Marília Molina Furlan
Cenas de enunciação e
ethos
discursivo: análise do discurso
de autoajuda para adolescentes
Marília Molina Furlan
Cenas de enunciação e
ethos
discursivo: análise do discurso
de autoajuda para adolescentes
Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Letras, junto ao Programa de
Pós-Graduação em Estudos
Linguísticos, Área de Concentração –
Análise Linguística, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José
do Rio Preto.
Orientadora: Profa. Dra. Anna Flora Brunelli
Bolsa: Capes
Marília Molina Furlan
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE UNESP - Campus de São José do Rio Preto Furlan, Marília Molina.
Cenas de enunciação e ethos discursivo : análise do discurso de autoajuda para adolescentes / Marília Molina Furlan. -- São José do Rio Preto, 2013
162 f.
Orientador: Anna Flora Brunelli
Dissertação (mestrado) –Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas
1. Linguística. 2. Análise do discurso. 3. Autoajuda. 4.
Autopercepção. 5. Literatura para jovens. I. Brunelli, Anna Flora. II. Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho". Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. Título.
Marília Molina Furlan
Análise do discurso de autoajuda para adolescentes:
ethos
discursivo e cenas de enunciação
Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Letras, junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, Área de Concentração – Análise Linguística, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio
Preto.
Comissão Examinadora
Profa. Dra. Anna Flora Brunelli
UNESP
–
São José do Rio Preto
Orientadora
Profa. Dra. Fabiana Cristina Komesu
UNESP
–
São José do Rio Preto
Profa. Dra. Luciana Salazar Salgado
UFSCar
–
São Carlos
Dedico este trabalho a
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Laudenir e Maria Imaculada, pelo amor, pelo carinho e pelo apoio que me deram ao longo de toda a minha vida e por me ensinarem o valor da honestidade, da dignidade, da persistência e da integridade, princípios pelos que me norteio em cada momento de minha vida.
À minha irmã Marcela, pelo apoio nos momentos mais difíceis, pela amizade e pela confiança que sempre demonstrou em minha jornada.
À minha orientadora, professora Anna Flora Brunelli, pelos excelentes encaminhamentos de meu trabalho, pela confiança em meu potencial, pelo apoio para enfrentar meus obstáculos e minhas dificuldades e pela amizade construída nessa parceria.
À professora Luciana Salazar Salgado e à professora Fabiana Cristina Komesu, membros da banca de defesa, pela leitura de meu trabalho e pelos valiosos encaminhamentos ao meu trabalho.
À professora Fabiana Cristina Komesu e ao professor Sebastião Carlos Leite Gonçalves pelas valiosas contribuições feitas durante o exame de qualificação.
Às professoras Marina Célia Mendonça e Gisele Cássia de Souza, por terem aceitado fazer parte da banca examinadora na qualidade de suplentes.
Aos funcionários da Seção de Pós-Graduação e da Biblioteca, pela gentileza no atendimento e pelos serviços prestados.
FURLAN, M. M. Cenas de enunciação e ethos discursivo: análise do discurso de autoajuda para adolescentes. 2013. 162f. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. Universidade Estadual Paulista.
RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo analisar o discurso de autoajuda para adolescentes, por meio do aparato teórico-metodológico da Análise do Discurso de linha francesa, com ênfase nas reflexões que Maingueneau desenvolve sobre a noção de ethos
discursivo. Para tanto, selecionamos e descrevemos quatroobras representativas desse discurso. O interesse pela noção de ethos discursivo, definido por Maingueneau (2005) como a imagem que o sujeito enunciador projeta de si pela sua enunciação, justifica-se pelo papel que essa imagem, ligada a estereótipos sociais, desempenha no processo de adesão do público ao discurso, ou seja, o ethos está diretamente ligado à eficácia discursiva. Além disso, o ethos participa da constituição da cenografia do discurso, cena que o discurso pressupõe para ser enunciado e que ele valida por sua própria enunciação. Considerando-se aspectos da materialidade linguística das obras do córpus, a análise revela a heterogeneidade tanto dos ethé do discurso de autoajuda para adolescentes quanto das cenografias articuladas a esses ethé. A análise também indica que se trata de ethé e de cenografias diferentes das relativas ao discurso de autoajuda para adultos. Assim, em três das obras analisadas, nota-se a atenuação do tom autoritário típico desse discurso, quando ele se dirige a adultos. Por outro lado, uma das obras do córpus, obra americana traduzida no Brasil, está mais próxima ao discurso de autoajuda para adultos, pois apresenta o mesmo tom impositivo que caracteriza essa vertente de discurso de autoajuda.
FURLAN, M. M.Enunciation scenes and discursive ethos: analysis of discourse of self-help for teenagers. 2013. 162f. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. Universidade Estadual Paulista.
ABSTRACT
This research aims to analyze the discourse of self-help for teenagers, through theoretical and methodological apparatus of Discourse Analysis of French Line, with emphasis on reflections developed by Maingueneau about the notion of discursive ethos. We selected and describe four representative works of this discourse. The interest in the concept of discursive ethos, defined by Maingueneau (2005) as the image of the subject that states projects from himself by his enunciation, is justified by the role that image, linked to social stereotypes, plays in the process of adhesion of public to discourse, this is, the ethos is directly linked to the effectiveness discourse. In addition, ethos participates of the constitution of scenography of discourse, scene that discourse presupposes to be stated and that it validates by his own utterance. Considering aspects of linguistic materiality of the works of the corpus, the analysis reveals the heterogeneity both of ethe of self-help discourse for teenagers as the scenography articulated these ethe. The analysis also indicates that in the four surveyed works there are different ethe and scenography than those relating to self-help discourse for adults. Thus, in three of the analyzed works, we observe the attenuation of typical authoritative tone of this self-help discourse for adults. On the other hand, one of the works of the corpus, American work translated in Brazil, is closer to self-help discourse for adults, because it has the same authoritative tone that characterizes this type of self-help discourse.
LISTA DE QUADROS, FIGURAS E TABELAS
LISTA DE TABELAS
p.
Tabela 1: Classificação dos marcadores discursivos presentes em Tipo Assim: adolescente... 49
Tabela 2: Frequência dos MD interacionais na obra Tipo assim: adolescente... 50
Tabela 3: Tipos dos marcadores de interação encontrados em Tipo assim: adolescente... 50
Tabela 4: Classificação dos modalizadores presentes na obra Tipo assim: adolescente... 52
Tabela 5: Tipos de modais deônticos encontrados na obra Tipo assim: adolescente... 57
Tabela 6: Formas de atenuação da modalização deôntica na obra Tipo assim: adolescente... 57
Tabela 7: Classificação dos modais presentes em O livro do adolescente... 82
Tabela 8: Classificação dos itens modais presentes na obra Por que estou assim? Os momentos difíceis da adolescência..... 92
Tabela 9: Escopo dos itens modais epistêmicos na obra Por que estou assim? Os momentos difíceis da adolescência... 93
Tabela 10: Expressão semântica dos itens modais epistêmicos orientados para a proposição na obra Por que estou assim? Os momentos difíceis da adolescência... 93
Tabela 11: Escopo dos itens modais deônticos na obra Por que estou assim?Os momentos difíceis da adolescência ... 96
Tabela 12: Classificação dos modalizadores encontrados na obra Não faça tempestade em copo
SUMÁRIO
p.
