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A organização e o novo conceito de capital no capitalismo dos profissionais

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TEXTO PARA DISCUSSÃO 279•MAIO DE 2011• 1

Os artigos dos Textos para Discussão da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas são de inteira responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião da

FGV-EESP. É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos, desde que creditada a fonte.

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A organização e o novo conceito de capital

no capitalismo dos profissionais

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Capítulo do livro cuja redação está sendo terminada, Capital, Organização e Crise Global. Maio de 2011.

Abstract. Modern societies cannot anymore be just defined as classical or bourgeois

capitalism. Since the emergence of a second relation of production and a third social class in capitalist societies, they are mixed societies where two forms of property – capital and organization – are present. That is why modern capitalism is not anymore classical or bourgeois capitalism, but a mixed form that we call professionals’ capitalism or knowledge capitalism or technobureaucratic. In this paper I define the new relation of production that we call “organization”. As to capital, I discuss the transformation of its definition as capitalism changed historically.

Palavras-chave:capitalismo, capitalismo dos profissionais, capital, organização Classificação JEL: N4, O1

Como podemos pensar em um capitalismo “puro” definido pela propriedade privado dos meios de produção ou pelo capital, podemos pensar em uma sociedade puramente tecnoburocrática na qual desaparece o capital e resta apenas a organização ou a propriedade coletiva dos meios de produção. Em uma sociedade mista,

tecnoburocrático-capitalista, ou seja, no capitalismo dos profissionais as duas formas de propriedade coexistem. Neste trabalho quero discutir essas duas formas de

propriedade ou de relação de produção, mas antes apresentarei alguns conceitos básicos.

Conceitos básicos

O capitalismo e a modernidade nasceram da revolução capitalista que se completa quando a formação do Estado-nação se consuma e a revolução industrial torna o desenvolvimento econômico auto-sustentado, e do Iluminismo que muda a visão do homem sobre a história ao conceber a ideia de progresso. A formação do Estado-nação é sinônima ou corresponde à “revolução nacional” ou à “revolução

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do Estado-nação” é mais adequada porque define um longo processo de afirmação nacional, enquanto as outras duas identificam melhor o mesmo fenômeno nos países retardatários que, para realizar sua revolução capitalista, precisaram de uma revolução para enfrentar o imperialismo dos países ricos associado a suas elites dependentes.

Meu objeto não é o capitalismo clássico que, nos países hoje ricos resultou da revolução capitalista, nem no sistema estatal em que se transformou no passado a União Soviética, e sim o capitalismo dos profissional ou tecnoburocrático ou do conhecimento – a forma de sociedade realmente existente hoje nos países ricos e nos países de renda média. Trata-se de uma formação social mista, porque contém elementos de dois tipos de sociedades ou modos de produção: o capitalismo e o estatismo (que pode também ser denominado sociedade estatal, ou sociedade tecnoburocrática). Enquanto no capitalismo a relação de produção fundadora é o capital – a propriedade privada dos meios de produção – no estatismo é a

organização: a propriedade coletiva da organização pela classe tecnoburocrática. A designação “capitalismo dos profissionais” assinala que estou interessado em saber como se organizam as sociedades contemporâneas ou a modernidade, qual o papel das normas sociais informais, das normas formais do Estado, e do mercado na

coordenação dessas sociedades, e qual o papel das classes sociais na distribuição do poder e do privilégio em seu seio. Poderia chamá-lo de “capitalismo pós-industrial” se quisesse chamar a atenção para seu aspecto tecnológico e assinalar o fato de que os países ricos vêm se desindustrializando desde os anos 1980 enquanto aumenta o papel dos serviços tecnologicamente sofisticados. Poderia chamá-lo “capitalismo do

conhecimento” se quisesse dar ainda mais ênfase do que já dou ao papel do progresso técnico no capitalismo atual relacionado com a revolução da tecnologia da informação e da comunicação. Na verdade, o conhecimento se tornou o fator estratégico de

produção e deu poder a seus detentores – os profissionais – na virada do século XIX para o século XX. É também nesse momento que a unidade básica de produção deixa de ser familiar e passa a ser a organização. Sem dúvida a revolução da tecnologia da informação e da comunicação é extraordinária do ponto de vista tecnológico e levou a um aumento extraordinário da quantidade de informação disponível, mas não

