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Vidas de arte-educadoras

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Academic year: 2017

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

ROBERTO CORDEIRO SANCHES

VIDAS DE ARTE-EDUCADORAS

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VIDAS DE ARTE-EDUCADORAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação.

Orientadora: Profª. Drª Maria Helena Menna Barreto Abrahão

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VIDAS DE ARTE-EDUCADORAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação.

Aprovado em_______ de _________________de_________

BANCA EXAMINADORA:

Profª.Drª. Maria Helena Menna Barreto Abrahão

_________________________________________________ Profª.Drª. Maria Inês Côrte Vitória

_________________________________________________ Prof.Dr. Wolney Honório Filho

_________________________________________________ Profª Drª Dinorá Moraes Fraga

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Aos meus pais, pela confiança no meu projeto, e pela dedicação nos momentos

dificeis da caminhada. Eles compuseram o meu ontem e possibilitaram o meu amanhã.

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Vendedor de sonhos tenho a profissão viajante de caixeiro que traz na bagagem repertório de vida e canções

E de esperança mais teimoso que uma criança eu invado os quartos, as salas as janelas e os corações

Frases eu invento elas voam sem rumo no vento procurando lugar e momento onde alguem também queira cantá-las

Vendo os meus sonhos e em troca da fé ambulante quero ter no final da viagem um caminho de pedra feliz

Tantos anos contando a história de amor ao lugar que nasci tantos anos cantando meu tempo minha gente de fé me sorri tantos anos de voz nas estradas tantos sonhos que eu já vivi.

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Este trabalho foi criado para a pesquisa com cinco arte-educadoras propondo-lhes através de entrevistas individuais e em grupo, momentos de reflexão sobre a atividade da arte-educadora, incluindo música, artes plásticas, dança, ludicidade. Os memoriais auto-biográficos escritos por elas foram analisados por uma via da hermenêutica da narrativa de Paul Ricoeur em diálogo com a metodologia das histórias de vida em formação de Marie-Christine Josso. Utilizando os conceitos de narrativa, concordância discordante, colocação em intriga de Paul Ricoeur ligados ao de projeto e momentos de transformação, de Josso, pude analisar a trajetória das professoras como uma totalidade temporal significativa, revelando os significados de suas escolhas e transformações pessoais no exercício de sua atividade docente. A leitura dos textos abriu-me uma nova perspectiva de compreensão do processo-projeto de formação da identidade docente, não separando o pessoal do profissional, bem como da questão da relação entre o ensino das artes na sua relação com a visão cultural da escola enciclopédica. Esse trabalho mostrou-me níveis mais profundos do ser que deveriam ser mais valorizados e, que são escondidos por uma cultura imediatista e superficial. Toda dimensão sensível, corporal e imaginativa ficam isolados e desvalorizados, esperando que o professor e a escola olhem para eles. Esse trabalho quer dar essa visibilidade para esse professor e para a educação da sensibilidade.

PALAVRAS-CHAVE

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Ce travail a été creé pour la recherche avec cinq educatrices des arts, on leur proposant, à travers des interviews individuels et en groupe, des moments de réfléxion sur l´activité de l´educateur de l´art, incluant musique, arts plastiques, danse, et ludicité. Les memoires autobiographiques écrites par elles mêmes ont été analysés par une voie de l´hermenêutique du récit de Paul Ricoeur, en dialogue avec la méthodologie des histoires de vie de Christine Josso. En utilisant les concepts de récit, de concordance discordante, de mise-em-intrigue de Ricoeur, liés à ceux de projet et moments-charnière de Josso, j´ai pu analyser les trajéctoires des professeur comme une totalité temporelle significative, revélant les sens de leurs choix et de leurs transformations personneles dans l´exercice de leur activité d´enseigants. La lecture des textes m´à ouvert une nouvelle perspective de compréhension du processus-projet de formation de l´identité d´enseigant, ne séparant pas le personel du profissionel, ainsi comme, de la question du raport entre l´enseignement des arts dans sa conexion avec la vision culturelle de l´école encyclopédique. Ce travail m´a montré des niveaux plus profonds de l ´être qui devraient être plus valorisés et qui sont cachés par une culture de l´immediat et superficiel. Les dimensions sensibles, corporelles, et imaginatives restent isolées, en atendant que le professeur et l´ école regardent envers eux. Ce travail veut donner une visibilité pour ces professeurs et pour cette education de la sensibilité.

MOTS-CLÉS

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This work was created to research with the art teachers, proposing to them individual interviews and with group in a moment of reflexion about the activities of art teachers, including music, art, dance and ludicity. The auto-biographic memoirs written by them were analysed by a hermeneutic point of view from the narratives.Paul Ricoeur in contact with the methodology of the histories of life in formation of Christine Josso. Using the narrative concepts, discordant concordancy, emplotment of Paul Ricoeur linked to the project and turning point moments of Josso, I could analyze the course of the professors as a significant temporal totality, revealing the meaning of their choices and personal transformations in the execution of their teaching activity.The reading of the texts opened me a new perspective of comprehension of the project-process of formation of the educators identity, not separating the personal from the professional, as well as the question of the relation between education and arts in it’s conection with a cultural vision of the encyclopedic school. This work showed me deeper levels of the being which should be more valued and are hidden by a imediatist and superficial culture. A whole sensible dimension, both corporal and imaginative stay isolated and undervalued wainting that the teacher and the school look at them. This work wants to give this visibility for this teacher and for this education of sensibility.

