P AR ALI S I A F A CI A L P E R I F É R I CA, P O LI N E U R I TE
E D O E N ÇA D E CH A GA S CR ÔN I CA
J. FORTES-RÊGO *
Independentemente de uma var iação geogr áfica — fato incontestável — a
paralisia facial periférica distribui-se universalmente, apresentando-se
freqüen-temente como uma das condições mais presentes na prática neurológica
ambu-la t ór ia ^ . A forma predominante estatisticamente é aqueambu-la par a a qual nenhum
fator etiológico é encontrado, chamada "idiopática" ou "de Be ll", que pode
atingir até 93,62% de uma casuística glob a l*. Como tais epítetos mostram-se
por demais desgastados pelo uso inadequado que deles faz a quase totalidade
dos autores que se ocupam do assunto, propusemos a substituição de ambos
pelo termo
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBAisolada tomado aqui em dupla acepção: o acometimento do nervo
facial é a única alteração perceptível ao exame neurológico, e não há
conco-mitância de nenhuma outra entidade nosológica — focalizada ou sistêmica —
de qualquer et iologia?. Não obstante o absoluto predomínio da forma
isolada,
dezenas de situações são incriminadas, na literatura especializada, como agentes
etiológicos da par alisia facial per ifér ica, que passa a significar , em tais
even-tualidades, mero sinal neurológico de um contexto sintomático mais amplo.
A título de ilustração cabe citar as publicações de Dr achm anS Pope Junior e
Kenan
10
e May e Lucente^ , nas quais são enumeradas, respectivamente, 40,
20 e 19 causas distintas de par alisia facial periférica.
As polineurites são outra patologia assaz freqüente na pr ática neurológica.
Duas entidades mórbidas sobressaem aqui como fatores etiológicos: o alcoolismo
crônico e o diabete melito. Além destas, muitas outras são responsabilizadas,
destacando-se as carências vitamínicas (de causas outras que não o alcoolismo),
a insuficiência renal crônica e as colagenoses. Entre nós, e a despeito da
grande resistência que
ainda é oferecida pela grande maioria dos que lidam
com o tema, outro agente etiológico — de enorme importância — seria a
doença de Ch agas cr ônica, que propicia o surgimento de uma polineurite mista
com predomínio do componente motor
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA6, 0 que nos levou a propor uma r
eclas-sificação para a tripanosomíase com a inclusão da forma
neurítica, subdivisão
da forma n e r vos a
8.
A forma nervosa da doença de Ch agas é quase tão antiga quanto a própria
tripanosomíase, desde que nos reportemos aos conceitos originalmente
formu-lados pelo descobridor da m olé st ia
1. Já em 1913 Car los Ch a g a s
2afirmava
ser esta doença "a que talvez provoque, em patologia humana, o maior número
de afecções or gânicas do sistema nervoso centr al" e qüe, naquela época,
pos-suía "mais de 200 observações desse t ip o". Apesar da atenção inicial do ilustre
cientista haver-se voltado particularmente para esse aspecto, parece-nos que
Vi e i r a
1 2situaria bem a questão ao escrever: "No que se refere à
sintoma-tologia (da forma nervosa cr ôn ica), queremos chamar a atenção para um ponto
que nos parece de importância. iNa nossa experiência, as manifestações
des-critas por Ch agas são as menos freqüentes, constituindo quase um achado de
exceção". Voltando-se especificamente para a sintomatologia polimorfa, de
"cunho neur ótico", que freqüentemente é apresentada pelos portadores da forma
crônica da moléstia de Ch agas, Vieir a u interpretou-a fisiopatologicamente e
reconheceu, nesse conjunto de sintomas aparentemente sem um substrato
anatô-mico, forma clínica bem-individualizada, que denominou "for ma
neurovegeta-t i v e .
