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Estudos científicos afirmam que toda vida humana é provida de memória, o que muda é a forma como ela é utilizada, comunicada. Somente o homem teria consciência dessa faculdade – o que o torna seu depositário –, e dela se utilizaria consciente e continuamente.

Essas percepções remetem ao ato de recordar, de trazer para o presente impressões do que foi vivido e sentido em um determinado tempo passado.

Os indivíduos, “seres mnemônicos por excelência” (MEIHY; SEAWRIGHT, 2020, p.

14), possuem a capacidade de, além de guardar suas memórias, poder evocá-las posteriormente.

Mesmo que o resultado não seja exatamente fiel ao evento primeiro, obtém uma representação satisfatória do que aconteceu. De acordo com Le Goff (2013, p. 485),

o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores.

A memória individual é aquela que somente o indivíduo pode acessar. “Por muito que se deva à memória coletiva, é o indivíduo que recorda. Ele é o memorizador e das camadas do passado a que tem acesso pode reter objetos que são, para ele, e só para ele, significativos dentro de um tesouro comum” (BOSI, 2004, p. 411), o que não implica que ela não seja influenciada pelo social. De acordo com Catroga, (2015, p. 11),

na experiência vivida, a memória individual é formada pela coexistência, tensional e nem sempre pacífica, de várias memórias (pessoais, familiares, grupais, regionais, nacionais etc.) em permanente construção, devido à incessante mudança do presente em passado e às alterações ocorridas no campo das representações do pretérito.

A memória coletiva, por sua vez, é uma forma de arquivo coletivo, muitas vezes denominado como repositório abstrato, onde ficam guardadas as memórias de um grupo, de uma comunidade, de uma sociedade. Maurice Halbwachs (2003, p. 106), um dos expoentes nos estudos referentes à memória coletiva, descreve que “toda memória coletiva tem como suporte um grupo limitado no tempo e no espaço”.

Quando Halbwachs relaciona tempo e espaço com a memória, é porque, a seu ver,

“memória coletiva é o grupo visto de dentro e durante um período que não ultrapassa a duração média da vida humana” (HALBWACHS, 2003, p. 109), o que pressupõe que o processo de transmissão da memória se daria, para não se perder, devido ao contato habitual entre as diversas gerações.

Os estudos sobre memória coletiva de Halbwachs, de forte cunho sociológico, reconhecem que as memórias individuais são um ponto de vista sobre a memória coletiva, mas enfatizam que sua importância é oriunda da junção das lembranças do grupo, dos quadros sociais da memória.

De acordo com Weber e Pereira (2010, apud Rousso, 2005, p. 94), a memória é caracterizada como “uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional”.

Predicados como mutável, conflituosa e seletiva são propriedades da memória. Desse modo, ao adentrar a seara da memorização, ligada ao ato de recordar, a memória vincula-se, igualmente, ao exercício de esquecer, de silenciar. De acordo com Candau (2012, p. 72), pois,

na relação que mantém com o passado, a memória humana é sempre conflitiva, dividida entre um lado sombrio e outro ensolarado: é feita de adesões e rejeições, consentimentos e negações, aberturas e fechamentos, aceitações e renúncias, luz e sombra ou, dito mais simplesmente, de lembranças e esquecimentos.

O ato de esquecer pode ser voluntário ou não, na mesma medida em que pode, também, ser condicionado a eventos traumáticos sofridos. De acordo com Le Goff (2013, p. 422), no entanto, podem influenciar a forma como a memória é mantida, pois “os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes mecanismos de manipulação da memória coletiva”.

No presente estudo, o silenciamento se faz presente na tentativa de uma parte do grupo familiar atuar para que a trajetória de Paco seja esquecida. Não há, porém, intenção de entrar no mérito de tal, por haver o conhecimento de que alguns membros do grupo familiar – como

os filhos – realmente foram traumatizados física e psicologicamente com a repercussão das escolhas e ações de Paco por parte da sociedade local da época.

Na reportagem de 05 de junho de 1988, o jornalista Carlos Wagner também relata sobre o fato da família não se pronunciar sobre o antepassado: “atualmente, da parte dos descendentes de Paco, há uma espécie de trato a respeito da história dele: querem esquecer. Victório Sanchez, um dos seus filhos, falou que não interessa remexer no passado” (ZERO HORA, 05 jun. 1988, Caderno D, p. 1).