INTRODUÇÃO... 01
1. APARATO TEÓRICO-METODOLÓGICO... 09
1.1. Cenografia e ethos...10
1.2. Aspectos linguístico-discursivos ... 17
1.2.1. Gêneros discursivos... 17
1.2.2. Relações dialógicas... 19
1.2.3. Enunciação aforizante... 20
1.2.4. Definições e explicações... 23
1.2.5. Os tons do discurso... 27
1.2.6. Modalização autonímica... 29
1.2.7. Glosas... 30
1.2.8. Procedimentos argumentativos... 32
1.2.9. Marcadores discursivos... 38
1.2.10.Modalidade... 41
1.3. O córpus... 45
2. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DAS OBRAS DE AUTOAJUDA PARA ADOLESCENTES... 48
2.1. Análise da obra Tipo assim: adolescente... 48
2.1.1. Marcadores discursivos... 49
2.1.2. Modalidade... 52
2.1.3. Léxico... 59
2.2. Análise da obra O livro do adolescente: discutindo ideias e atitudes
com o jovem de hoje.... 64
2.2.1. Gêneros discursivos e cenografia... 64
2.2.2. Enunciação aforizante... 73
2.2.3. Definições e explicações... 76
2.2.4. Modalidade... 81
2.2.5. Léxico... 87
2.2.6. Considerações sobre a cenografia e o ethos da obra em análise... 90
2.3. Análise da obra Por que estou assim? Os momentos difíceis da adolescência... 91
2.3.1. Modalidade... 92
2.3.2. Os tons do discurso... 100
2.3.3. Modalização autonímica... 105
2.3.4. Enumeração, analogias e relações dialógicas... 110
2.3.5. Considerações sobre a cenografia e o ethos da obra em análise... 117
2.4. Análise da obra Não faça tempestade em copo d’água para adolescentes...119
2.4.1. Modalidade... 120
2.4.2. Glosas... 125
2.4.3. Léxico... 130
2.4.4. Procedimentos argumentativos... 131
2.4.5. Considerações sobre a cenografia e o ethos da obra em análise... 138
CONSIDERAÇÕES FINAIS... 143
INTRODUÇÃO
O sucesso mercadológico das obras de autoajuda pode ser considerado uma
amostra do potencial que o discurso de autoajuda tem para promover, no contexto
sócio-histórico contemporâneo, a ideologia centrada no individualismo pós-moderno
que caracteriza as atuais sociedades. De modo geral, os trabalhos que tratam dessa
questão (cf. BAUMAN, 1998; CHAGAS, 2001; RÜDIGER, 1996) afirmam que o
individualismo é um fenômeno ideológico que se caracteriza pelos deslocamentos nos
referenciais de identificação (de coletivos para individuais) e pela exigência de novos
estilos de vida, que levam a construções e reconstruções de identidades que sirvam ao
modelo capitalista vigente. Mais exatamente, as subjetividades são pulverizadas e os
padrões identitários tornam-se voláteis e submissos à ótica do mercado e do mecanismo
de produção capitalista.
Nesse contexto, o sujeito pós-moderno, embora seja um indivíduo que se vê
livre para tomar decisões, encontra-se solitário e dependente de si mesmo, desprovido
de um lugar social bem definido. Além disso, tende a focar a si mesmo em detrimento
das forças sociais que o constituem, que o mobilizam e que o integram em determinada
coletividade. Desse modo, o indivíduo pós-moderno se encontra impelido a tentar
diminuir suas fragilidades e superar as dificuldades pessoais em busca do bem-estar e da
satisfação pessoal. Por isso, o individualismo pós-moderno também se caracteriza pela
incessante necessidade de satisfação de desejos particulares originados pelas novas
relações de consumo características do capitalismo atual.
O enfoque na resolução dos problemas individuais e na constituição de uma
primordialmente necessidades particulares e, por vezes, indiferentes às condições
sócio-históricas que acarretam os problemas de ordem social que afetam as sociedades
modernas) parece alavancar as vendas das obras de autoajuda. Assim, tais obras
investem na promoção de um indivíduo ideal característico da contemporaneidade:
seguro, autoconfiante, determinado e concentrado em alcançar sucesso profissional e
financeiro.
Reconhecendo essa estreita relação das obras de autoajuda com a ideologia
capitalista e individualista, vários estudos têm-se direcionado a explicar o
funcionamento do discurso veiculado nesses livros, seja pela descrição específica de
aspectos sociológicos e históricos que condicionaram sua constituição, seja pela análise
dos mecanismos enunciativos que o particularizam. Dentre estes últimos, encontram-se
os trabalhos de Brunelli (2004) e Sobral (2006), trabalhos com os quais esta pesquisa
dialoga. Assim, considerando alguns dos resultados desses trabalhos, esta pesquisa visa
contribuir com os estudos sobre o discurso de autoajuda, analisando obras de autoajuda
destinadas ao público adolescente, uma de suas vertentes mais recentes e uma das
menos pesquisadas. Trata-se de contribuir também com os estudos de discursos sobre a
adolescência ou voltados aos adolescentes, revelando mecanismos enunciativos que
caracterizam ou especificam o modo de enunciar de produções textuais destinadas a
esse público. Para tanto, adota-se o aparato teórico-metodológico da Análise do
Discurso de linha francesa (AD, doravante).
De um ponto de vista mais específico, este trabalho pretende investigar o ethos
do discurso de autoajuda para adolescentes e caracterizar a(s) cena(s) de enunciação
na(s) qual(is) esse ethos emerge. O interesse pelo conceito de ethos (considerado,
basicamente, como a imagem relacionada ao sujeito enunciador do discurso revelado
questão da eficácia de um discurso, isto é, à sua capacidade de suscitar a crença. A
análise do ethos vincula-se à análise da cena de enunciação instaurada em cada obra do
córpus, uma vez que o ethos participa da constituição dessa cena, que é a que o discurso
pressupõe para poder ser enunciado e que ele legitima por sua própria enunciação (cf.
MAINGUENEAU, 2008b).
Conforme dito, este trabalho dialoga com outros estudos sobre o discurso de
autoajuda, tal como o de Brunelli (2004), que analisa obras de autoajuda para adultos,
ligadas à temática do sucesso profissional e/ou financeiro. Nesse trabalho, com base na
abordagem interdiscursiva proposta por Maingueneau (2005a), a autora centra-se na
análise de alguns dos traços semânticos que definem o discurso de autoajuda. Por meio
de um estudo da modalidade, verifica, então, que a manifestação de certeza é um dos
traços que reivindica, ao mesmo tempo em que a manifestação da dúvida é um dos que
rejeita.
Posteriormente, a análise revela que o direcionamento para os pontos principais
é também uma característica essencial desse discurso. Assim, o discurso de autoajuda
manifesta, em seus enunciados, traços de objetividade e assertividade. A esse respeito,
autora observou que o sujeito enunciador desse discurso não promove uma reflexão ou
um debate sobre as condições que conduzem o enunciatário a um estado de insatisfação,
mas se propõe a ser um guia, um orientador que receita fórmulas, dicas, “truques” para
superar este estado e é nestas sugestões que se concentram seus enunciados, daí,
inclusive, a alta frequência de imperativos empregados nas obras.
A partir daí, a autora investiga o ethos do discurso em questão, o que a levou a
conclusão de que se trata do ethos do homem seguro, autoconfiante, determinado e
autocentrado, que está voltado para os seus objetivos e interesses e que age em busca de
referente ao ethos do discurso de autoajuda, Brunelli (2004) afirma que o sujeito
enunciador desse discurso assume um tom autoritário, próprio de quem se coloca no
lugar de um orientador e que está apto a dizer ao público o que fazer para resolver seus
problemas. Trata-se, então, de um enunciador que se apresenta como um indivíduo
confiante e seguro, que se mostra plenamente convicto de suas habilidades e de seu
potencial, comprometido com a verdade de suas afirmações.
