[...] um quadro já conhecido de debilidades e carências na infra- -estrutura escolar e nas condições de oferta educacional no campo.

Todas as comparações colocam a população da área rural em fran- ca desvantagem em relação à população da área urbana quanto ao acesso à educação e à qualidade do ensino. Embora o País tenha alcançado nos últimos anos importantes avanços na ampliação da cobertura escolar, notadamente na faixa etária de 7 a 14 anos, per- sistem acentuados déficits de eficiência e qualidade, conforme de- monstram os indicadores de fluxo escolar (promoção, repetência e evasão) e os resultados do Saeb (BRASIL, 2007, p.41).

Diante disso, não podemos deixar de nos reportarmos aos dizeres de Freire (2014), quando torna evidente a necessidade da superação da visão ingênua de culpabilização dos sujeitos, que as políticas públicas não lhes alcançaram e o processo histórico excludente e “truncado” da escolarização brasileira. Segundo Freire (2014, p. 80):

É importante ter sempre claro que faz parte do poder ideoló- gico dos dominantes a inculcação dos dominados da respon-

sabilidade por sua situação. Daí a culpa que sentem elas, em determinado momento de suas relações com o seu contexto e com as classes dominantes, por se acharem nesta ou naquela situação desvantajosa.

Através da educação libertadora é possível apontar caminhos de promoção da humanização, no sentido de que as pessoas se percebam como sujeitos de direitos. Ao pensarmos nas políticas públicas de edu- cação do campo e suas lutas pela garantia e efetivação de uma educação específica, devemos considerar os aspectos culturais e os saberes his- tóricos dos sujeitos, individuais e coletivos, do campo, como possibili- dades de valorização da heterogeneidade. (BICALHO & SILVA, 2016).

Nesse sentido, segundo (FERNANDES, MOLINA, 2004, p. 34), campo não “significa o perfil do solo em que o agricultor trabalha, mas o proje- to histórico de sociedade e educação que vem sendo forjado nos e pelos movimentos campesinos”. A educação do campo não tem a pretensão de formar sujeitos apenas para atender as demandas do mercado de tra- balho, mas de se estabelecer como tática para transformação do campo brasileiro. O campo é compreendido para além do espaço de produção agrícola. Ele é o território da diversidade, das relações com a natureza, sociais e culturais (BICALHO, 2017).

Entre os marcos legais que garantem o direito e o respeito às singu- laridades culturais e regionais presentes na educação básica, podemos citar a Constituição Federal de 1988, nos Artigos 208 e 209. Importante ainda mencionar a LDB n. 9394/96. Ela pode contribuir para superação dos siste- mas de ensino, predominantemente, conservadores em relação à educação rural. Com essa legislação é possível considerar as especificidades da vida rural, a organização das escolas do campo, seus conteúdos curriculares, me- todologias e calendário escolar, conforme disposto a seguir:

Art. 28. Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada re- gião, especialmente:

I - Conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às re- ais necessidades e interesses dos alunos da zona rural;

II - Organização escolar própria, incluindo adequação do ca- lendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições cli- máticas;

III - Adequação à natureza do trabalho na zona rural.

O artigo acima é sensível às especificidades do meio rural, com maior autonomia pedagógica para reorganização curricular e meto- dológica das escolas do campo. Nesse contexto, os movimentos sociais defendem a alteração da nomenclatura educação rural para educação do campo. Caldart (2010, p. 20) define educação do campo da seguinte maneira: “[...] educação para formação humana, omnilateral e de pers- pectiva emancipatória, vinculada a projetos históricos, luta e construção de longo prazo [...]”. A educação do campo é compreendida: “[...] desde a particularidade dos sujeitos que vivem do trabalho do campo, sua reali- dade e suas relações sociais”.

A aprovação da Resolução do Conselho Nacional de Educação / Câmara de Educação Básica – CNE/CEB n.1, em 03/04/2002, denomi- nada de Diretrizes Operacionais da Educação Básica do Campo, rea- firma e legitima essa necessidade, como citado no parágrafo único do artigo 2º:

Parágrafo único. A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, an- corando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudan- tes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciên- cia e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos so- ciais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no país.