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mudança nas relações de produção, e, portanto, não deram origem a uma nova classe, enquanto que a revolução organizacional mudou a natureza do capitalismo: tornou-o misto, tecnoburocrático-capitalista.

Denomino a classe social que compete com a classe capitalista no comando das sociedades contemporâneas classe média profissional ou classe tecnoburocrática. Outras denominações existentes na literatura sociológica são classe burocrática, nova classe média, classe média assalariada, e nova classe de serviços, mas as duas

expressões sinônimas que utilizo me pareceram mais adequadas; a primeira porque indica um tipo geral de especialista ou de administrador que usa seu conhecimento para dirigir e assessorar as organizações burocráticas, a segunda porque sugere a combinação do burocrata clássico com o técnico ou especialista moderno. A classe profissional é uma sempre uma classe média, porque, ao contrário do que acontece com um capitalista médio que quando fica rico ascende socialmente dentro da mesma classe, o profissional que se torna rico – o que é cada vez mais frequente – passa a ter capital e a fazer parte da alta burguesia. Ao se tornar rico e continuar ativo o

profissional passa a participar das duas classes. É comum falarmos ou lermos sobre a grande “classe média” que caracteriza as sociedades modernas. De fato, ela é cada vez maior, mas devemos ter em mente que ali estão duas classes sociais: a pequena e média burguesia e a classe profissional.1

Neste trabalho tecnoburocracia pode também significar a nova classe profissional, mas significa principalmente o poder dessa classe, ou, nos termos de Max Weber (1922), um “sistema de dominação” no qual o poder é legítimo na medida em que é exercido pelo Estado de forma racional-legal e suas origens são ou pretendam ser técnicas ou profissionais. Deste ponto de vista, e diferentemente da análise de Weber, a tecnoburocracia conflita com a democracia. Não uso a palavra “tecnocracia”; apesar de podermos considerá-la sinônima de tecnoburocracia, esta última expressa melhor o sistema que pretendemos definir, porque adiciona aos especialistas ou técnicos, os administradores ou gerentes, e também os profissionais liberais e os professores. De mero estamento burocrático a serviço dos monarcas, no século XX, a classe

profissional assumiu o caráter de uma classe social na medida em que o enorme aumento do número de seus membros implicou um salto qualitativo. Esta nova classe

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exerce em diversos níveis funções técnicas e administrativas de planejamento e coordenação nas grandes organizações burocráticas, públicas ou privadas, que caracterizam os sistemas econômicos contemporâneos.

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Visões alternativas

A revolução capitalista tornou o capital a relação de produção dominante no

capitalismo clássico; a revolução organizacional e a mudança do fator estratégico de produção – ambas consequências da segunda revolução industrial – tornaram a emergência da classe profissional um fenômeno histórico definitivo. Diante desse fato, alguns sociólogos liberais viram a nova classe surgir e o tamanho do aparelho do Estado aumentar e temeram pelo capitalismo: foi o caso de Joseph Schumpeter. Outros, como Adolphe Berle, Daniel Bell, e Ralph Dahrendorf viram na emergência dos profissionais ou dos gerentes uma profunda reorganização do capitalismo que o transformava em uma sociedade mais racional e livre dos conflitos de classe. Um terceiro grupo formado por intelectuais como Wright Mills e John K. Galbraith perceberam também que o capitalismo mudara, surgira uma nova classe, mas isto não significava que a sociedade deixasse de ser uma sociedade de classes. Finalmente, um quarto grupo do qual fizeram parte Bruno Rizzi, Cornelius Castoriadis, Claude Lefort e o George Orwell de A Revolução dos Bichos concentraram sua atenção na União

Soviética e mostraram que a revolução socialista levara a um sociedade

tecnoburocrática e a um sistema político autoritário senão totalitário dominado pela burocracia. Neste livro eu discuto essas abordagens e desenvolvo minha própria interpretação do problema mostrando que o capitalismo não foi superado pelo

estatismo, mas que nele ocorreu uma revolução organizacional que deu origem a uma formação social mista capitalista e profissional.

