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Economia, cultura e modos de vida

No documento Universidade do Estado do Rio de Janeiro (páginas 89-101)

3.2 Caracterização do Quilombo do Campinho da

3.2.2 Economia, cultura e modos de vida

Até a década de 1970 a economia local era baseada no plantio da mandioca para produção da farinha, que era vendida e o lucro destinado para adquirir os itens que os moradores do quilombo não produziam em suas lavouras, característica da economia camponesa. As residências eram abastecidas a partir do trabalho familiar através da ampla variedade de culturas: feijão, cana, arroz, milho, hortaliças, entre outros. A carne consumida no local era proveniente da caça ou da criação de animais como galinhas e porcos. Os moradores também trocavam produtos entre si e com as propriedades vizinhas. (FEITOSA, 2016).

A partir da década de 1970 muitas mudanças em torno da organização social e do trabalho ocorrem no território. As Unidades de Conservação, sobrepostas às

terras do quilombo, gerou processos de criminalização de roçados em áreas antes cultivadas. Essa criminalização das roças, manejo agroextrativista e caça consiste em primeiro lugar em uma ilegalidade no que diz respeito ao território titulado, que deveria resguardar o direito à autonomia dos quilombolas de realizarem práticas que remetem ao seu modo de vida tradicional (OTSS, 2020).

Assim, o trabalho na roça tornou-se secundário na comunidade e num primeiro momento, com o desenvolvimento do turismo na região, tornou-se comum aos moradores do quilombo obter um trabalho em Paraty, como comerciários, caseiros ou domésticos. Para reverter este quadro, existe um esforço por parte da Associação de Moradores em reafirmar a cultura quilombola. (KANIKADAN, 2014)

Hoje observa-se uma mudança de atitude com a voz do movimento quilombola, ao valorizar o trabalho dentro da comunidade propiciando condições para que este seja auto-sustentável, de modo que mulheres e homens não precisem mais se submeter a serem empregados fora do Campinho (LIMA, 2008, p. 65).

Assim, se no período de criminalização ambiental as práticas agrícolas perderam espaço no território, a partir dos anos 1990, houve um movimento de resgate da agricultura na região, com técnicas de agroecologia, agroflorestas e manejo da palmeira juçara, que tem mudado o perfil do trabalho no quilombo.

Hoje, o Quilombo do Campinho vem sendo um precursor no território na construção de sistemas produtivos que estabelecem o diálogo entre o conhecimento tradicional e o conhecimento científico presente nos fortes movimentos de agroecologia. A AMOQC em parceria com o FCT e o OTSS iniciaram a construção de um plano agroecológico dentro do Quilombo, que nos dão a dimensão da importância das roças na produção e reprodução da vida neste território (OTSS 2020).

O plantio das palmeiras pupunha e açaí, o repovoamento da juçara, e incentivos à atividade agroflorestal se integram às roças e constituem um sistema agroecológico, no qual a construção coletiva dos saberes, referenciada pelo saber tradicional, promove preservação da identidade cultural e de resistência da comunidade (OTSS, 2020).

Marques e Kanikadan (2015) ressaltam a importância do Projeto Juçara para o desenvolvimento de autonomia e formação política da juventude do quilombo do Campinho. O projeto visava organizar uma cadeia produtiva da polpa dos frutos e

das sementes como meio de favorecer a conservação da palmeira juçara. Contou com a colaboração do MMA, instituto IPEMA, agrônomos da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, AMOQC e Rede Juçara, estimulando o protagonismo de jovens no processo de desenvolvimento a partir da promoção do intercâmbio cultural permanente entre outras comunidades quilombolas.

Os autores afirmam que o Projeto favoreceu articulações e sinergias entre diferentes comunidades quilombolas e a consolidação de uma cadeia produtiva dos frutos da palmeira juçara. Segundo eles, o projeto atribuiu uma inovação aos agricultores quilombolas, baseado em princípios agroecológicos e conservacionistas.

Promoveu a reorganização econômica e a ressignificação de papéis sociais dentro do quilombo. Sobretudo para a juventude do Campinho, o projeto foi uma oportunidade de formação em trabalho e renda, educação e saúde e territorialidade (MARQUES & KANIKADAN, 2015)

QUADRO 3: Produtos cultivados no Quilombo do Campinho

Fonte: OTSS, 2020

Segundo os resultados do Plano Agroecológico do Quilombo do Campinho, realizado pelo OTSS, AMOQC e FCT, os agricultores e agricultoras vêm buscando garantir dentro do território a reprodução de sementes crioulas de milho, aipim, mandioca por meio de trocas internas ou inter-comunidades. Por meio da convivência e de mutirões troca-se conhecimento, material genético e alimentos entre as famílias.