O objetivo superior desta publicação é — em relatando o caso de uma
paciente que apresentou paralisia facial periférica, polineurite mista e
sintoma-tologia "va ga " aparentemente de natureza psicológica, na vigência de doença
de Ch agas crônica — contribuir par a que se vençam as barreiras er igidas na
tr ajetór ia para o reconhecimento "oficial" da forma nervosa crônica da doença
de Ch agas, principalmente no que concerne à subforma
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBAneurítica.
O B S E R V A ÇÃ O
E H M ( Re g . 2 1 4 .8 5 9 ), g o i a n a , 4 2 a n o s , c a b e l e i r e i r a , c a s a d a , e n c a m i n h a d a à Ne u r o
-l o g i a d o Ho s p i t a -l Un i v e r s i t á r i o d e B r a s i -l i a , e m 0 8 .1 1 .8 3 , p o r m é d i c o d o P o s t o d e Sa ú d e
d a Ce i l â n d i a ( D F ) , p o r s e r p o r t a d o r a d e p a r a l i s i a fa c i a l p e r i fé r i c a d i r e i t a q u e s e
i n s t a l o u s u b i t a m e n t e e m 0 3 .0 5 .8 3 e q u e m e l h o r o u a p e n a s p a r c i a l m e n t e , a p e s a r d e t r a t a
-m e n t o e s p e c i a l i z a d o p r o n t a -m e n t e i n s t i t u í d o ( fi s i o t e r a p i a e 25 a -m p o l a s d e Si n a x i a l ) .
A p a r a l i s i a fo i a c o m p a n h a d a , n o s p r i m e i r o s d i a s , d e le v e s e n s a ç ã o d e "d o r m ê n c i a " n a
h e m i fa c e c o r r e s p o n d e n t e . D e z d i a s a n t e s d a i n s t a l a ç ã o d a ( paralis ia t e r i a a p r e s e n t a d o
"l e s ã o " n o o u v i d o e x t e r n o e o u v i d o m é d i o d i r e i t o s , a c o m p a n h a d a d e d o r l o c a l e fe b r e ,
h a v e n d o o q u a d r o s i d o c l i n i c a m e n t e i n t e r p r e t a d o c o m o h e r p e s z o s t e r . Co i n c i d i n d o co m
o s u r g i m e n t o d a p a r a l i s i a , p a s s o u a s e n t i r "t o n t u r a " ( s e m c l a r o c o m p o n e n t e v e r t i g i n o s o ) ,
d e f o r m a "q u a s e c o n t í n u a ", q u e s e m o s t r a v a m a i s o u m e n o s e s t a c i o n a r i a n o t e m p o ,
i n d i fe r e n t e a a l g u n s t r a t a m e n t o s m é d i c o s e n s a i a d o s . N ã o h a v i a a n t e c e d e n t e ( p e s s o a l
o u fa m i l i a r ) d e p a r a l i s i a fa c i a l , d i a b e t e , a l c o o l i s m o o u e p i l e p s i a . O e x a m e n e u r o l ó g i c o
m o s t r a v a u m a p a c i e n t e a n s i o s a , m u i t o q u e i x o s a , s e m c o n s e g u i r m o v i m e n t a r o m ú s c u l o
fr o n t a l d i r e i t o e c o m d i m i n u i ç ã o d a m o t i l i d a d e n o o r b i c u l a r d a s p á l p e b r a s e s uipe rciliar
c o r r e s p o n d e n t e s , s i n a l d o s c í l i o s e a b o l i ç ã o d o r e fl e x o n a s o p a l p e b r a l ; e x i b i a m o v i
-m e n t o s a u t o -m á t i c o s a s s o c i a d o s n a -m e t a d e d i r e i t a d a fa c e a o o c l u i r o s o l h o s o u q u a n d o
m o v i m e n t a v a a c o m i s s u r a l a b i a l d i r e i t a ; h a v i a , a d e m a i s , a b o l i ç ã o d o s r e fl e x o s a q u i l e u s
e h i p o e s t e s i a t á t i l "e m b o t a s "; o r e s t a n t e d o e x a m e e s t a v a n o r m a l . Ex a m e s c o m p l e
-m e n t a r e s ( a p e n a s o s d o i s q u e p r o p i c i a r a -m a l t e r a ç ã o ) — M G e I-m u n o fl u o r e s c ê n c i a p a r a
Ch a g a s r e a g e n t e s ; E E G c o m "a t i v i d a d e p a r o x í s t i c a l e n t a d e p r o je ç ã o n a r e g i ã o t e m p o r a l
a n t e ri o r e s q u e r d a . Tr a t a m e n t o — Ex e r c í c i o s fa c i a i s , v i t a m i n a s B I , B 6 e B1 2 p o r v i a
m e s e s h o u v e m e l h o r a s u b je t i v a , e n q u a n t o o d é fi c e m o t o r m o s t r a v a s e i n a l t e r a d o . P o s
-t e r i o r m e n -t e a p a c i e n -t e i n -t e r r o m p e u o u s o d o b a r b i -t ú r i c o , d i z e n d o -s e p i o r e p e d i n d o
p a r a s e r e n c a m i n h a d a à Ga s t r e n t e r o l o g i a p o r c o n s i d e r a r s u a s q u e i x a s o r i u n d a s "d o
e s t ô m a g o ".