Por outro lado, compreendemos que a organização curricular nas escolas do campo, ao longo da história da educação brasileira, tem re- produzido situações autocráticas, culminando com conservadorismos

e exclusões. Segundo Macedo (2013, p. 429), “a distribuição do saber curricular é uma das maquinarias pedagógicas das mais perversas com aqueles que não se situam nos segmentos hegemônicos da sociedade”. No contexto da educação do campo, em muitos casos, os estudantes não se reconhecem nas práticas curriculares urbanocêntricas que são submeti- dos, incidindo negativamente na permanência e qualidade do processo de ensino e aprendizagem. A luta é por garantir aos povos uma educa- ção do/no campo, como nos escritos de Caldart (2011, p. 149-150):

[...] políticas públicas que garantam o seu direito à educação e a uma educação que seja no e do campo. No: o povo tem direito a ser educado no lugar onde vive. Do: o povo tem di- reito a uma educação pensada desde o seu lugar e com a sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais.

Segundo Freire (2014) ensinar não é transferir conhecimento. To- dos os sujeitos, individuais e coletivos, envolvidos no contexto escolar, devem ter cautela para não se deixarem levar pela contradição entre o discurso e a prática. Freire (2014, p. 48) nos adverte: “Me torno tão fal- so quanto quem pretende estimular o clima democrático na escola por meios e caminhos autoritários”. Os sujeitos envolvidos nesse processo educativo devem, na produção do conhecimento emancipador, ser um testemunho vivo dos preceitos democráticos, enaltecendo a estreita re- lação entre teoria e prática, valorização das histórias de vida, identida- des e memórias. Esses são alguns dos aspectos essenciais para efetivação do direito fundamental à educação básica. Segundo (GENTILI, 2013, p.

234):

Devemos projetar e tratar de pôr em prática propostas políti- cas coerentes que defendam e ampliem o direito a uma educa- ção pública de qualidade. Mas também devemos criar novas condições culturais sobre as quais tais propostas adquiram materialidade e sentido para os excluídos que, em nossas so-

ciedades, são quase todos. Ambos os elementos são fatores in- dissolúveis em nossa luta pela reconstrução de uma sociedade fundada nos direitos democráticos, na igualdade e na justiça.

Nessa perspectiva, o currículo não deve ser compreendido como constituído apenas de conteúdos programáticos impostos, mas de todo o conhecimento carregado de significado, de cultura e valores que transcendem as paredes da sala de aula. Por esses motivos, faz-se ne- cessária uma proposta educacional que colabore na emancipação dos sujeitos. As políticas públicas de educação do campo, no seu processo de renovação e dinamização social e cultural, colaboram na construção de projetos políticos e pedagógicos de valorização da identidade coletiva nas escolas, universidades, movimentos sociais, sindicatos, secretarias municipais e estaduais de educação, igrejas e tantos outros atores histó- ricos (BICALHO & SILVA, 2016).

UMA ESCOLA PARA JUNTAR FORÇAS E SEGURAR AS MÃOS:

AS CLASSES MULTISSERIADAS E A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO.

No Brasil, de acordo com o IBGE (2010), apesar do predomínio da população urbana, o campo possui uma parcela considerável de pes- soas. Cerca de 30 milhões vivem e trabalham nestes territórios. Esses números representam 15,6% da população brasileira. Na região nordes- te, a Bahia possui a maior população rural, com cerca de 4 milhões de pessoas, 27,9% do total.

Segundo (SOUZA; SOUZA, 2016, p. 74), ainda existem concep- ções ideológicas de modernidade. A cidade é “lócus do progresso, da cul- tura e da civilização, enquanto o espaço rural é tido como atrasado, tra- dicional e incivilizado. São as imagens construídas e disseminadas para ratificar o projeto econômico, político e social vigente”. É nítida a desvalo- rização dos saberes e modos de vida dos sujeitos camponeses e seu reco- nhecimento identitário oriundo de suas experiências e singularidades.

A estratégia utilizada é de homogeneização das relações, em todos os

sentidos: 1) Currículos urbanocêntricos. 2) Ausência de formação espe- cífica para docentes e discentes das escolas do campo. 3) Precarização do trabalho. 4) Infraestrutura e espaço físico inadequados.