Outra importante iniciativa de geração de trabalho e renda é o Turismo de Base Comunitária (TBC), uma tecnologia social que amplia as potencialidades de renda e autonomia dessa comunidade. O quilombo do Campinho conta, hoje, com um estruturado aparato de TBC com restaurante comunitário; uma pousada de construção simples; um camping que também disponibiliza quartos para locação uma casa de confecção e venda de artesanatos; a sede da Associação de Moradores do Quilombo do Campinho (AMOQC), onde também funciona o Ponto de Cultura Manoel Martins (CARVALHO, CIQUEIRA, 2019)

Segundo Sansolo e Bursztyn (2009), o TBC possui componentes sustentadores tais como a conservação ambiental, a valorização da identidade cultural e a geração de benefícios diretos para as comunidades e representa uma oportunidade para o turismo no país, pois as comunidades através de suas especificidades podem apresentar ao mundo sua diversidade conhecida por poucos, ajudando a aliar conservação ambiental e valorização cultural.

Para os moradores do Campinho, o TBC é um processo que traz as pessoas de volta para a comunidade, como forma de manutenção de seu território e de sua cultura. É um modelo de organização que confere autonomia aos processos educativos, culturais e economicamente solidários, tendo como base a permanência no território (PINHEIRO, 2015, p. 66).

O Turismo de Base Comunitária do quilombo do Campinho recebe escolas ou grupos de visitantes que agendam com a comunidade uma estadia de um ou vários dias a fim de conhecer a cultura quilombola, acompanhando a confecção de uma peça de artesanato ou manifestações como o jongo e almoçando e/ou jantando no restaurante da associação. (KANIKADAN, 2014)

O TBC do Campinho é organizado pela Associação de Moradores do Quilombo (AMOQC), que organiza e integra as atrações na valorização étnico- cultural e ações sustentáveis e solidárias que valorizam as práticas tradicionais e geram trabalho e renda, tornando-se alternativa para a comunidade frente as propostas de trabalho precarizado provindo do turismo convencional (OTSS, 2020).

O Roteiro Etno Ecológico articula direta e indiretamente os quilombolas em torno da produção solidária. A renda gerada é distribuída para o crescente número de pessoas envolvidas. O roteiro envolve visitas ao Viveiro de Mudas, a Casa de Farinha, os Núcleos Familiares, a Casa de Artesanato, os Sistemas Agroflorestais, a contação de história com os Griôs17 e a Roda de Jongo (OTSS, 2020)

Figura 4: Casa de Artesanato do Quilombo do Campinho

Fonte: OTSS, 2020

17 Os mais velhos contadores de histórias da comunidade

A produção artesanal é confeccionada com matéria-prima encontrada em abundância no local. Sementes, bambus, madeiras, fibras de bananeira, cipós, taboas e palmeiras logo se transformaram em rico artesanato, que representa atualmente uma importante fonte de renda na comunidade. O artesanato é comercializado na comunidade, em loja criada pela Associação de Moradores. Um percentual do que é vendido retorna à loja para custear suas despesas administrativas (KANIKADAN, 2014; OTSS 2020).

Quadro 4: materiais utilizados no artesanato no Quilombo do Campinho ARTESANATO

Comunidade Matéria prima O que é feito

Quilombo do Campinho

Crochê

Tricô

Taboa Cesta

Cipó Imbé

Luminárias Cipó de caboclo

Taquara de Lixa Taquaruçu

Açaí Peneira

Fonte: OTSS, 2020

O restaurante é uma iniciativa do projeto turístico da comunidade. Sua construção foi financiada com recursos da Petrobrás18. Homens da comunidade trabalharam na construção do restaurante, vetor de um ciclo econômico que envolve a educação, a cultura, a saúde, a alimentação. O objetivo é que a própria comunidade possa fornecer os alimentos para abastecer o restaurante, através das agroflorestas. O projeto inicial do restaurante previa o envolvimento de todos os núcleos, que participariam com a criação de viveiro, galinheiro, criação de porcos, horta e piscicultura. (LIMA, 2008, p. 73)

Recebem diariamente turistas interessados por alimentos típicos produzidos no próprio território. Os jovens integrantes da AMOCQ trabalham no restaurante em escalas, com 5 (cinco) funcionários na baixa temporada e 14 (quatorze) na alta, o

18 Financiamento do Governo Federal, ligado ao Fome Zero, iniciativa da SEPPIR, que captou recursos da Petrobrás para 10 quilombos do Brasil, um deles, o Campinho da independência.

que permite atender os turistas em qualquer dia ou época do ano. O salão é aberto e a cozinha fica dividida do salão por uma espécie de balcão. A decoração é rústica, com muitas referências à cultura negra e ao candomblé. Toalhas de mesa e bandeirinhas de chita complementam o colorido da decoração. Conta com um cardápio variado, com pratos bem elaborados daquilo que pode ser considerado a gastronomia do quilombo. (KANIKADAN, 2014).

Como ressalta Lima (2008), no Campinho a mulher é elemento central da continuidade grupal e lidera muitas das ações de TBC e agroecologia. As mulheres são as mediadoras fundamentais das relações familiares e entre grupos domésticos, assumindo cada vez mais protagonismo nos processos de gestão da comunidade.