Ainda no que concerne à imagem do enunciador projetada pela enunciação, a
autora destacou o tom otimista que caracteriza a enunciação desse discurso, na medida
em que este se sustenta sob a afirmação de que pensamentos positivos e otimistas
atraem o sucesso desejado pelo enunciatário. Segundo Brunelli (2004), na construção da
atmosfera otimista da enunciação da autoajuda, ao mesmo tempo em que se apagam as
referências aos conflitos e problemas contemporâneos, cria-se uma imagem positiva e
estável do mundo pós-moderno.
Considerando o modo de enunciação do sujeito enunciador, a autora também
identifica a imagem do público-alvo dessas obras. O leitor desse tipo de autoajuda se
caracteriza pelos traços opostos aos do sujeito enunciador: inseguro, descrente de suas
habilidades ou de sua capacidade de superação dos problemas, perdido, carente de
orientação, pessimista. Assim descrito, o público é convocado a ouvir a “sabedoria”, a
“experiência” ou “conhecimento” do autor da obra para que possa alcançar, por meio
dessas orientações, as atitudes e o status que o enunciador promove, enunciativamente,
de si mesmo, pelo ethos que projeta em sua forma de enunciar segura, confiante,
positiva. Tendo em vista esses resultados, o presente trabalho pretende verificar em que
medida as características do discurso de autoajuda para adultos apontadas por Brunelli
Em relação ao diálogo com trabalho de Sobral (2006), pretende-se verificar se as
obras em análise têm as mesmas propriedades que o autor lista para caracterizar a
autoajuda de vertente psico-cósmica1 como um gênero, especificamente em relação aos
processos intergenéricos que a constituem. Segundo o autor, essa vertente de autoajuda
se caracteriza por propor novas formas de enfrentamento das crises, essencialmente
espirituais, que afetam os mais diversos grupos sociais. Nesses termos, a autoajuda se
propõe a revelar os modos pelas quais as pessoas, a partir de um processo de
autoinvestigação interior, poderiam descobrir forças dentro de si ou o próprio potencial
para a superação das crises de diversas ordens que afetam o indivíduo das sociedades
contemporâneas. Considerando, então, os processos de cura assinalados pelos autores da
autoajuda psico-cósmica, entende-se que é o próprio indivíduo que deve, em seu
processo de auto-observação, gerenciar e encontrar as soluções para o crescimento e
desenvolvimento espiritual. Dessa forma, reitera-se o poder do indivíduo para
solucionar seus dilemas, considerados, pois, como resultados exclusivos das
experiências de vida de cada pessoa, sem influência de fatores sociais e históricos que
os condicionariam. A respeito dessa vertente de autoajuda, o autor afirma:
Esse tipo de textos se autojustifica pela alegação — e, mais do que isso, pela percepção da parte do público — de haver uma ampla crise que afeta não somente o mundo como um todo, mas, de modo específico, o modelo das autodenominadas profissões de ajuda (medicina, psiquiatria, psicologia, religião etc.). A partir disso, propõem eles a descoberta de forças, principalmente interiores, capazes de melhor servir às necessidades humanas sem recurso a “terceiros”, ao menos humanos, exceção feita precisamente aos membros da comunidade mais ampla de auto-ajuda – real ou virtual. Esses livros influenciam e/ou tentam influenciar todos os campos da atividade humana, podendo mesmo ser considerados manifestações de uma dada concepção de “natureza humana” e do “bem-agir” no mundo. (SOBRAL, 2006, p. 19).
Para caracterizar a autoajuda como gênero, o autor adota a perspectiva
bakhtiniana. Desse ponto de vista, o gênero está intrinsecamente atrelado a um projeto
enunciativo de um sujeito enunciador em relação aos seus interlocutores específicos em
um dado contexto comunicativo, embora seja socialmente compartilhado e disponível
para todos os participantes de um tipo particular de comunicação. De acordo com essa
perspectiva, os gêneros discursivos se constituem de:
(i) conteúdos temáticos, ideologicamente marcados e estruturados, que se comunicam
pelos gêneros;
(ii) estruturas comunicativas e semióticas compartilhadas pelos textos de um
determinado gênero, denominadas de formas composicionais;
(iii) ato estilístico, relativo à seleção de meios linguísticos (seleção de meios lexicais,
fraseológicos e gramaticais).
Além disso, considera-se que os gêneros discursivos, nos diferentes âmbitos
comunicativos, se inter-relacionam e, nas diversas esferas de comunicação, podem
adquirir traços uns dos outros, transformando-se não só a si mesmos, mas também as
próprias esferas de comunicação às quais estão vinculados. Assim, tal como os
discursos, os gêneros também estabelecem entre si relações de confronto, de diálogo, de
concorrência, de aliança com outros.
No caso da autoajuda da vertente citada, o autor verifica que ela se apropria de
diversos gêneros para se constituir. Assim, por exemplo, apropria-se do gênero médico
na medida em que fundamenta suas teses e as apresenta sob forma de prescrições que o
interlocutor deve seguir para alcançar uma busca espiritual, ou seja, instaura-se uma
relação enunciativa em que o autor de autoajuda é detentor de um saber ou de uma
experiência que o autoriza a ditar normas de conduta aos interlocutores para atingir a
A imagem dos autores descritas nas contracapas também contribui para tal
constatação: descritos como autores de várias obras dedicadas ao tema, como
palestrantes de sucesso, como líderes espirituais, como acadêmicos reconhecidos, os
autores estão aptos a prescrever quais os caminhos que os interlocutores devem seguir
na busca da paz espiritual.
Por outro lado, o gênero também dialoga com gêneros acadêmicos, em função
da presença de dedicatórias e agradecimentos por parte dos autores, tais como
verificados em gêneros científicos como teses e dissertações. Mais exatamente, Sobral
(2006) constatou que, ao mesmo tempo em que tal gênero de autoajuda se vale de
recursos semióticos relativos à sua filiação ao discurso religioso, também se legitima
por meio da apropriação de certos traços genéricos do discurso científico que, segundo o
autor, pertence a um lugar diferenciado de saber, isto é, ao universo acadêmico. Entre
esses traços, encontram-se: o recurso a definições, a institucionalização do discurso
produzido (no caso em análise, as assinaturas dos corpos editoriais nos textos de
contracapa, o que os tornam fiadores do discurso produzido), a recorrência ao léxico
médico, a presença de enunciados que contrastam os verdadeiros e os falsos sentidos
para “cura espiritual”, a citação nas contracapas de outros trabalhos ou a menção às
experiências profissionais dos autores, a relação de diagnóstico e cura como modelo de
leitura da obra (inserção no meio médico) e a indicação de certa “filiação teórica” das
propostas espirituais dos autores.
Assim, imprimindo traços de cientificidade às propostas e valendo-se da
perspectiva contemporânea da ciência como parâmetro para legitimação de ideias e
propostas, os sujeitos enunciadores buscam emprestar autoridade não só às suas teses,
mas também a si mesmos como dignos representantes ou autoridades desse lugar
de autoajuda de parasitismo, processo em que a recorrência a outros gêneros permite a
legitimação desse discurso em um lugar próprio no espaço discursivo.
Diante do exposto, neste trabalho, pretende-se verificar em que medida o
discurso de autoajuda para adolescentes se aproxima ou se diferencia do discurso de
autoajuda para adultos, conforme é descrito nos trabalhos citados.
