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Tatiana Noronha de Souza

6.3 O registro das práticas

Com relação ao registro das práticas educativas e a produção de documen- tação, encontramo-nos diante de um desafio que se coloca em todo o território na- cional: a competência de leitura e escrita dos professores e a ausência da cultura do registro como atividade teórico-prática nas instituições educacionais brasileiras.

A expansão do acesso à Educação Básica no Brasil desarticulada da preo- cupação com a qualidade na educação tem sido verificada por meio dos baixos índices de desenvolvimento dos alunos, em particular na aprendizagem da ma- temática e da língua portuguesa. As dificuldades de leitura e escrita, não supera- das na Educação Básica, vêm sendo observadas nos alunos do Ensino Superior e, posteriormente, nos profissionais que já estão no mercado de trabalho (nesse caso, o professor). É por essa razão que a formação continuada de professores não pode prescindir do trabalho de registro das práticas educativas e da pro- dução da documentação pedagógica como instrumentos formativos, os quais promovem o desenvolvimento intelectual e aperfeiçoam a escrita descritiva e reflexiva, além de permitirem o aprofundamento teórico-prático, que inclui sua autoavaliação para a ampliação da consciência crítica e a futura transformação

137 de sua prática. Essa discussão é realizada por Rios (2001), que articula a ne-

cessidade de compreender os processos para poder ensinar, tratando o registro das práticas como espaço de desenvolvimento profissional e de trabalho com a memória e a autoria.

Um dos instrumentos que queremos destacar nesta unidade é o diário de aula, pois acreditamos que seu uso se constitui em um primeiro passo para a produção da documentação pedagógica. Zabalza (2004) oferece-nos uma defi- nição ampla dos diários de aula, os quais contêm vários tipos de modalidades de registro: “são documentos em que professores e professoras anotam suas impressões sobre o que vai acontecendo em suas aulas” (ZABALZA, 2004, p.

13). Esses diários precisam de uma periodicidade, de maneira que se mante- nha um padrão de redação dos eventos. São instrumentos compostos de nar- rações feitas por professores e professoras, que descrevem situações, incluem impressões, avaliações e reflexões, além de dilemas, emoções e vivências. Eles podem ser considerados documentos pessoais ou autobiográficos e utilizados em pesquisas ou na formação continuada, orientada para o desenvolvimento profissional por permitir “revisar elementos de seu mundo pessoal que frequen- temente permanecem ocultos à própria percepção enquanto está envolvido nas ações cotidianas de trabalho” (ZABALZA, 2004, p. 17). Para o autor, essa di- mensão pessoal não é contemplada por outros instrumentos formativos, que fre- quentemente objetivam apenas formar professores em uma série de disciplinas.

O diário pode colaborar para identificar, refletir e reavaliar as próprias teorias e crenças adotadas para o trabalho, promovendo um comportamento autoanalíti- co fundamental para a realização de mudanças.

Zabalza (2004) aponta que, ao escrever, racionalizamos as vivências que passam de uma natureza emocional e afetiva para a cognitiva por meio da re- construção da experiência que permite um distanciamento da realidade para posterior análise. Por essa razão, o exercício sistemático (da escrita) deve ser rico na descrição da experiência, para permitir a melhor análise possível dos aspectos anotados. É importante que esse registro seja socializado com um coordenador pedagógico ou grupo de colegas, a fim de que se torne um meio para a avaliação e reajuste das práticas educativas. Essa prática de registro é capaz de tornar os profissionais cada vez mais conscientes dos seus atos, pois exige um exercício constante de atenção e aperfeiçoamento do processo de escrita e posterior exame. Permite, ainda, identificar componentes que ajudem a melhorar o conhecimento sobre a própria atuação, aprofunda a compreensão sobre as próprias ações e possibilita sua revisão (ZABALZA, 2004).

Dessa forma, o diário pode ser considerado um espaço narrativo dos pen- samentos dos professores e professoras, do ponto de vista de sua prática. Assim, Zabalza (2004) aponta quatro dimensões possíveis que o tornam grande recurso de potencialidade expressiva:

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a. O fato de que se trata de um recurso que requer escrever;

b. O fato de que se trata de um recurso que implica em refletir;

c. O fato de que se integre nele o expressivo e o referencial;

d. O caráter puramente histórico e longitudinal da narração (ZABALZA, 2004, p. 42).

Verifica-se, então, que a documentação a qual cumpre o desenvolvimento dessas dimensões pode fazer o professor aprender por meio da própria narra- ção da experiência, pois não só a reconstrói na dimensão da língua, mas na dimensão de sua atuação profissional, ao ultrapassar as descrições e buscar fundamentação para a narração, articulando, dessa forma, a teoria à prática de narrar e refletir.

Holly indica que existem diferentes tipos de diários, a depender da modali- dade narrativa que se emprega:

• Jornalística: de natureza fundamentalmente descritiva e seguindo as ca- racterísticas próprias do jornalismo.

• Analítica: nesse tipo de diário o professor se fixa nos aspectos espe- cíficos e/ou nas diversas dimensões que fazem parte da coisa que se deseja observar.

• Avaliativa: é uma forma de abordar os fenômenos descritos dando-lhes um valor ou julgando-os.

• Etnográfica: o conteúdo e o sentido do narrado (mesmo permanecendo nos limites das descrições) levam em consideração os contextos físico, social e cultural em que ocorrem os fatos narrados. Os eventos narrados aparecem como parte de um conjunto mais amplo de fenômenos que interagem entre si.

• Terapêutica: o conteúdo do diário e o estilo empregado servem para descarregar as tensões de quem escreve, é um processo de catarse pessoal.

• Reflexiva: quando a narração responde a um processo de thinking aloud, tratando de aclarar as próprias ideias sobre os temas tratados.

• Introspectiva: quando o conteúdo do diário se volta sobre nós mesmos (nossos pensamentos, sentimentos, vivências etc.).

• Criativa e poética: a narração responde não apenas aos critérios de refletir a realidade (como no modelo jornalístico) como também à possibilidade de imaginar ou recriar as situações que se narram (HOLLY, 1989 apud ZABALZA, 2004, p. 15).

Essa riqueza de modalidades de registro nos mostra que o diário é um ins- trumento o qual dá a base necessária para a construção de registros que, pos- teriormente, vão compor a documentação pedagógica, mas que também podem

139 servir de material pessoal para a reflexão do trabalho do professor. Essa prática

de registro exigirá o desenvolvimento intelectual do docente, de maneira a con- tribuir com seu desenvolvimento pessoal e profissional, o que necessariamente refletirá no trabalho cotidiano. Isso nos mostra que a simples prática de registro sem uma sistematização, supervisão, reflexão e debate não vai cumprir as fun- ções descritas até aqui; por isso é fundamental uma assessoria, exercida em geral pela coordenação pedagógica, que oriente, apoie e enriqueça o professor nesse processo.

Verificamos, assim, que defender a importância do registro na formação do professor significa compreendê-lo como alguém que deve se tornar um pesquisa- dor da sua prática, capaz de refletir e implementar mudanças por meio da reflexão à luz da teoria e, ainda, como “sujeito social e histórico que constrói experiências e encontra, no registro, possibilidade de produzir memória, de reconstruir uma profissionalidade marcada pela desvalorização social” (LOPES, 2009, p. 24).