Estas ideias foram objeto de grande debate nos anos 1970. Marxistas que se

pretendiam ortodoxos recusavam a ideia de uma nova classe não prevista por Marx, seja porque em relação aos países comunistas não aceitavam que estivessem se transformando em estatismo burocrático, seja porque, em relação aos países capitalistas avançados, não admitissem que o capitalismo deixara de ser uma sociedade de classes. Não tinham razão em relação ao primeiro ponto, mas estavam corretos em relação ao segundo. A separação entre a propriedade e o controle nas empresas sem dúvida ocorreu nos Estados Unidos, mas raramente implicou a perda completa de poder dos acionistas.Conforme Maurice Zeitlin (1989: 7-9), “gestão

burocrática não significa controle burocrático; é preciso considerar os centros de

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que vejo o capitalismo profissional como um sistema no qual capitalistas e

profissionais partilham poder e privilégio, ao mesmo tempo em que lutam entre si por maior poder e maior privilégio. São duas classes distintas; não são, como sugere Zeitlin “membros da mesma classe social”. Para que essa afirmação fizesse sentido seria necessário ignorar as raízes históricas dessas duas classes sociais.

Hoje, essa discussão está terminada. É impossível ignorar ou rejeitar a emergência da classe profissional. Continua, entretanto, em aberto a questão do papel político dessa classe social. Sabemos que ela tem uma ideologia, mas daí não é possível deduzir um comportamento político coerente. No passado isto parecia possível; hoje é impossível porque a classe tecnoburocrática é grande e muito diversificada. Seus interesses ora estão relacionados com o Estado e o desenvolvimento econômico, ora com as empresas e seu crescimento. Ora essa classe faz uma coalizão política com os capitalistas ativos ou empresários e com os trabalhadores, como aconteceu em boa parte do século XX, ora se associa a rentistas e ao capital financeiro, como ocorreu nos 30 Anos Neoliberais.

A organização

O século XX foi o século das organizações, foi o século do capitalismo dos

profissionais, foi o século da revolução organizacional, foi o século em que uma nova relação de produção ou de propriedade se define não em substituição mas ao lado do capital: a organização. A distinção fundamental entre o modo de produção

tecnoburocrático e o capitalista pensados em termos puros encontra-se na natureza das relações de produção respectivas, na forma que assume a propriedade em cada

sistema. A propriedade, segundo Marx, é a forma jurídica de que se revestem as relações de produção. Os modos de produção são categorias históricas em que a forma de propriedade ou mais precisamente a relação de produção definida pela propriedade constitui a característica essencial. À propriedade comunitária primitiva, à propriedade antiga, à propriedade asiática, à propriedade germânica, à propriedade feudal, à propriedade capitalista correspondem os respectivos modos de produção. Isto está muito claro nas Grundisse (Rascunhos)nos quais ele trata das formações

pré-capitalistas (1858 vol. 1: 434-444). Se a cada forma de propriedade

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diferentes. A burguesia é a classe dominante em uma sociedade capitalista. A propriedade capitalista é a propriedade privada do capital pela burguesia, que se define como uma classe social específica, historicamente situada a partir do

surgimento do capitalismo, e que desaparece com o advento de um modo de produção tecnoburocrático puro.