Em relação à estrutura do presente trabalho, ele organiza-se da seguinte forma:
no primeiro capítulo, descrevem-se os princípios teórico-metodológicos que
fundamentam as análises das obras do córpus. Além disso, apresenta-se uma
contextualização das obras de autoajuda para adolescentes no mercado editorial
brasileiro, no que se refere à sua produção e comercialização, e os critérios de seleção
das obras que constituem o córpus. No segundo capítulo, apresentam-se as análises das
quatro obras selecionadas. Por fim, nas considerações finais do trabalho, comparam-se
os resultados das análises desenvolvidas, destacando-se semelhanças e/ou diferenças
relativas às suas cenografias e aos ethé das obras. Também se comparam esses
Capítulo 1
–
Aparato teórico-metodológico
Para a realização deste trabalho, adota-se, conforme já dito, o aparato
teórico-metodológico da AD, especialmente as reflexões de Maingueneau (2008a, 2008b,
2008c) sobre os conceitos de cenas de enunciação e ethos.
Cabe informar que a análise da cenografia e do ethos das obras do córpus se
desenvolve a partir de certos aspectos linguístico-discursivos da superfície discursiva,
considerados significativos especialmente pela sua regularidade. Para o tratamento desses aspectos, empregam-se certos aparatos teórico-metodológicos da Linguística que
auxiliam a compreender os efeitos de sentido que produzem. Isso se deve ao fato de que
os funcionamentos discursivos, conforme afirma Maingueneau (1989), não são
limitados pelas divisões internas da Linguística, nem dependem de uma ou outra de suas
correntes. Desse modo, a princípio, qualquer aparato teórico-metodológico pode ser
convocado, se se julgar necessário, para desenvolver a análise de algum aspecto
específico da materialidade do discurso, o que pode ser feito especialmente a partir das
hipóteses que o analista formula conforme o seu conhecimento acerca do córpus vai
amadurecendo2.
Ainda que determinados aspectos possam, a princípio, ser considerados para a
análise da cenografia e do ethos de todas as obras, a seleção de um ou de outro deve-se
à frequência de sua ocorrência na superfície discursiva de cada obra e ao grau de
produtividade de sua análise para a caracterização da cenografia e do ethos. Convém
esclarecer também que a escolha de determinados aparatos teórico-metodológicos não
implica que o trabalho abandone o ponto de vista da Análise do Discurso de linha
francesa, assumindo, por exemplo, pelas escolhas realizadas, os mesmos princípios
teóricos subjacentes a esses outros aparatos, que aqui são convocados apenas na
qualidade de dispositivos auxiliares e/ou de instrumentais de análise.
Para apresentar, então, os conceitos e princípios que regem a análise que se
desenvolve neste trabalho sobre o discurso de autoajuda para adolescentes, este capítulo
está organizado em torno de 3 eixos. O primeiro diz respeito aos conceitos e princípios
que abrangem os aspectos discursivos que orientam a análise das obras do córpus, ou
seja, às reflexões teóricas de Maingueneau (2008a, 2008b, 2008c) sobre cenografia e
sobre ethos discursivo. O segundo refere-se aos conceitos e princípios relativos ao
tratamento de certos aspectos linguístico-discursivos observados na análise das obras do
córpus. O terceiro eixo, dedicado ao córpus, destina-se a apresentar os critérios de
constituição do córpus, que foram selecionados considerando-se a comercialização de
obras de autoajuda para adolescentes no mercado editorial brasileiro.
1.1. Cenografia e ethos
De acordo com Maingueneau (2008b), a noção de ethos remonta à Retórica
Antiga, a primeira disciplina a preocupar-se com a construção da imagem de si por um
orador em seu discurso. Mais recentemente, outras teorias linguísticas, em especial as
pragmáticas e as discursivas, reformulam o conceito em seus respectivos quadros
teóricos, como observa Maingueneau (2008b). Convém destacar, portanto, os princípios
comuns que norteiam esses diversos tratamentos e as contribuições da Análise do
Discurso para o desenvolvimento desse conceito.
Na retórica, provavelmente a primeira elaboração conceitual de ethos foi
esboçada por Aristóteles, segundo o qual o ethos se destina a “causar boa impressão
auditório, ganhando sua confiança” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 13). Dessa maneira,
para Maingueneau (2008b), o ethos, na Retórica, é um saber inferido a partir da
enunciação e não um saber extradiscursivo sobre o locutor. Assim, ao destinatário cabe
a tarefa de atribuir certas características à entidade que se manifesta como origem da
enunciação, considerando o modo como enuncia.
Conforme afirma Maingueneau (2008b), para Aristóteles, um orador, tendo em
vista o auditório ao qual se destinava a sua enunciação, organiza seu discurso
considerando três aspectos: os argumentos (logos), as paixões (pathos) e as condutas
(ethos). Além disso, deve observar três qualidades fundamentais na construção do ethos:
a prudência (phronesis), a virtude (aretè) e a benevolência (eunoia). Empregando
corretamente os argumentos, recorrendo às paixões e a adequando sua enunciação a
certas condutas, o orador oferece ao destinatário uma experiência sensível desse
discurso, predispondo-o à sua adesão. A persuasão do auditório será resultado, portanto,
também do ethos do orador, que deve se aproximar do auditório, para criar a impressão
de que o enunciador é um dos membros daqueles que o ouvem.
Segundo Maingueneau (2008b), é possível encontrar em Ducrot uma
contribuição para a compreensão da noção de ethos, considerando-se a distinção que
Ducrot faz entre o locutor enquanto instância enunciativa e o locutor enquanto sujeito
real, existente no mundo extradiscursivo. Tendo em vista essa distinção, entende-se que
o ethos, assim como o locutor apreendido como enunciador, mostra-se na enunciação,
sem ser dito no corpo do enunciado. Ou seja, essa imagem do enunciador é percebida no
discurso, sem ser o objeto deste discurso, o que significa que o ethos não se identifica
com os atributos reais do locutor, mesmo que esteja associado a ele. A esse respeito,
Maingueneau (2008b) afirma que o destinatário atribui ao locutor inscrito no mundo
forma específica de dizer, de enunciar. Na verdade, não se trata de traços
exclusivamente intradiscursivos porque também intervêm na elaboração do ethos pelo
destinatário dados exteriores ao discurso do locutor, tais como mímicas, trajes, gestos,
etc.
Uma dificuldade apontada por Maingueneau (2008b) concernente à noção de
ethos diz respeito justamente ao fato de que a sua caracterização depende da atuação
conjunta de fatores de diversas ordens, linguísticas ou não: registro da língua,
planejamento textual, ritmo, gestos, modo de vestir, etc. Isso implica para o enunciatário
uma percepção e uma postura interpretativa mais complexa, já que deverá observar
indícios linguísticos e do ambiente em que ocorre a enunciação. O ethos abrange, então,
o comportamento verbal e não-verbal do enunciador. Como ressalta Maingueneau
(2008b), há sempre elementos contingentes num ato de comunicação em relação aos
quais é difícil dizer se fazem ou não parte do discurso, embora influenciem a construção
do ethos pelo destinatário. Além disso, essa apreensão do ethos pelo destinatário pode
não corresponder ao pretendido pelo enunciador.