Entendemos que a contextualização dos dados do IBGE (2010) pode ser favorável para compreensão das demandas educacionais apre- sentadas pelas classes multisseriadas. Compreender as classes multis- seriadas no Brasil, significa denunciar a ausência de políticas públicas educacionais viáveis e efetivas para as escolas do campo. O fenômeno da multisseriação no Brasil exige ainda de educadores/as, universidades e movimentos sociais, muitas pesquisas.

As escolas multisseriadas estão localizadas, predominantemente, no meio rural. Elas atendem estudantes do 1° ao 5° ano do ensino fun- damental e, às vezes, da educação infantil, numa mesma turma, sob a responsabilidade de um único professor. Esse é apenas um dos desafios enfrentados por educadores e educandos que participam desse espaço formativo, com suas especificidades, em meio à diversidade. Neste cená- rio, a maioria dos docentes e discentes vivenciam situações de extrema precariedade nas condições de trabalho. Por outro lado, produzem inú- meras formas de resistência e superação dessas condições, em diálogo com a sociedade civil organizada. Segundo (MOURA; SANTOS, 2012, p. 268) “Geralmente são destinados para lecionar nessas turmas, profes- sores considerados “inaptos” para atuar nas escolas da zona urbana ou muitas vezes por “vingança” e/ou perseguição “política”. Acrescenta ainda que, em sua maioria: “não tem uma formação política e pedagógica para lidar com a realidade do multisseriamento”.

Neste tópico realizaremos um breve diálogo entre a organização curricular das classes multisseriadas, a educação problematizadora e suas possíveis contribuições para o processo de efetivação do direito à educação básica. Apesar de Freire não ter elaborado uma teoria especí- fica de currículo, como afirma os escritos de (SILVA, 2014, p. 57), com- preendemos que ele desenvolveu teorias que contribuíram para inúme- ras reflexões acerca da prática curricular.

A educação do campo pode ter um papel primordial no processo de libertação dos sujeitos e problematização da realidade. Freire (2016)

em seus escritos considera que a realidade do sujeito, leva-o a reflexões que superem as situações de violação dos direitos. No entanto, o que pretendem os opressores “é transformar a mentalidade dos oprimidos e não a situação que os oprime, para adaptando-se a esta situação, melhor os dominem” (FREIRE, 2016, p. 84). O ato de construir a educação para a libertação deve ser consciente de suas essências político-filosóficas.

Segundo (FREIRE, 2016, p. 74): “A ação libertadora, pelo contrário, re- conhecendo esta dependência dos oprimidos como ponto vulnerável, deve tentar, através da reflexão e da ação, transformá-la em independência [...]”.

A educação problematizadora, pelo seu caráter político, possibi- lita o compromisso com a prática dos direitos humanos. Freire (2016) afirma que a problematização tem um caráter reflexivo. É um ato de exposição da realidade, de procura da conscientização que resulta na sua inserção crítica na realidade. Diante dessa reflexão, questionamos:

como podem ser pensadas as propostas curriculares que temos nas clas- ses multisseriadas? Elas são capazes de se impor às injustiças sociais que se reproduzem na sociedade e tanto massacram os espaços educativos e todos os que dele fazem parte?

De acordo com Moreira e Candau (2003, p. 68), existem diversas concepções de currículo, com variados posicionamentos, compromis- sos e enfoques teóricos. As discussões sobre currículo incorporam, com maior ou menor destaque, debates sobre os conhecimentos escolares, os procedimentos pedagógicos, as relações sociais, os valores e as identida- des dos educandos. Nessa perspectiva, num primeiro instante, apresen- tamos a proposta de atuação das correntes teóricas que influenciaram e influenciam a constituição do campo curricular, quais sejam: as tecni- cistas, as teorias críticas e pós-críticas do currículo.

Na corrente tecnicista ou tradicional, o currículo assume um ca- ráter organizativo e de desenvolvimento técnico. Ele é pautado em ques- tões e experiências que deverão estar ao alcance dos objetivos educacio- nais. Segundo (MOREIRA; SILVA, 2013, p. 7): “As teorias tradicionais preocupam-se, dominantemente, com a organização do processo curricu- lar, apresentando-se como neutras, científicas, desinteressadas”.

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