Ao modo de produção estatal corresponde a propriedade organizacional ou simplesmente a organização, que pode ser simplesmente definida como a

propriedade coletiva pelos profissionais de cada organização burocrática. Quando

estamos no estatismo, a propriedade dos meios de produção pertence ao Estado, mas o aparelho ou organização do Estado é propriedade de sua alta burocracia. Seu controle dos meios de produção se exerce à medida que seus membros ocupem posições administrativas estratégicas nas organizações burocráticas privadas e nas do Estado. No caso do estatismo puro existe, a rigor, apenas uma organização burocrática – a organização do Estado das quais as empresas estatais são parte. A relação de

produção tecnoburocrática é assim radicalmente diversa da capitalista, na medida que em uma a propriedade é coletiva e na outra, privada, e, no limite, uma é sempre privada, a outra, estatal. Esta distinção torna-se, porém, mais clara se pensarmos em termos de propriedade organizacional. O tecnoburocrata é o profissional que dirige as organizações burocráticas, definidas estas em termos weberianos como sistemas sociais racionais administrados segundo critérios de eficiência. Não apenas o poder, mas também a própria existência do profissional depende da existência concomitante de uma organização burocrática. Na verdade, a organização burocrática antecede à classe profissional, porque historicamente primeiro surgem as organizações

burocráticas ou semiburocráticas sob o controle patrimonial ou capitalista e os burocratas estamentais, e só mais tarde o controle efetivo dessas organizações é assumido pelos profissionais.

O importante, entretanto, é assinalar que, no sistema econômico tecnoburocrático, a organização burocrática surge como um intermediário necessário entre os

profissionais e os instrumentos de produção; o controle sobre a organização

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profissional tem a propriedade ou o controle não dos meios de produção mas da organização burocrática.2

A distinção essencial entre o capitalismo e o modo de produção tecnoburocrático baseia-se, portanto, na natureza diversa das relações de produção. No capitalismo a propriedade é privada e a classe dominante é a burguesia; no estatismo ou sociedade tecnoburocrática a propriedade é coletiva e a classe dominante é constituída pelos profissionais. Há outros tipos de propriedades “coletivas”, expressão que estamos utilizando aqui em oposição à propriedade privada. Temos a propriedade asiática, em que um Estado burocrático-tradicional serve de mediador; temos a propriedade comunal própria da Europa pré-capitalista, coexistente com a apropriação privada feudal.. E teríamos a sociedade socialista, que, no entanto, prefiro não discutir na medida em que entendo o socialismo mais como uma ideologia ou um projeto a ser realizado do que como uma realidade possível no médio prazo.

É esta organização burocrática, por sua vez, que detém a

propriedade dos instrumentos de produção, das mercadorias e do dinheiro necessários para empregar trabalhadores e realizar a produção. Além disso, a organização – a propriedade do profissional sobre a organização burocrática, seu efetivo controle sobre esse sistema social organizado, não é realizado individualmente, como acontecia no capitalismo, mas coletivamente por um grupo de profissionais. No estatismo a propriedade organizacional transforma-se em propriedade estatal. Mas no capitalismo a organização já está presente ao lado do capital, porque as organizações burocráticas estão em toda parte.

A existência da organização no capitalismo dos profissionais se revela sob muitas maneiras. Uma delas é o fato de que os altos executivos das grandes empresas

comerciais e a alta burocracia pública são capazes de definir sua própria remuneração. Nas empresas comerciais, teoricamente isso é atribuição do conselho de

administração, mas muitas vezes esses conselhos são controlados por administradores e não por acionistas. No Estado, os funcionários públicos mais graduados, eleitos e não eleitos, muitas vezes têm um poder semelhante. O fato de os profissionais não deterem a propriedade legal mas, em vez disso, a propriedade coletiva da organização evidentemente reduz sua capacidade de definir seus proventos de modo pleno. Eles

