1. MARCO TEÓRICO
1.2 Consciência Histórica
1.2.1 Um conceito para consciência histórica
Nas pesquisas em cognição histórica, o conceito de consciência histórica assume certa centralidade em relação aos demais, ditos de segunda ordem, ou conceitos meta-históricos. Lee (2001) aponta que tais formulações – consciência histórica, narrativa histórica, evidência histórica e literácia – são de natureza da
própria epistemologia da história, conferindo a esta disciplina, consistência. Segundo Barca (2006),
[...] Em história, a aprendizagem é orientada para uma leitura contextualizada do passado a partir da evidência fornecida por variadíssimas fontes. A História não trata de certezas sobre um passado considerado fixo até que novos factos sejam descobertos (p. 95).
Nesse sentido, a evidência histórica constitui uma concepção de fontes historiográficas, que nos estudos fundamentados na cognição histórica, são apontados como vestígios, ou evidências do passado, e não o passado retratado, necessitando assim de uma competência para “ler a história”. A ideia de literácia, segundo Barca (2006), é justamente a capacidade para ler o passado, interpretando- o, a partir das evidências das fontes.
Outro conceito também citado por Lee (2001) refere-se à narrativa histórica, visto que esta é uma competência pela qual se alcança a compreensão do fazer história, permitindo tanto a organização dos conteúdos, quanto do conhecimento.
Alguns autores como Rüsen (2011b, p.59) concebem a narrativa histórica como “[...]
a forma linguística dentro da qual a consciência histórica realiza sua função de orientação”. Segundo o autor (2011b),
Essa competência pode se definir como a habilidade da consciência humana para levar a cabo procedimentos que dão sentido ao passado, fazendo efetiva uma orientação temporal na vida prática presente por meio da recordação da realidade passada (p.59).
Rüsen (2001, p. 95) aponta que a narrativa histórica “[...] é um sistema de operações mentais que define o campo da consciência histórica”. Segundo o autor (2001), todo o conhecimento histórico, seja ele produzido em quaisquer espaços, tem por fundamento a consciência histórica. Rüsen (2001) a define como,
A suma das operações mentais com as quais os homens interpretam a sua experiência de evolução temporal, de seu mundo e de si mesmos de forma tal que possam orientar, intencionalmente a sua vida prática no tempo (57).
Cerri (2011a) identificou certa pluralidade nas abordagens sobre consciência histórica, que vão desde uma concepção de que esta corresponde a um nível específico de saber, e o seu oposto nesse sentido seria uma “alienação histórica”, até a perspectiva de estágios, em que o indivíduo pode ou não alcançá-la, de acordo com o processo de modernização de sua sociedade.
Destaca-se, no entanto o pensamento de Heller (1993) e Rüsen (2001, 2007) que são apontados por Cerri (2011a) como teóricos cuja abordagem distancia-se da perspectiva de meta, mas compreendem a consciência histórica como uma pré- condição da existência do pensamento humano. Logo, não estariam restritas a períodos da história, classes sociais, ou a indivíduos preparados para a reflexão histórica.
Heller (1993) aponta que esse é um processo inerente à natureza dos indivíduos, e que diante da necessidade de orientar suas ações no tempo, os grupos humanos, na medida em que sedimentavam suas identidades, individuais e coletivas, também formavam a sua consciência histórica. Para a autora (1993, p.
15), “[...] a historicidade de um único homem implica a historicidade de todo gênero humano. O plural é anterior ao singular [...]”.
A principal ideia de Heller (1993) é que a consciência histórica é um processo da vida humano formado a partir da necessidade do grupo de se reconhecer como tal, valendo-se, particularmente do mito de origem, fato comum aos integrantes de um mesmo grupo. À medida que as sociedades se tornam mais complexas, a consciência histórica também se torna mais apurada.
Apesar de certa aproximação com o pensamento de Jörn Rüsen, concebendo a consciência histórica como um fenômeno inerente à natureza humana, Cerri (2011a) identifica uma diferença crucial entre os dois teóricos: Heller (1993) a concebe sob uma perspectiva diacrônica, porque estabelece estágios evolutivos da consciência histórica, e Jörn Rüsen caminha em uma perspectiva sincrônica do conceito, onde os tipos de consciência histórica, diferenciados por pontos de vistas sobre o passado, podem surgir simultaneamente.