O ethos também pode ser considerado sob diversas perspectivas: ele pode
relacionar-se a um aspecto mais concreto (imagem, feições, ar, tom) ou mais abstrato da
figura do enunciador (costumes oratórios, caráter, retrato moral); pode ser considerado
mais ou menos saliente, manifesto, singular ou coletivo, partilhado, implícito, visível,
fixo, convencional ou ousado. Para Kerbrat-Orecchione (1996 apud MAINGUENEAU,
2008b), por exemplo, o ethos é o conjunto de hábitos locucionais partilhados por
membros de uma comunidade, compondo um quadro invisível e imperceptível.
Maingueneau, apesar das dificuldades associadas à noção de ethos, elenca os
seguintes princípios mínimos que embasam seu construto teórico de ethos: (i) o de que
uma imagem independente da enunciação); (ii) o de que se trata de um processo
interativo de influência sobre o outro; (iii) o de que se trata de uma noção híbrida
(sócio-discursiva), “um comportamento socialmente avaliado, que não pode ser
apreendido fora de uma situação comunicativa específica, integrada ela mesma numa
determinada conjuntura sócio-histórica” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 17). Além disso,
embora o autor afirme que o modo como trabalha a noção no interior do quadro da AD
não seja essencialmente infiel às linhas de força da concepção aristotélica, ele também
deixa bem claro que o tratamento que da à noção de ethos se distancia de uma questão
de argumentação propriamente dita. A esse respeito, afirma:
Fui levado a trabalhar essa noção de ethos no quadro da análise do discurso e sobre corpora de gêneros “instituídos”, que oponho aos gêneros “conversacionais”. A perspectiva que defendo ultrapassa e muito o domínio da argumentação. Para além da persuasão por argumentos, essa noção de ethos permite refletir sobre o processo mais geral de adesão dos sujeitos a um certo discurso. (MAINGUENEAU, 2008b, p. 17, grifo nosso).
Para o autor, a noção de ethos mantém um laço especial com a reflexividade
enunciativa e permite articular corpo e discurso para além da distinção entre oral e
escrito. Mais exatamente, a instância subjetiva que se manifesta no discurso se deixa
conceber como uma espécie de “voz” indissociável de um corpo enunciante, que é
historicamente especificado. Desse modo, todos os textos, mesmo os escritos, têm uma
vocalidade, que pode se manifestar numa multiplicidade de tons3 associados a uma certa
caracterização do corpo do enunciador, considerado o “fiador”, isto é, o responsável
pela enunciação. Esse fiador é construído pelo destinatário a partir dos índices liberados
na enunciação.
Com essa perspectiva, Maingueneau (2008a) desenvolve uma concepção de
ethosque ele chama de “encarnada”, recobrindo não só a dimensão verbal, mas também
o conjunto de determinações físicas e psíquicas do “fiador”. Essas determinações, por
sua vez, dizem respeito a representações coletivas estereotípicas. Assim, atribui-se ao
fiador certo caráter (concebido como um feixe de traços psicológicos) e certa
corporalidade (uma constituição física associada a uma forma de se vestir), que juntos
implicam uma forma específica de se mover no espaço social, um certo comportamento
associado a estereótipos sociais que a enunciação contribui para manter ou transformar e
nos quais os destinatários se apoiam para sua apreensão da imagem do enunciador.
Assim, entende-se que o destinatário tem um papel relevante na construção do ethos do
enunciador, pois é ele que, com base nos traços intradiscursivos, relaciona o modo de
dizer do enunciador a representações coletivas e culturais relativas a modos específicos
de habitar o mundo, atribuindo, desse modo, ao fiador certa imagem psicológica e
social.
Com essa concepção encarnada de ethos, Maingueneau (2008a) explica como se
dá o processo de adesão de um destinatário a determinado discurso. Esse processo,
chamado pelo autor de incorporação, é constituído pelas seguintes etapas:
- num primeiro momento, a enunciação dá corporalidade ao seu fiador, ela lhe dá corpo;
- em seguida, o destinatário incorpora, assimila, um conjunto de esquemas que
correspondem a maneiras específicas de se remeter ao mundo, habitando seu próprio
corpo;
- as duas incorporações anteriores permitem a constituição de um corpo da comunidade
imaginária dos que aderem a um mesmo discurso.
Maingueneau (2008a) distingue o ethos pré-discursivo do ethos discursivo. Se
discursivos, o primeiro resulta de representações prévias do enunciador. Maingueneau
(2008a) acrescenta que a existência dos dois tipos de ethé não se dá necessariamente em
todos os discursos, pois há discursos que prescindem dessas imagens construídas a
priori pelos destinatários dos discursos.
Ainda segundo Maingueneau (2008a), o ethos discursivo é o produto da
interação de outros dois tipos: o ethos dito e o ethos mostrado, que é o ethos mostrado
pela enunciação. O primeiro diz respeito aos fragmentos dos textos que evocam sua
própria enunciação, revelando a imagem que tem de si, e/ou nos quais o enunciador faz
alusões a outras cenas de fala. Para Maingueneau (2008a), os limites entre o ethos dito
sugerido e o mostrado não são muito claros, por isso defende um continuum entre esses
dois tipos de ethé.
Além dessas propriedades, o ethos está vinculado à cena de enunciação, que,
segundo Maingueneau (2008a), engloba três cenas: a cena englobante, a cena genérica e
a cenografia. A cena englobante corresponde ao tipo de discurso; ela confere ao
discurso seu estatuto pragmático (por exemplo: discurso literário, discurso religioso,
discurso filosófico, discurso publicitário). A cena genérica, por sua vez, diz respeito ao
contrato associado a determinado gênero (editorial, sermão, guia turístico, visita médica,
receita, etc.). Finalmente tem-se a cenografia, cena construída pelo próprio texto, que
não é necessariamente imposta pelo gênero; assim, por exemplo, um sermão pode ser
enunciado por meio de uma cenografia professoral. A cenografia é exatamente o lugar
onde o fiador do discurso está inserido, assumindo certo modo de enunciação.
Dado o interesse nesse último tipo de cena para este trabalho, já que é nele que
emerge o ethos discursivo, convém destacar outras observações de Maingueneau
(2008c) a respeito dessa noção. A importância da cenografia para o discurso pode ser
A escolha da cenografia não é indiferente: o discurso, desenvolvendo-se a partir de sua cenografia, pretende convencer instituindo a cena de enunciação que o legitima. O discurso impõe sua cenografia de algum modo desde o início; mas, de outro lado, é por intermédio de sua própria enunciação que ele poderá legitimar a cenografia que ele impõe. Para isso, é necessário que ele faça seus leitores aceitarem o lugar no universo de sentido que ele instaura. (MAINGUENEAU, 2008c, p. 117, grifos do autor)
Desse modo, entende-se que, para o autor, a cenografia não se confunde com um
quadro predeterminado dentro do qual uma enunciação é inserida. Trata-se de um
dispositivo próprio ao discurso que se desenvolve simultaneamente à sua enunciação e
que, ao mesmo tempo em que a legitima, é legitimado por ela. É a própria enunciação
que especifica a cenografia e esta é a única que permite que tal enunciação funcione
para determinado universo de sentido que um discurso manifesta, contribuindo,
inclusive, para a aceitação, convencimento e adesão dos co-enunciadores ao discurso
em questão. Dessa forma,
[...] a cenografia é, ao mesmo tempo, origem e produto do discurso; ela legitima um enunciado que, retroativamente, deve legitimá-la e estabelecer que essa cenografia de onde se origina a palavra é precisamente a cenografia requerida para contar uma história, para denunciar uma injustiça etc. Quanto mais o enunciador avança no texto, mais ele deve se persuadir de que é aquela cenografia, e nenhuma outra, que corresponde ao mundo configurado pelo discurso. (MAINGUENEAU, 2008c, p. 118, grifos do autor)
Por fim, cabe ressaltar uma última observação feita pelo autor a respeito da
cenografia discursiva: há certos gêneros de discursos que restringem as possibilidades
de cenografia, limitando-as aos seus rituais sociocomunicativos mais típicos e há outros
que são mais suscetíveis a variações e modificações, que não se limitam exclusivamente
verificar se as obras de autoajuda para adolescentes reproduzem as propriedades do
gênero, nos termos de Sobral (2006) ou se desenvolvem outras cenografias.