De acordo com Candau (2012, p. 72), “existe, de fato, um passado ‘onde há boas razões para não se mover’, e cada pessoa dispõe de múltiplos recursos memoriais quando tenta criar

‘um passado útil’, utilidade sempre apreciada em função da situação presente”.

Da mesma forma que há os que não incentivam a divulgação da trajetória de Paco, há os que entendem que ela não deva cair no esquecimento. Com vistas a compreender esse interesse, que perpassa a comunidade local, tamanha projeção da trajetória de Paco, foram organizadas algumas questões e solicitou-se – via e-mail –, o parecer a respeito de seis autores que escreveram sobre Paco, obtendo retorno de quatro deles: os escritores Geraldo Farina e Roberto Rossi Young, a socióloga Márcia Londero e o historiador Nelson C. Sottili. A íntegra dessas comunicações faz parte dos anexos I, II, III e IV deste trabalho.

Há divergências entre os pareceres, todavia, todas elas citam a memória sobre o pesquisado. O Sr. Geraldo Farina, nascido na região, registrou: “Pesquisei e escrevi sobre Paco pois o mesmo era mito. ... a permanência da memória viva do Paco deve-se, acredito, por ter sido um personagem característico daqueles anos ... a família carrega muita mágoa ...”, e finda observando que “a personagem Paco merece aprofundados e descompromissados estudos” (02 jul. 2021).

Roberto Rossi Yung, autor de vários títulos que envolvem personagens da história gaúcha, também nascido na região, justifica seu interesse devido à sua “sina em tentar resgatar a memória de vultos, que com o passar do tempo foram caindo no esquecimento”; em sua opinião, “o interesse pela vida e morte do biografado permanece”. Ainda acerca da perpetuação da história de Paco Sanches, o autor comenta que “houve lançamento [do livro] com autógrafos na Feira do Livro de Porto Alegre e Feira do Livro de Gramado” (26 jun. 2021).

O historiador Nelson C. Sottili também viveu na região, e isso, segundo o autor, o

“possibilitou [a] ter contato com algumas narrativas presentes no imaginário social sobre o personagem”. Acrescenta que utilizou, em seu estudo, “os processos criminais, as notícias encontradas nos jornais e alguns depoimentos”, e sobre o não pronunciamento da família, ponderou: “talvez, essas memórias mexam com sensibilidades familiares” (08 jul. 2021).

Por fim, a doutora em Sociologia Márcia Londero, que não é nascida nem viveu na região, comenta que escreveu por indicação de seu orientador de Mestrado, mas sua motivação pessoal foi entender por que “uma figura se popularizou tanto, e persistiu durante tantos anos gerando um fascínio na população local e representando a rebeldia e valentia que o cidadão comum gostaria de ter com as autoridades brasileiras que tinham praticamente os abandonado”.

Londero entrevistou, inclusive, filhos de Paco, vivos à época de elaboração de sua dissertação, e sobre a permanência de Paco como memória, afirmou que o mesmo “representa a importância social de suas façanhas” ... “representava uma manifestação social de insatisfação e rebeldia”. Quanto à posição da família e o não consentimento para a realização de um filme em torno da história de Paco, relata que “os filhos tinham adoração pelo pai e o respeito pela memória dele era maior do que o interesse financeiro” (28 jun. 2021).

A notícia sobre o referido filme, em que um personagem conhecido como Elias Figueroa que na época era um famoso jogador de futebol do Sport Clube Internacional de Porto Alegre, faria o papel principal interpretando Paco, se espalhou rápido pela região. Um dos relatos da conta de que “agora no jornal diz que o Figueroa queria fazer um filme do Paco. Mas ele falou com o filho, o José, lá em Bento e ele disse: ‘Olha, do meu pai não se faz filme, porque do meu pai o que foi, foi. Tá terminado”’. (Júlio B., In LONDERO, Nova Roma do Sul, 1990, fita 3).

A partir do exposto, é possível perceber a importância creditada a Paco e à sua trajetória, e se não houvesse uma espécie de pacto pelo silêncio quanto à mesma, acredita-se que a manifestação familiar poderia trazer à tona novos e diversos elementos, os quais poderiam transformar julgamentos e opiniões já solidificadas na memória coletiva e no imaginário popular referente ao personagem.

Para verificar as memórias persistentes na região, assim como o que não é dito e lembrado, e como fonte histórica reconhecida e de suma importância, é que essa pesquisa faz uso da História Oral, uma vez que, das falas dos depoentes, pode-se permear a manutenção ou não de certos fatos ocorridos no tempo passado com Francisco Sanches Filho.