Segundo Heller (1993), a consciência histórica é um processo inerente ao estar no mundo, a partir do momento em que a percepção da historicidade de si mesmo, a qual se enraíza na ideia de que alguém estava aqui e não está mais, e de que hoje eu estou no mundo, mas amanhã não mais estarei. Nas palavras da autora (1993),
A consciência histórica, com seu poder de abrangência, inclui a consciência da historicidade. Em todos os seus estágios, a consciência histórica se manifesta em cada uma das objetivações criadas e absorvidas pela Conjuntividade. A história, como objeto de interesse, é apenas uma das muitas manifestações da consciência histórica (p.69).
Segundo Rüsen (2001) a consciência histórica é um fenômeno relacionado à vida prática dos indivíduos. O autor (2001) aponta que estar no mundo presume agir intencionalmente, interpretando a si mesmo e ao mundo. Ou seja, não é possível estar em uma corrente temporal sem atribuir sentido a ela, já que deixar de agir também revela igualmente uma interpretação. Atribuir um sentido à temporalidade é um processo em que o passado é, continuamente, interpretado à luz do presente e na expectativa do futuro. Nesse sentido, aponta o autor (2001) que,
A consciência histórica é o trabalho intelectual realizado pelo homem para tornar suas intenções de agir conformes com a experiência do tempo. Esse trabalho é efetuado na forma de interpretações das experiências do tempo. Estas são interpretadas em função do que se tenciona para além das condições e circunstâncias dadas da vida (p.59).
Em outras palavras, como indica Cerri (2011a), mobilizar a própria consciência histórica não é uma opção, mas uma necessidade de atribuição de significado a um fluxo sobre o qual não se tem controle, o tempo. Entende-se por essa atribuição de significado, a interpretação do passado, à luz do presente, e tendo o futuro como perspectiva. Cerri (2011a, p.42) resume essa ideia como “[...] o grau de consciência da relação entre o passado, o presente e o futuro” [...]
Por meio da definição de Rüsen (2001), pode-se concluir que a operação mental com que a consciência histórica se constitui também pode ser descrita como o estabelecimento do “sentido da experiência do tempo”, trata-se, de um processo da consciência em que as experiências do tempo são interpretadas. Neste trabalho, Heller (1993) aponta que,
Dar sentido a alguma coisa significa mover fenômenos, experiências e similares, para dentro do nosso mundo; significa transformar o desconhecido em conhecido, o inexplicável em explicável, bem como
reforçar ou alterar o mundo por ações significativas de diferentes proveniências (p.85).
Nesse sentido, a consciência histórica se move, ou se estrutura a partir do significado que os indivíduos atribuem ao passado. Para Rüsen (2007) estão presentes nesse processo cognitivo da história, a interpretação, a orientação e a memória. A orientação está relacionada à intenção inerente em relação à vida prática. Segundo o autor (2007, p. 33) “[...] A consciência histórica tem por objetivo, pois retirar do lastro do passado pontos de vista e perspectivas para a orientação do agir [...]”.
Heller (1993) também ressalta a necessidade do homem em buscar essa orientação, no entanto, a autora (1993) também destaca o papel da consciência histórica na constituição da identidade. Cerri (2001a, p. 33) reforça que, “[...]
Produzir identidade coletiva, e dentro dela uma consciência histórica específica e sintonizada com ela é um dado essencial a qualquer grupo humano que pretenda a sua continuidade” [...].
Quanto à memória histórica, Rüsen (2007) aponta que esta não lança representações imaginárias de um passado factual e longínquo para a proximidade da orientação concreta do agir humano, mas, é parte importante no trabalho interpretativo que busca o passado como experiência humana no tempo.
Assim, memória e interpretação se articulam na elaboração da experiência do tempo, formulando, nas palavras de Rüsen (2007, p.44) uma “[...] representação de mudança temporal (‘continuidade’), que sintetize as três dimensões do tempo num construto abrangente de sentido [...]”. Em suma, no processo de ressignificar o passado, os indivíduos recorrem à memória histórica a fim de interpretá-lo como experiência humana no tempo, dotada de sentido histórico, objetivando à sua orientação. É com base nesse procedimento cognitivo que se estrutura a consciência histórica.