2 Observe-se que a sociedade anônima e a constituição de um grupo crescente de acionistas separados

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precisam constantemente justificar suas ações ou explicar sua remuneração em termos de mercado, enquanto o capitalista está livre para fazer uso de sua propriedade em seu próprio benefício e no de sua família. O mesmo acontece nos sistemas estatais. A “nomenclatura” – o conjunto dos altos profissionais que dominavam a União Soviética – enfrentava forte limitação em sua tentativa de se apropriar do excedente econômico. A propriedade dos profissionais não é herdada, ao contrário da

propriedade capitalista e pré-capitalista. A nova classe média profissional precisa adotar várias estratégias para transmitir suas posições de classe a seus filhos e filhas, enquanto esse processo é relativamente automático no caso das classes capitalistas e sobretudo aristocráticas. Isso significa que a propriedade organizacional é menos definida e menos autoritária do que a propriedade capitalista. Significa que a organização é uma relação de produção que oferece menos estabilidade a seus

proprietários do que o capital. E explica por que a mobilidade social tende a ser maior no capitalismo dos profissionais do que no capitalismo liberal.

O ideal meritocrático – a esperança de que a desigualdade econômica fosse explicada apenas pelo mérito pessoal – era o sonho dos “progressistas” norte-americanos. No capitalismo profissional esse sonho transformou-se em uma realidade não tão ideal.3

3 Lloyd Warner (1953) identifica a mobilidade social com base no mérito “o sonho norte-americano”.

Uso aqui a palavra “progressistas ” para identificar as pessoas de centro-esquerda nos Estados Unidos que, nesse país, se autodenominam “liberais” ao invés de “de esquerda” ou “socialdemocráticos”, provavelmente porque ali a oposição entre liberais e conservadores que caracterizou a política no século XIX continuou a prevalecer na medida em que não surgiu um partido socialista significativo que se transformou em socialdemocrático como ocorreu na Europa.

A remuneração dentro da organização depende da posição relativamente instável ocupada pelo indivíduo. A posição, por sua vez, deriva do monopólio sobre o

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O novo conceito de capital

O capital é a propriedade privada dos meios de produção pela burguesia. Quando

Marx (1867: 885) fala em capital variável e em capital constante, ou quando se refere a capital-dinheiro e a capital-mercadoria, pode-se imaginar que ele esteja dando ao capital um caráter material. Na verdade, o capital, como a própria mercadoria, é para ele sempre um processo e uma relação de produção. Em suas próprias palavras: “o capital não é uma coisa, mas uma relação social entre pessoas, efetivada através de coisas”. Nos Rascunhos Marx (1858: 452) definiu a propriedade como uma relação

social de produção real através da qual os homens tomam posse dos bens materiais, e não como um simples aspecto jurídico da relação de produção. “A propriedade não significa originariamente outra coisa senão o comportamento do homem com suas condições naturais de produção como sendo condições pertencentes a ele, suas, pressupostas juntamente com sua própria existência”. Para Marx, portanto, e ao contrário do que acontece no sistema jurídico moderno, propriedade não se distingue de posse. Propriedade não é o aspecto jurídico, formal, da apropriação, enquanto a posse corresponderia a apropriação de fato. Propriedade é a própria relação de produção, quando se quer dar ênfase, na relação de produção, à apropriação dos bens materiais. Ou, em outras palavras, a propriedade é o elemento essencial e real das relações de produção, na medida em que define socialmente a apropriação dos meios de produção. Por isso, da mesma forma que Marx afirma que para cada modo de produção existe uma respectiva relação de produção, existe também uma

correspondente forma de propriedade. A propriedade possui uma forma comunitária primitiva, ou asiática, ou eslava, ou germânica, ou antiga, ou feudal, ou capitalista, dependendo do caráter das relações de produção.