Figura 5: Restaurante do quilombo do Campinho

Fonte: OTSS, 2020

O Restaurante do Quilombo foi inaugurado em 2007 e premiado no mesmo ano pelo Guia Comer e Beber. Hoje é um dos principais espaços de referência na organização comunitária, pois gera trabalho e distribui renda, fomenta a produção agroecológica na região, mantém relação solidaria de comercio com pescadores das comunidades caiçaras do entorno e coloca na mesa do cliente uma culinária típica, produzida de forma sustentável (OTSS, 2020).

Quadro 5: culinária tradicional do Quilombo do Campinho da Independência

No tocante à saúde dos moradores do quilombo, existem iniciativas voltadas à produção de alimentos saudáveis e uso de ervas medicinais. As práticas de cura e cuidado estiveram presente desde a construção desse território junto às suas matriarcas, que se preocuparam em passar o conhecimento para seus filhos e filhas, netos e netas. Infelizmente muito desse conhecimento se perdeu. Segundo relatos dos moradores, as antigas parteiras e benzedeiras do quilombo faleceram sem deixar seu conhecimento para as gerações seguintes: “Dona Madalena foi nossa última parteira e nossa última rezadeira também, agora não temos mais ninguém que faça esses serviços de fé” (OTSS, 2020)

CULINÁRIA TRADICIONAL

Comunidade Comida/Prato Insumos

Quilombo do Campinho

Peixe a moda Peixe grelhado com palmito na manteiga e farofa de camarão com banana da terra Azul Marinho Peixe cozido na banana verde

Mata Atlântica

(Caipirinha de Juçara)

Batida alcoólica de cachaça da terra com juçara, limão cravo e banana

Pavê de banana da terra

Creme de maisena com banana da terra frita no açúcar e canela.

Galinha Caipira com Macarrão

Beju doce com coco

Beju Salgado Cocada

Doce de abóbora com coco

Doce de mamão Farinha de mandioca Bolo de mandioca Milho Cozido Batata doce cozida Mandioca Cozida Bolo de Banana Suco de Juçara

A cartografia social realizada pelo OTSS (2020) levantou informações das principais ervas medicinais existente no território do Campinho:

Quadro 6: Ervas medicinais em uso no Quilombo do Campinho da Independência

ERVAS MEDICINAIS

Comunidade Ervas Para que é bom

Quilombo do Campinho

Canela de velho Artrose

Jambo Diabete

Jamelão Diabete

Pata de vaca Diabete

Moranguinho Carqueja

Sabugueiro * Irritação da pele

* Seca sarampo Mil folhas

Infecção de Garganta Tansagem

Cipó Caboclo Gervão Roxo

Guaco Xarope, piolho e coceira Cana do Brejo Diurético

Infecção Urinária Copaíba (folhas) Cicatrizante

Circulação Café (folhas) Dor de Cabeça

Urucum Corante

Colesterol Folha de Laranja com

Folha de Pitanga (Vitamina C)

Resfriado

Taioba Antibiótico, contem ferro

Suco de goiaba Piriri

Babosa

Algodão/Amora e Aroeira

(folha) Infecção no Útero Óleo de Girassol Queimadura grave

Capim Colônia Limpar a casa Folha da Novalgina Dor de Cabeça

ERVAS MEDICINAIS

Comunidade Ervas Para que é bom

Cabeludinha

Cólica Capim Limão

Camomila

Suco de Limão Queimação no estomago Fonte: OTSS, 2020

Os territórios quilombolas, por sua característica peculiar de posse comunitária da terra buscam incentivar a economia solidária e as trocas de produtos entre família e entre comunidades. A agricultura tem sido resgatada no quilombo e tem assumido novos significados com a emergência da pandemia do Covid-19 no início de 2020.

Em tempos de pandemia a solidariedade e a ação coordenada foram fundamentais para que os moradores do Quilombo do Campinho se mantivessem saudáveis e com suas famílias supridas em suas mesas.

Tudo que antes girava em torno do turismo praticamente cessou com a pandemia e novos arranjos tiveram que ser construídos. Desta forma, observou-se um fortalecimento do processo de mobilização entre comunidades, que com o estímulo da agroecologia e processos de produção, trocas e doações de alimentos fortaleceram os laços entre as comunidades.

Figura 6: Troca entre de alimentos entre o Quilombo do Campinho e a Comunidade Caiçara de Trindade

Nos arranjos econômicos das comunidades tradicionais, a solidariedade já é um princípio. Os quinhões de peixe, a divisão de partes de caça entre os membros

da família, os mutirões agrícolas, tudo isso são formas de solidariedade pré- existentes. Não por acaso, as respostas mais efetivas à pandemia vêm exatamente dos territórios onde estas racionalidades de resistência e desenvolvimento de novos modos de produção, consumo e relação social habitam (OTSS, 2020).

Ações baseadas em trocas como base da circulação de produtos e serviços, mutirões como forma de implantar estruturas produtivas e de suporte social, e redes de cuidado como estratégia de apoio individual, familiar e coletivo se tornaram estratégias fundamentais para as comunidades da Bocaina e, o Quilombo do Campinho teve um protagonismo importante na reconfiguração desses arranjos

“arcaicos” que voltam à centralidade no território (OTSS, 2020).

No documento Universidade do Estado do Rio de Janeiro (páginas 89-101)

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