CO M E N T Á R I O S
Da análise da obser vação, três diagnósticos podem ser estabelecidos: ( a)
paralisia facial periférica direita r esidual; (b) polineürite mista; (c) síndrome
psicofuncional. Estes diagnósticos, contudo, não devem bastar -se, pois nada
mais são que expressões topogr áficas do envolvimento do sistema nervoso a
diferentes níveis. Destar te, deve-se buscar um diagnóstico mais ger al, que
represente a base de tudo, a unidade patológica. Nesse sentido, orientamos
o raciocínio par a a doença de Ch agas, fundamentando-nos nos seguintes pontos:
(1) polineürite em paciente procedente de área endêmica, na qual ficaram
excluídas as causas mais conhecidas; (2) a par alisia facial não pôde ser
catalogada como
zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBAisolada, pela própria definição desta; o seu caráter sintomático
estava reforçado ademais pela evolução insatisfatór ia; dissociá-la
ecologica-mente da polineürite não pareceria atitude prudente ou lógica, uma vez que
as doenças causador as de uma soem sê-lo também da outr a, a exemplo do
diabete, de carências vitaminicas e da lepr a; (3) as manifestações psíquicas que
compunham o quadro clínico ajustavam-se sem esforço à conceituação de
sinto-matologia de "cunho neur ótico", configurando assim a forma "neur ovegetativa"
da doença de Ch a ga s. Seguiu-se eritão a etapa laboratorial da investigação,
cujos resultados foram confirmatórios. Por oportuno deve-se frisar que mesmo
a alteração eletrencefalográfica (que motivou uma prova terapêutica com
feno-bar bital) possa quiçá ser inserida no quadro ger al da doença básica, embora
as opiniões no particular sejam algo desencontradas, como se depreende do
estudo de Far ia 5. De qualquer modo, o caráter contínuo da tontura e a
refratariedade à ação quase sempre eficiente do barbitúrico depõem contra a
existência de epilepsia concomitante.
A título de conclusão, calcados na expressão sintomatológica da paciente
e na firme convicção da realidade do acometimento do sistema nervoso na
tripanosomíase — não só pelos dados ainda algo dispersos da literatura mas
principalmente com supedâneo na própria experiência — achamos que o
diag-nóstico de forma nervosa da doença de Ch a ga s impõem-se no presente caso,
traduzindo-se em duas subfor mas:
neuritica (craniana e periférica) e
neurove-getativa.
R E S U M O
S U M M A R Y
Peripheral facial paralysis, m ixed polyneuritis and chronic Chagas' disease.
The author reports the case of a 42-year-old woman who developed right
peripheral facial par alysis and mixed polyneuritis in the course of an
undiag-nosed Ch agas' disease. The clinical diagnosis could be confirmed by sorological
reactions for Ch agas' disease. A likely relationship between chronic Ch agas'
disease, peripheral facial par alysis and mixed polyneuritis is discussed.