Não há nenhuma “nominação” nessa forma de compreender a propriedade e relacioná-la com as respectivas relações de produção, mas a simples verificação da interdependência entre os conceitos de modo de produção, relação de produção e propriedade. Não é por acaso que Marx, (1858: 456), utiliza sistematicamente o

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condições de sua produção ou reprodução como algo de seu”. Não podem estar mais claros do que nesse texto, de um lado o caráter de apropriação efetiva da propriedade, e não seu mero caráter jurídico, e de outro a importância crucial do conceito de propriedade para definir os modos de produção. A propriedade capitalista, nestes termos, é o próprio capital, entendido este como relação de produção; é a apropriação privada, pela burguesia, dos meios de produção. A apropriação do capital sobre o trabalho coletivo, que de fato caracteriza as relações capitalistas de produção, só se configura a partir do momento em que o capital se constitui como tal, ou seja, a partir do momento em que o capitalista assume a propriedade privada dos meios de

produção. Nesse momento e concomitantemente, surgem o trabalho assalariado e o trabalhador coletivo na grande indústria, definindo-se então, plenamente, as relações de produção capitalistas. Propriedade privada capitalista, mercado e generalização da mercadoria, trabalho assalariado, mais-valia, trabalhador coletivo, grande indústria, são aspectos interdependentes que, globalmente, irão integrar as relações de produção capitalistas, irão configurar o capital.

Com a revolução organizacional e o surgimento de uma segunda relação de produção no capitalismo dos profissionais o próprio conceito de capital se modificou, assim como a forma de medir o capital. O capital, obviamente, não deve ser confundido com os meios de produção, ou com os “bens de capital”. O capital é a propriedade dos meios de produção. Dentro dessa definição ampla, porém, o conceito de capital vem mudando com o tempo. Para os primeiros economistas clássicos, o capital era o capital circulante, era essencialmente a capacidade de contratar trabalhadores, pagando-os antes que o resultado de seu trabalho pudesse ser vendido no mercado. Para Marx, assim como para os economistas neoclássicos e keynesianos, que viveram em uma época na qual o capital fixo tinha se tornado o fator dominante, enquanto os trabalhadores podiam cada vez mais dispensar o pagamento prévio de seus salários, o capital era principalmente a propriedade de instalações e equipamentos. Mais

recentemente, quando o software prevalece sobre o hardware, ou quando o

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controlar a organização. Ora, a organização não é apenas a organização burocrática, é também a propriedade coletiva dos meios de produção por parte dos profissionais. A organização é para o técnico ou o profissional o que o capital é para o capitalista.

Observemos que quando Galbraith afirmou que o conhecimento técnico estava substituindo o capital como o fator estratégico de produção, ele estava se referindo ao objeto da propriedade do capital, não ao próprio capital. Ele não estava definindo o capital como a propriedade dos meios de produção, mas adotando o sentido mais habitual da palavra – o sentido que identifica o capital com os meios de produção, ou com o capital físico. Concomitantemente com a transformação do conceito de capital na capacidade da organização de gerar lucros ou fluxos financeiros positivos, a forma de medir o capital também mudou. Não estou me referindo à complexa e inconclusiva discussão dos anos de 1960 entre as duas Cambridge (a inglesa e a americana) sobre o valor do capital. A teoria econômica, nesses debates, aproxima-se da metafísica, uma abordagem que não se coaduna com minhas preocupações mais pragmáticas. Refiro-me ao valor financeiro do capital, ao valor das empresas coRefiro-merciais. Na época do capitalismo industrial, até meados do século XX, o capital de uma empresa era medido por seu patrimônio líquido, tal como identificado no balanço patrimonial. Algumas correções poderiam ser feitas, o valor dos ativos intangíveis poderia ser considerado, a avaliação contábil de certos bens de capital poderia ser ajustada, mas, no final, o valor da empresa era a soma dos ativos totais menos o passivo. Enquanto o capital físico era o fator estratégico de produção, medir o valor de uma empresa por seu patrimônio líquido contábil ou pelo retorno sobre o fluxo de caixa não fazia muita diferença. As duas medidas eram relativamente equivalentes, uma vez que se podia presumir que, em condições normais e dada a tendência à equalização das taxas de lucro (provavelmente aliada à lei da oferta e da procura, os dois fundamentos da teoria econômica) o resultado seria quase o mesmo fosse qual fosse a escola de pensamento.