1.2. Aspectos linguístico-discursivos 1.2.1. Gêneros discursivos
Conforme já dito anteriormente, Sobral (2006) afirma que o gênero4 de
autoajuda psico-cósmica se apropria, em um processo denominado de parasitismo, de
gêneros religiosos e médicos para legitimar não somente o lugar enunciativo ao qual se
vinculam os enunciadores, mas também o próprio gênero autoajuda. Desta forma, nos
paratextos que apresentam as obras nas contracapas, relatos de personalidades
acadêmicas e a descrição da biografia profissional dos autores são procedimentos que
conferem aos autores uma imagem de autoridade, de especialista. Apresentados como
líderes espirituais ou como palestrantes de sucesso, reconhecidos por outros membros
da comunidade acadêmica, os autores são apresentados como profissionais revestidos
pelo prestígio decorrente do pertencimento a um lugar de saber institucionalmente
constituído, isto é, o meio acadêmico.
Ainda de acordo com Sobral (2006), a disposição dos capítulos nos sumários
como etapas sequenciais do percurso de cura espiritual também está associada ao modo
de composição de gêneros científicos, tal como teses e dissertações, em que cada
capítulo se apresenta em uma relação contígua com os outros capítulos, com a
consequente impossibilidade de alteração da ordem. Além disso, tanto pelo léxico
empregado, originado do discurso médico (“cura”, “remédio”, “diagnóstico”), quanto
pela prescrição de receitas para alterar o estado do enunciatário (de um estado de
4
enfermidade espiritual para o de harmonia espiritual), o autor observou a apropriação do
gênero da consulta médica, no modo de organização dos capítulos. Assim, o enunciador
desse tipo de autoajuda descreve as características da crise espiritual vivenciada pelo
enunciatário, realiza o diagnóstico e prescreve fórmulas para a passagem de um estado
de “doença” espiritual a um estado de saúde espiritual.
Essa apropriação de um gênero da medicina confere legitimidade ao discurso de
autoajuda, dado o prestígio associado ao discurso médico. Sobral também nota que o
discurso de autoajuda dialoga com o discurso religioso, na medida em que seus
enunciadores demonstram conhecer bases de diversas doutrinas espirituais, sem se filiar
a um posicionamento religioso específico. Esse diálogo com o discurso religioso
também reforça a legitimidade do discurso e confirma o lugar de saber do sujeito
enunciador. Confirma ainda a imagem que os autores têm de líderes espirituais, tal
como são apresentados nos paratextos das obras. Ressalta-se, por conseguinte, a relação
assimétrica de saber entre enunciador e enunciatário já constituída pela apropriação dos
gêneros médicos e científicos anteriormente citados.
Entretanto, cabe esclarecer que o fenômeno que Sobral (2006) compreende por
parasitismo é tratado, neste trabalho, nos termos das reflexões de Maingueneau sobre as
cenas de enunciação, conforme as considerações já apresentadas sobre o tema no item
anterior. Assim, pretende-se verificar quais são as cenas de enunciação a partir das quais
o discurso de autoajuda para adolescentes se desenvolve, o que deve indicar se esse
discurso se aproxima ou não do discurso de autoajuda psico-cósmica, conforme a
1.2.2. Relações dialógicas
Neste trabalho, compreende-se, como princípio constitutivo da linguagem e,
consequentemente, dos discursos, o dialogismo. Segundo a tradição do pensamento
bakhtiniano sobre linguagem, os discursos são sempre heterogeneamente constituídos,
são produtos da interação de diversas vozes sociais.
Assim, os enunciados são atravessados ou habitados pelas palavras de um outro
e pelos sentidos oriundos de outros lugares discursivos. Também pressupõem,
polemizam, refutam, confirmam, completam outros enunciados, ou seja, são
constituídos como ecos de um já dito em relação ao qual se posicionam. Nas próprias
palavras de Bakhtin (2002):
Um enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social. Ele também surge desse diálogo como seu prolongamento, como sua réplica [...] (BAKHTIN, 2002, p. 86).
Diante do exposto, neste trabalho, analisa-se o discurso de autoajuda para
adolescentes considerando-se as relações dialógicas que estabelece com outros. Não se
trata, entretanto, de identificar procedimentos textuais de citação ou alusão a outros
enunciados no intradiscurso, mas de verificar relações de sentido que o discurso de
autoajuda para adolescentes estabelece com outros discursos, na medida em que
converge ou não com outros dizeres no universo de sentido legítimo desse
posicionamento discursivo.
1.2.3. Enunciação aforizante
Analisando fórmulas, isto é, enunciados curtos, dotados de certas propriedades
que facilitam a sua memorização, Maingueneau (2010) nota que muitos desses
enunciados foram extraídos, quer dizer, destacados de textos, o que leva o autor a
chamá-los de enunciados destacados.
Esses enunciados pertencem a duas classes distintas, conforme o destacamento
do enunciado seja constitutivo ou por extração. Entre os casos de destacamento
constitutivo, estão os provérbios e todas as fórmulas sentenciosas que não são dotadas
de um contexto situacional nem de cotexto original. No outro grupo, encontram-se os
fragmentos extraídos de um texto específico. Segundo Maingueneau, essa extração não
acontece de maneira aleatória, pois alguns fragmentos têm propriedades (por exemplo,
uma forte relação com a temática do texto, o fato de ser enunciado generalizante, etc.)
que favorecem sua extração.
Conforme nota Maingueneau, os enunciados destacados têm um status
pragmático especial, isto é, eles decorrem de um regime de enunciação específico, a que
o autor chama de enunciação aforizante, em oposição à enunciação textualizante.
Na enunciação textualizante, cada gênero do discurso atribui papéis específicos
aos sujeitos envolvidos em sua produção e recepção. No entanto, na enunciação
aforizante, há somente uma dessas instâncias que se dirige a uma espécie de público
universal, ou seja, a enunciação não está orientada a um destinatário ou a um grupo de
destinatários particular. Não há, portanto, a presença de duas figuras enunciativas, pois a
enunciação aforizante tem, nas palavras do autor, “como efeito, centrar a enunciação no
locutor” (MAINGUENEAU, 2010, p. 13).
de linguagem de diversas ordens, tais como argumentar, narrar, responder. A
enunciação aforizante, por sua vez, não se insere em qualquer jogo de linguagem,
exprimindo apenas o pensamento do locutor, aquém de qualquer jogo de linguagem.
No que diz respeito aos planos enunciativos presentes em cada tipo de
enunciação, o autor ressalta que, enquanto diferentes figuras do enunciador, diferentes
status polifônicos, diferentes planos textuais estão imbricados na enunciação
textualizante, há uma perda desta heterogeneidade enunciativa na enunciação aforizante,
ou seja, os planos enunciativos aí se tornam homogêneos.
Outra diferença diz respeito às formas de subjetividade: se um texto implica
diferentes subjetividades vinculadas a suportes e modos de circulação, o mesmo não
ocorre com as aforizações, já que essa forma de enunciação, para o autor, “é uma forma
de dizer puro, quase próxima de uma consciência” (MAINGUENEAU, 2010, p.14).