R E F E R Ê N C I A S
1 . CH A GA S , C. — As p e c t o c l í n i c o g e r a l d a n o v a e n t i d a d e m ó r b i d a p r o d u z i d a p e l o Sc h i z o t r y p a n u m c r u z i . ( No t a p r é v i a .) B r a s i l - Mé d i c o 2 4 :2 6 3 , 1910.
2 . CH A GA S , C. — Le s fo r m e s n e r v e u s e s d 'u n e n o u v e l l e t r y p a n o s o m i a s e ( Tr y p a n o s o m a c r u z i ) i n o c u l é p a r Tr y a t o m a m e g i s t a . No u v . Ic o n o g r . Sa l p ê t r i è r e 2 6 :1 , 1913. 3 . D R A CH M A N , D . A. — B e l l 's p a l s y . A n e u r o l o g i c a l p o i n t o f v i e w . Ar c h . Ot o l a
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4 . E L - E B I A R Y , H . M. — Fa c i a l p a r a l y s i s : a c l i n i c a l s t u d y o f 580 c a s e s . Rh e u m . P h s y . Me d . 1 1 :1 0 0 , 1971.
5 . F A R I A , M. A. M. — As s o c i a ç ã o e n t re i n fe c ç ã o c h a g á s i c a e s í n d r o m e s e p i l é p t i c a s . Te s e . Sã o P a u l o , 1972.
6 . F O R T E S - R Ê GO , J . — P o l i n e u r o p a t i a s c h a g á s i c a s . Ar q . Ne u r o - P s i q u i a t . ( Sã o P a u l o ) 3 7 :1 6 5 , 1979.
7 . F O R T E S R Ê GO , J . — P a r a l i s i a fa c i a l p e r i fé r i c a i s o l a d a : u m a c o n d i ç ã o c o n t r o -v e r s a . D i p l o m a t a Ed i t o r a . Br a s í l i a , 1981. Di s t r i b u í d o p e l a Ed i t o r a P e d a g ó g i c a e Un i v e r s i t á r i a - E. P . U . , Sã o P a u l o .
8 . F O R T E S R Ê GO , J . ; M A CE D O , V. O. & P R A T A , A. — Al t e r a ç õ e s n e u r o l ó g i c a s p e r i -fé r i c a s n a d o e n ç a d e Ch a g a s c r ô n i c a . Ar q . Ne u r o - P s i q u i a t . ( Sã o P a u l o ) 3 8 :4 5 , 1980.
9 . MA Y, M. & L U CE N T E , F . E . — B e l l 's p a l s c a u s e d b y b a s a l c e l l c a r c i n o m a . J. a m e r . m e d . As s o c . 2 2 0 :1 5 9 6 , 1972.
1 0 . P O P E Jr . , T . H . & K E N A N , P . D . — B e l l 's p a l s y i n p r e g n a n c y . Ar c h . Ot o l a r y n g o l . 8 9 :9 3 0 , 1969.
1 1 . V I E I R A , C. B . — Ma n i fe s t a ç õ e s p s í q u i c a s n a fo r m a c r ô n i c a d a m o l é s t i a d e Ch a g a s , e x e m p l o d e h i p e r a t i v i d a d e o r g â n i c a . Re v . g o i a n a Me d . 1 0 :1 2 7 , 1964.
1 2 . V I E I R A , C. B . — A fo r m a n e r v o s a c r ô n i c a d a d o e n ç a d e Ch a g a s v i s t a p e l o c l í n i c o g e r a l . Re v . g o i a n a Me d . 1 2 :3 1 , 1966.
1 3 . V I E I R A , C. B . — Ma n i fe s t a ç õ e s c l í n i c a s d a d e s n e r v a ç ã o d a d o e n ç a d e Ch a g a s . In J. Ro m e u Ca n ç a d o ( e d . ) : D o e n ç a d e Ch a g a s . B e l o Ho r i z o n t e , 1968.