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Professor

No documento Psicanálise na rua (páginas 98-101)

3.1 A Clínica propriamente dita

3.1.3 Professor

tinha um filho e era tão bom estar ali com ele...acho que estou querendo ter responsabilidade, trabalhar e cuidar da vida direitinho.” A partir desse sonho tem falado do pai que nunca conheceu, mas que sabe estar vivo. Do desejo e do medo de encontra-lo e ser rechaçado. Lembra o trauma de saber que aquele homem que o criou até os dez anos, um dia ter jogado na cara dele a verdade e ter mandado ele embora. “A verdade doutora, é que minha mãe não tinha juízo e deixou a gente largado, vivia com os caminhoneiros e a gente se criou vindo pro centro com a meninada. Eu precisava mesmo é de uma chance, só olharam para mim prá me bater e prender. ”

nessa excursão pelos labirintos da ruína com seus montes de entulhos e lixos. Na saída sentamos e ele dizia:

Você está vendo isso? Essa condição degradante? Esse monte de lixo, essa gente amontoada desse jeito? Você se pergunta porque eu estou aqui? Eu te digo: eu tenho casa, aqui perto, mas fecho tudo para pensarem que estou quieto lá dentro e saio pro beco. Fico assim, sujo, dias pelas ruas, não quero que ninguém me veja. Esses dias me encontraram e falaram, por que isso cara?

Quando ele fez a pergunta, tomei a via da causa e disse então: “Boa pergunta. Por quê?” - ele responde:

Eu poderia pegar a droga e levar prá casa e ficar lá noiado, atrás da porta.

Tem gente que vem aqui, pega a droga e vaza. Mas é muito ruim ficar sozinho, a paranóia bate duro. Na rua você está com outros, a gente é lixo junto, se sente igual com outros, circula e fica com quem tá na mesma merda.

Num determinado momento perguntou se eu já usei crack e me mostra o cachimbo. Diz que eu preciso experimentar e depois de longa conversa sobre o cachimbo, enquanto o mantém entre as mãos, limpando e acariciando seu cachimbo, aproxima o cachimbo apagado do meu nariz e diz: “Cheira aí. Cheira meu cachimbo...”. Barro o gesto dele com a mão e me afasto recusando essa proximidade.

Esse fragmento clínico nos diz acerca da posição subjetiva desse homem, onde a relação com a droga/mulher o engole completamente num gozo que parece retido nesse pequeno cachimbo, que ele oferece para eu cheirar. Objeto anal que ele mesmo obrou, por que o fez a partir de lixo (tampa de esmalte e antena de carro) e que modelou com as mãos e fica nesse cuidado obsessivo de limpeza finalmente me pedindo para cheirar: posição regredida de um neurótico obsessivo a precária defesa anal diante do devoramento oral da droga/mulher. Esse homem chora de vergonha diante de mim nessa noite onde me diz que sua merda é tudo o que tem:

seu cachimbo que ele oferece ao Outro escondido pela escuridão noturna. Ele bem diz daqueles que tomam a compulsão às drogas como uma saída do sujeito frente à castração, como um recurso fetichista de burlá-la. Trata-se da narcose do desejo como bem disse Bittencourt. O sujeito rompeu com o “faz pipi” como disse Lacan, é de uma regressão topológica que se trata, o encontro sexual com a mulher/droga é da ordem da permissividade de um gozo perverso polimorfo.

O que podemos pensar do uso abusivo de drogas nessa vertente neurótica como é a maior parte dos casos nos quais relatamos acima (com exceção do Chumbinho)? Nessa clínica da rua estamos diante de expressões de um masoquismo erógeno vividos num certo contexto de compulsão como masoquismo moral, estamos diante da psicose, e da neurose em seu maior número. Neuroses graves, sujeitos inibidos produzindo sintoma “tiro no pé”, acting-outs e passagens ao ato num drama masoquista vivido no fio da faca do que é a vida do povo das periferias. Negro drama da violência urbana, da fome e do “dane-se” do Outro; do abandono e da condenação à morte. Medo da polícia, medo das milícias, e o tráfico no meio do medo, no meio da rua, vida nua.

Compulsão às drogas, precisamente no que é esse objeto que produz estado alterado de consciência – narcose -, ela produz a suspensão do conflito do sujeito diante do supereu. É como “narcose do desejo” como diz Bittencourt (1994), como rompimento com a ordem fálica que esse objeto droga parece intensificar o que é o mecanismo da própria pulsão. Ele é um objeto próprio ao campo das compulsões e aí onde o sujeito fica retido compulsivamente numa certa posição diante do objeto – diga-se, submetido, sendo punido, masoquismo moral – marcando esse ponto de fixação da pulsão, esse gozo.

A questão muito cara que se coloca nesse momento de fim de tese, a questão clinica que nos atravessa é sobre quais ofertas podem proporcionar a eles uma distância, um “tempo” da droga, o que poderia fazê-los transporem esse momento de “julgamento mudo” do imperativo: “Droga-te”? Como fazer a suspensão desse imperativo a ponto de que o sujeito possa num apelo ao outro encontrar-se com o analista? Primeiramente é preciso que tenha analista na Rua! Que ele possa ser o suporte da transferência e por isso

(...) ele deve pôr em dúvida aquilo que compreende, e dizer-se que aquilo que procura alcançar é justamente aquilo que, em princípio, não compreende. É somente na medida em que, decerto, ele sabe o que é o desejo, mas não sabe o que esse sujeito, com quem embarcou na aventura analítica, deseja, que ele está em posição de ter em si deste desejo, o objeto. (LACAN, 1992, p. 195)

Nos casos clínicos de Drama e da Ângela, temos uma experiência de escuta de sujeitos petrificados diante do primeiro tempo do supereu, de que tratamos no desenvolvimento teórico que fizemos no início dessa PARTE III (pág. 89-94). Se podemos falar de um “estatuto do sofrimento” é o do sofrimento masoquista

colocado num exponencial pela compulsão. “Senhora droga” que é um nome possível para o supereu entre outros como “A mulher” ou “O diabo”, como dizia o Drama.

No documento Psicanálise na rua (páginas 98-101)