Quanto à relação com a dimensão extra-verbal, os tipos de enunciação também
contrastam: na enunciação textualizante, a produção verbal é um dentre outros
elementos da comunicação verbal, mas as aforizações pretendem-se ser puras,
excluindo-se dos outros elementos do quadro de enunciação, tais como imagens,
gestualidade, entonações, etc.
Além disso, ainda que as enunciações textualizantes não sejam passíveis de
memorização, as aforizações o são, implicando uma constante possibilidade de
atualização, ou seja, elas formam, segundo o autor, “uma fala viva sempre disponível
[...] como parte de uma repetição constitutiva” (MAINGUENEAU, 2010, p. 14).
Tendo em vista as características citadas, Maingueneau afirma que a enunciação
aforizante implica um ethos específico, isto é, o ethos do sujeito que está no alto, do
indivíduo autorizado, que está em contato com uma fonte transcendente. Esse sujeito,
se coloca como responsável, afirma valores e princípios perante o mundo, dirige-se a uma comunidade que está além dos alocutários empíricos que são seus destinatários. Na tradição filosófica, o Sujeito, o sub-jectum, está situado abaixo, ele é o que não varia, o que escapa à relatividade dos contextos; Sujeito pleno, o aforizador pode responder por aquilo que diz através da pluralidade de situações de comunicação. (MAINGUENEAU, 2010, p.15)
Maingueneau (2010) também nota que a descontextualização das aforizações
pressupõe uma opacificação de seu sentido, que exige um trabalho interpretativo, no
qual dizendo X, o locutor implica Y, onde Y pode ser um enunciado genérico de valor
deôntico (cf. MAINGUENEAU, 2010, p.15). Assim, o conteúdo do enunciado deve ser
entendido como uma verdade, que prescinde de negociação.
Brunelli (2011) observa que a ocorrência de enunciados aforizados é comum em
obras de autoajuda, o que também se constata numa das obras do córpus. Ao analisar
enunciados aforizados em livros de autoajuda voltados à temática profissional e de
negócios, a autora nota que tais enunciados são dotados de traços que lhes conferem
uma grande independência de contextos, o que lhes permite, aparentemente, a inserção
em outros contextos sem prejuízo ou alteração de sentido. Quanto a esses enunciados, a
autora afirma:
a) trata-se de enunciados impessoais, e os eventuais pronomes empregados são termos
referencialmente vazios, ou ainda, são pronomes de percurso que não permitem a
identificação de um único objeto, mas levam o interlocutor a percorrer todos os
indivíduos a que ele possa se referir;
b) em função da sua impessoalidade, podem passar da impessoalidade à pessoalidade e
vice-versa;
c) não apresentam dêiticos, sejam eles espaciais ou temporais e tampouco alguma
representam, e não a um único referente específico ligado à situação de comunicação".
Com essas características, a autora conclui que se trata de enunciados genéricos
que levam o interlocutor a uma inferência que contenha um universal (como sempre,
jamais, todo, tudo, nenhum, ninguém, etc.). A esse respeito, afirma:
(...) nesses enunciados, a ausência de valor referencial específico para os seres mencionados é fundamental, pois nunca se trata de especificidade, mas de universalidade. Isso também é válido para os enunciados destacados metafóricos, cujas expressões, ao constituírem uma metáfora, perdem seu sentido próprio e específico, levando à inferência de uma verdade universal, expressa no presente genérico. (BRUNELLI, 2011, p. 131-132)
Segundo Brunelli (2011), esses enunciados também estão vinculados a valores
imperativos, mesmo se seus verbos estiverem no presente do indicativo antecedidos de
sintagma nominal na terceira pessoa. Em outros termos, esses enunciados expressam
valores deônticos oriundos de um indivíduo autorizado e, como verdades universais,
não podem ser questionados.
1.2.4. Definições e explicações
No discurso de autoajuda para adolescentes é alta a frequência de definições e de
explicações. Para o tratamento desse aspecto discursivo, retomam-se as reflexões de
Charaudeau (2010) a respeito do modo de organização descritivo do discurso.
Descrever, para o autor, é uma atividade de linguagem que vê o mundo por um olhar
que dá existência aos seres, atribuindo-lhes nomes, localizando-os e qualificando-os
para particularizá-los. Assim, os componentes do modo descritivo são o Nomear, o
dar existência a um ser (qualquer que seja sua classe semântica) através de uma dupla operação: perceber uma diferença na continuidade do universo e simultaneamente relacionar essa diferença a uma semelhança, o que constitui o princípio da classificação. (CHARAUDEAU, 2010, p.112)
Essa classificação, todavia, não equivale a um rótulo dos seres do mundo, mas
depende dos modos pelos quais o sujeito que classifica constrói e estrutura a visão do
mundo. Este sujeito, por sua vez, ainda da perspectiva do autor, é condicionado pelos
traços culturais de seu grupo social. Nessa medida, descrever "consiste em identificar os
seres do mundo cuja existência se verifica por consenso (ou seja, de acordo com os
códigos sociais)” (CHARAUDEAU, 2010, p.113).
A determinação de um ser em função de seu posicionamento em um lugar
espacial e temporal caracteriza o que Charaudeau denomina de componente de
Localização-Situação do modo descritivo de organização discursiva. Ou seja, neste
componente, trata-se de atribuir ao ser características do tempo e do espaço que ocupa
no mundo ao qual é feita sua referência. O autor destaca que esse recorte
espaço-temporal também depende de como um dado grupo social vê ou projeta o mundo.
Qualificar, por sua vez, consiste na identificação de traços internos ou
constitutivos aos seres, especificando-os. As explicações e as definições são fenômenos
descritivos que constituem o componente qualificar. Diferenciando-se do ato de
denominar que estrutura o mundo e os seres de forma não-direcionada, o ato de
qualificar promove uma orientação na atribuição de um aspecto particular e próprio aos
seres do mundo. Mais uma vez, Charaudeau (2010) reafirma que mesmo as relações
entre seres e qualificações obedecem, em alguma medida, às normas estabelecidas por
qualificar é, então, uma atividade que permite ao sujeito falante manifestar seu imaginário, individual e/ou coletivo, imaginário da construção e da apropriação do mundo [..] num jogo de conflito entre as visões normativas impostas pelos consensos sociais e as visões próprias ao sujeito. (CHARAUDEAU, 2010, p.116)
No que concerne às funções que o autor considera para o modo descritivo, o que
se destaca é a construção de “uma imagem atemporal do mundo”. Ou seja, pelo uso do
modo descritivo, nomeações, localizações e qualificações são dadas como imutáveis e
mesmo independentes de contextos sociais, históricos e culturais, como já dados,
inalteráveis por valores ideológicos das situações e dos atores sociais pelos quais são
construídas. Para o autor, o descritivo opera ainda em uma expansão para fora do tempo
e fixa lugares e épocas, maneiras de ser e de fazer das pessoas, características dos
objetos.
Pormenorizando os procedimentos de configuração das descrições, Charaudeau
(2010) os associa a cada componente anteriormente mencionado. Assim, ao componente
nomear se vinculam procedimentos de identificação; ao componente localizar,
procedimentos de construção objetiva do mundo e ao componente qualificar,
procedimentos de construção objetiva ou subjetiva do mundo.
Os procedimentos de identificação, ou seja, aqueles referentes ao processo de
dar existência aos seres, podem fazer com que tais seres pertençam a um dado grupo ou
podem ainda individualizá-los. O primeiro caso é denominado pelo autor de
identificação genérica; o segundo, identificação específica.