Hoje, não há mais essa visão, e o valor de uma empresa é dado pelo valor descontado de seu fluxo de caixa. Nenhum avaliador sério levará em conta o antigo sistema. O que está por trás de tal mudança? Seria apenas um aperfeiçoamento dos métodos de análise, como presume a teoria econômica não histórica, ou existe algum fato

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de Galbraith é bastante óbvia, e é dupla. Em primeiro lugar, o conhecimento incorporado ao pessoal da organização, ao software e à própria organização é

atualmente o bem mais importante de muitas empresas, e um bem importante para todas. Portanto, não faz sentido medir o valor de uma empresa por seu patrimônio líquido. Em segundo, depois que o conhecimento operacional se tornou estratégico, os analistas do mercado financeiro confirmam diariamente que o valor de uma empresa varia de modo dramático de acordo com a qualidade de sua gestão. Um novo diretor-presidente e um grupo de executivos mais competentes na direção de uma empresa poderão aumentar (ou diminuir se forem incompetentes) seu fluxo de caixa e seus lucros em um período relativamente curto. Nesse caso, o antigo conceito de

patrimônio líquido deixa de fazer sentido, enquanto a medida do valor do capital com base no fluxo de caixa se torna a única possibilidade racional. Assim, na medida em que o fluxo de caixa de uma empresa depende fortemente da qualidade de sua alta direção, o valor do capital depende do conhecimento técnico, organizacional e comunicativo detido por esses administradores.

Isso explica por que a alta direção vê sua renda e seu poder aumentarem diariamente. Explica também por que a influência dos acionistas está sendo sistematicamente reduzida. Explica também por que, de maneira perversa, o abuso e a corrupção, em especial sob a forma de falsos demonstrativos contábeis, como aconteceu com a Enron, tornaram-se tão comuns no capitalismo dos profissionais contemporâneo, levando Galbraith a falar ironicamente sobre a “a economia das fraudes inocentes” – título de seu último livro (2004). A extraordinária remuneração dos altos executivos, sob a forma de bônus e opções sobre ações, depende do desempenho do executivo. Assim, forjar bons resultados é uma tentação a que muitos são incapazes de resistir. Esse papel estratégico da alta direção, somado a uma oferta ainda limitada de administradores ou, mais amplamente, de profissionais, apesar da enorme expansão dos cursos de mestrado em administração de negócios e áreas correlatas, e a

surpreendente aceleração do progresso técnico incorporado na tecnologia da informação digital também explicam a concentração de renda que caracteriza as economias capitalistas contemporâneas desde meados dos anos de 1970.

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que substituíram na direção das empresas. O mecanismo básico utilizado com esse objetivo foi o de relacionar o valor das ações no mercado com sua remuneração pessoal sob a forma de bônus e opções de compra de ações. Os grandes beneficiados, porém, foram os altos profissionais: a relação entre o pagamento recebido pelos CEOs (chief executive officers) nas 500 maiores empresas americanas e o salário médio dos operários aumentou de 30 vezes em 1970 para 570 vezes em 2000 (Glyn 2007: 58). Conforme observaram Holmestron e Kaplan (2003: 13), “é difícil argumentar que essa gente necessitava incentivos tão grandes pagos pelos acionistas. Uma explicação óbvia é a de que eles puderam usar suas posições de poder para obter recompensas excessivas”.