Os procedimentos de construção objetiva do mundo, referentes tanto ao
componente localizar-situar quanto ao qualificar do modo descritivo, "consistem em
construir uma visão de verdade sobre o mundo, qualificando os seres com ajuda de
traços que possam ser verificados por qualquer outro sujeito além do sujeito falante."
como um imaginário social compartilhado que representa o mundo conforme o que se
acredita ser verdade. Assim, o mundo "objetivamente" representado depende de um
ponto de vista do mundo compartilhado pelos membros de uma comunidade social e de
um consenso sobre o estado do mundo (qualidades, quantidades, funções). Esse tipo de
procedimento, segundo o autor, encontra-se em textos cujas finalidades são a de definir
e a de explicar (em nome de um saber) e as de incitar ou contar (em nome de um
testemunho).
Por fim, os procedimentos de construção subjetiva do mundo são empregados
pelo sujeito falante para descrever seres e comportamentos pela sua própria ótica, que
não é imediatamente ou necessariamente verificável. Trata-se, conforme Charaudeau
(2010), da representação do imaginário pessoal do sujeito sobre o mundo.
Outro aspecto importante do modo descritivo diz respeito aos efeitos ligados ao
seu emprego: o efeito de saber, o efeito de realidade ou ficção, o efeito de confidência e
o efeito de gênero. Desses efeitos, para o desenvolvimento da análise da obra em
questão, destacam-se os dois primeiros.
Segundo Charaudeau (2010), o emprego recorrente de identificações e de
qualificações fabrica para o descritor uma imagem de sabedoria (homem de ciência,
perito, técnico), representando-o como aquele que conhece o mundo em pormenores
(observando-o sistematicamente ou estudando-o cientificamente) e que usa esse saber
para comprovar a veracidade de seu dizer.
O uso de descrições pode também contribuir para a construção de um ponto de
vista sobre o mundo de forma realista ou ficcional; na ficcional, há a interferência da
subjetividade do descritor; na realista, o descritor projeta de si a imagem de um sujeito
1.2.5. Os tons do discurso
Conforme já dito, o ethos do discurso está relacionado à vocalidade dos textos,
que pode se manifestar numa multiplicidade de tons. Desse modo, a observação dos
tons das obras do córpus deve contribuir para análise do ethos do discurso de autoajuda
para adolescentes.
Em artigo em que analisa os tons encontrados em programas humorísticos de
televisão, Duarte (2005) apresenta as principais propriedades que são em geral
pressupostas quando popularmente se utiliza o conceito de tom; posteriormente, reflete
sobre o conceito, adotando, para tanto, o ponto de vista semiótico. Segundo a autora, os
seguintes aspectos caracterizam o que em geral se pressupõe a respeito de tom de um
enunciado ou de um texto (considerando-se a análise que realiza de comentários sobre
tom feitos por diversas fontes): a correspondência entre o tom e determinado efeito de
sentido, o fato de que o tom é conferido ao discurso (lhe é acrescentado), a exigência de
que cada texto empregue um tom, o fato de que o conteúdo do tom pode manifestar
desde estados da alma a comportamentos e de que a expressão do tom se dá na/pelas
linguagens, a existência de certos mecanismos de conteúdo e de expressão que
manifestam um tom ao texto, o desempenho de funções estratégicas pelos diferentes
tipos de tons, a identificação do enunciador (e de seus estados de alma, de seus atos de
fala) pelo emprego de determinados tons, a graduação ou ênfase de determinados tons e
a caracterização dos gêneros, que implica também um tom específico para quem
enuncia.
Para Duarte, o conceito de tom define-se nos seguintes termos: "propriedade
inflexiva que se confere ao modo de expressar-se em diferentes linguagens" (DUARTE,
força ilocutória ou perlocutória do que é enunciado, mas se vincula ao que a autora
denomina de processo de tonalização, ou seja, um conjunto de procedimentos
discursivos que visam atribuir ao enunciado diferentes graus de modalização e
passionalização em função das condições de produção. É pela tonalização, então, que o
tom principal do discurso se articula (pelo processo de modulação) a outros tons e
diferentes nuances de um mesmo tom se graduam. Trata-se, pois, de compatibilizar e
harmonizar os diferentes tons que se atrelam ao tom principal do texto.
Ainda sobre a noção de tom e a sua relação com o enunciador, a autora afirma
que
o tomconfere, então, ao discurso produzido um modo de dizer que se projeta diretamente sobre os sujeitos da comunicação - enunciador e enunciatário -, operando sobre o conhecer para fazer sentir e sobre o
sentir para fazer conhecer; sobre o dizer para fazer fazer e sobre o
fazer para fazer dizer. (DUARTE, 2005, p.4, grifos da autora).
Segundo a autora, o tom pode dizer respeito, em relação aos enunciados em que
se manifesta, às seguintes nuances: de andamento (lentidão vs. vagareza), de atitude
(suavidade vs. rispidez), de composição (simplicidade vs. complexidade), de densidade
(dispersão vs. concentração), de disposição (sobriedade vs. ludicidade), de espessura
(superficialidade vs. profundidade), de intensidade (gravidade vs. agudez), de
temperatura (frieza vs.calorosidade), de posição (proximidade vs. distância), de rigidez
(flexibilidade vs. inflexibilidade), de ritmo (regularidade vs. irregularidade), de
saturação (pureza vs. opacidade), de textura (lisura vs. aspereza), de timbre (mesmice vs.
diferenciação), de tratamento (formalidade vs. informalidade), de valor (claridade vs.
obscuridade), de volume (peso vs. leveza) etc.
Por fim, cabe ressaltar uma última observação da autora, que concerne à relação
entre os tons e os tipos de discursos. Conforme afirma Duarte, "as práticas sociais e
complementares adequados a cada formação discursiva agregando, às suas regras de
formação, disposições concernentes ao tom” (DUARTE, 2005, p.5).
As reflexões de Duarte (2005) a respeito dos tons do discurso auxiliam na
análise de uma das obras do córpus (WEINBERG, 2007) em que há flutuação de tons
assumidos pelo enunciador. Desse modo, essas reflexões fundamentam a análise dos
efeitos de sentido dessa flutuação para a caracterização da cenografia e, mais
especificamente, para a análise do ethos da obra.
1.2.6. Modalização autonímica
Neste subitem, recuperam-se as reflexões de Authier-Revuz (1998) a respeito da
modalização autonímica, fenômeno enunciativo observado na análise.
Seguindo uma perspectiva enunciativa de descrição da categoria, Authier-Revuz
(1995) caracteriza a modalização autonímica como fenômeno enunciativo engendrado
no fio do discurso em que o sujeito enunciador delimita as supostas fronteiras
discursivas entre si mesmo e o seu Outro, desdobrando seu discurso por meio de
procedimentos que introduzem comentários sobre sua própria fala, ou seja, trata-se de
uma auto-representação do dizer no próprio fio enunciativo. Convém ressaltar que a
delimitação dos discursos de si e dos Outros por este sujeito manifesta, ou melhor,
evidencia a ilusão de que ele é um sujeito uno, ideologicamente homogêneo, e não
heterogeneamente constituído por estes Outros dos quais pretende se desvincular.
Assim, esta categoria enunciativa permite analisar o embate do sujeito enunciador para
constituir-se em determinado lugar discursivo e afastar-se daqueles que ele supõe serem
seus "Outros", o que se revela como foco de investigação relevante para a análise do