Além de mudar a maneira de avaliar o capital, o capitalismo dos profissionais deu origem à definição de um novo tipo de “capital” – o capital humano. Os dois economistas neoclássicos que formularam essa teoria (Schultz, 1961, 1980; Becker, 1962, 1993) obtiveram o Prêmio Nobel de Economia, e o mereceram porque ao invés de usarem o método hipotético-dedutivo para construir castelos no ar, reconheceram a existência de um novo fato histórico: que o conhecimento tinha se tornado semelhante ao capital físico, e que o investimento em educação é o modo pelo qual os indivíduos “acumulam” esse patrimônio e dele derivam ganhos ou rendimentos. O que eles não enfatizaram foi que a educação de muitos indivíduos, a generalização da educação para toda a sociedade, acarreta externalidades positivas, acarreta desdobramentos e cruzamentos que abrem caminho para a inovação e o aumento da eficiência em nível social, de tal modo que o capital humano total criado é maior do que a soma dos capitais acumulados por cada indivíduo.

Dominação profissional inevitável?

Os argumentos baseados na concepção de uma “necessidade histórica” são perigosos. Frequentemente são fruto de um determinismo ingênuo. Com frequência serviram para justificar ou dar forças ao desejo ao invés explicar a história. Esse foi o caso das previsão vitória inevitável do socialismo, e também a tese mais recente, neoliberal, da convergência de todas as formas de capitalismo para o modelo anglo-saxão. É,

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profissional, as relações entre capitalistas e profissionais são relações de constante cooperação e conflito, seja em termos individuais, seja em termos coletivos, de classes sociais. Da mesma forma que, durante séculos a burguesia competiu com a aristocracia por poder e privilégio, no último século é a classe tecnoburocrática que empreende essa competição tendo como adversário e parceiro a burguesia. Mas essa competição dificilmente levará à dominação profissional. A burguesia tem

necessidade dos profissionais para administrar as grandes organizações empresariais e o grande aparelho do Estado dos nossos dias. Além de detentores do conhecimento técnico e organizacional, e de responsáveis pela racionalidade instrumental ou eficiência, eles são também agentes da segurança – uma segurança que depende da capacidade regulatória das organizações e, principalmente, da instituição

organizacional maior, o Estado, que eles administram. Isto, entretanto, não impede que a classe capitalista reaja contra esse aumento de poder dos profissionais, como vimos acontecer nos 30 Anos Neoliberais. E – o que é mais importante – não impede a resistência democrática ou a demanda por democracia por parte da massa de trabalhadores constituída por operários e empregados.

Não se imagine, portanto, que a dominação tecnoburocrática seja inevitável. A definição do conhecimento técnico e organizacional como novo fator estratégico de produção, aponta nessa direção, mas considerá-la necessária seria cair no

determinismo economicista. A formação social na qual a classe profissional é todo-poderosa – as sociedades tecnoburocráticas que se pretendiam socialistas – revelou-se inviável. Por outro lado, o poder tecnoburocrático continuará a ser contestado não apenas pela burguesia rentista, mas também pelos trabalhadores e pelas classes médias de empregados (o estrato inferior da classe profissional). E o farão em nome da democracia, um regime político para o qual tendem as sociedades modernas tanto quanto nelas tende a aumentar o poder tecnoburocrático dentro das organizações. O governo da sociedade não se confunde com o governo das organizações. Nas

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tornaram sociedades estatistas, tentou-se transformar a sociedade em uma organização, ou seja, em um sistema racional e hierárquico, mas isto não fazia sentido. Nas sociedades modernas a demanda dos cidadãos pelos direitos civis, pelos direitos políticos e pelos direitos sociais é muito forte, resultando nas liberdades civis, na democracia e no Estado social. O Estado moderno é o sistema constitucional-legal soberano, e a administração pública que o garante. A burocracia pública eleita e não-eleita tem um enorme poder sobre o aparelho ou organização burocrática; seu poder sobre a ordem jurídica, porém, é limitado pela democracia.

Não é, portanto, mais possível se pensar a sociedade sem se pensar o Estado e a democracia. No inicio do século XX houve um segundo fato histórico novo que ocorreu aproximadamente ao mesmo tempo em que a revolução organizacional dava origem à classe profissional: a transição da maioria dos países hoje ricos de regimes autoritário-liberais (que garantiam os direitos civis mas rejeitavam o sufrágio

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Referências

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Referências

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