KEY-WORDS

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CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. IES - Instituição de Ensino Superior.

MC - Momento-Charneira

PUCRS - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

UPF - Universidade de Passo Fundo.

URCAMP - Universidade da Região da Campanha.

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SUMÁRIO

1 - COMEÇA A CAMINHADA ... 11

1.1 - Começo uma caminhada, uma vida nova. ... 11

1.2 - Projetando o caminho ... 17

2 - O PROJETO DO CAMINHO ... 31

2.1 - Sentidos do caminhar ... 31

3 - O CAMINHANTE E SEUS ITINERÁRIOS ... 37

3.1 - A via da singularidade ... 37

3.1.2 - Retrato de Maxi ... 41

3.1.3 - Perla dos Santos ... 42

3.1.4 - Retrato de Perla ... 47

3.1.5 - Marly Meira ... 47

3.1.6 - Retrato de Marly... 55

3.1.7 - Rosa Coitinho... 56

3.1.8 - Retrato de Rosa ... 60

3.1.9 - Simone Rasslan ... 61

3.1.10 - Retrato de Simone ... 63

3.2 - A via panorâmica ... 64

3.2.1 - Balanço Prospectivo ... 64

3.2.2 - Experiências iniciais ... 65

3.2.3 - Projeções de si – Telos ... 69

3.3 - Diagramas dos processo-projetos das arte-educadoras ... 77

3.3.1 - Linhas de concordância ... 84

3.3.2 - Linhas de discordância ... 84

4 - PANORAMA VISTO DA PONTE ... 88

5 - AUTO-RETRATO ... 97

REFERÊNCIAS ... 98

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ANEXO C - Memorial Marly Meira ... 109

ANEXO D - Memorial Rosa Maria Coitinho - Artes Plásticas ... 116

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1 - COMEÇA A CAMINHADA

1.1 - Começo uma caminhada, uma vida nova.

Dentro de minha família, por parte de pai posso dizer que foi se construindo uma pequena tradição. O meu avô foi guarda-livros em Sant´anna do Livramento, interior do Rio Grande do Sul. Se eu recuar no tempo posso remontar esta atividade à época do estado organizado, do templo-palácio no Oriente. Essa atividade é instauradora de uma literacia, de uma instância promotora e legitimadora da escrita nos processos da administração do estado, e no desenvolvimento de uma tecnocracia. O letramento se expande para outras áreas produzindo um impacto social e cultural. Dentro do contexto da literacia, o meu pai, migra para Porto Alegre na década de 60, período de busca da grande cidade, dá seguimento à influência paterna e se estabelece como escriturário de uma importante estatal gaúcha. Subindo os degraus da organização se notabilizou como encarregado da administração da área financeira, da verificação dos custos, e da viabilização do funcionamento da máquina gerencial.

Eu segui por uma outra vertente dessa mesma atividade intelectual vinculada à literacia. Desde pequeno fui mobilizado pelas leituras que me faziam dos livros infantis, e um pouco mais tarde, das minhas próprias. Não lia, devorava romances, histórias curtas, poemas, livros de informação. Quando chegou a primeira enciclopédia em minha casa senti como se tivesse chegado o mundo à minha frente. Posso dizer que desenvolvi um gosto literário e uma inclinação ao pensamento e à atividade reflexiva.

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criança e do professor com o conhecimento, com o outro e consigo mesmo. Nesse momento, afigura-se-me a hermenêutica e a historia de vida como abordagens valiosas para o meu intento humanista. Toda essa trajetória está baseada em um prolongado contato e aperfeiçoamento da literacia, particularmente o domínio das letras e das interpretações advindas do seu uso e repercussão cultural e pessoal. Posso dizer que o meu irmão seguiu uma outra vertente da literacia , a mais nova e promissora, cujos desdobramentos mal podemos divisar, que é a informática.

A organização dos dados, o tratamento da informação, a escritura de um programa que vai propor um algoritmo, fazendo funcionar uma máquina operando a partir de uma linguagem e para determinados fins, se constitui no mais revolucionário desdobramento da literacia.

Posso detectar duas vias de vivência da literacia em minha família. Uma a da via algorítmica, que trabalha em função dos números, dos dados coletados visando a um tratamento o mais lógico e estruturante de um funcionamento inequívoco de uma máquina, ou de uma organização burocrática. O outro lidando com a linguagem de todos os dias e as suas faces literária, cientifica, baseado não em uma lógica matemática, porém em uma interpretação dos arranjos significativos produzidos na linguagem, se prestando às abordagens hermenêuticas, que trabalham textos que comportam múltiplas significações, ou em uma complexa relação autor-obra-leitor, que não se deixa reduzir a um esquema lógico puramente abstrato.

Penso que dentro dessa tradição familiar é que me situo, como um homem que foi acostumado a ver o ser masculino vinculado a uma escritura, somente que não fiquei do lado tecnológico da literacia, mas do lado poético, criativo, significativo dela. Vejo a educação um pouco dividida entre a via algorítmica e a via hermenêutica desse mesmo processo, precisando ampliar o seu conceito de texto e escritura para além da estrutura cientificizante das matemáticas e das lógicas.

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Na minha trajetória como professor valorizei a escrita criativa, a produção textual, a sensibilização através da poesia. Separava a turma em grupos de interesse - poesia, aventuras, ficção cientifica e, no grupo, eles criavam histórias. Eu era um arte-educador e não tinha consciência disso. Busquei na USP uma especialização em semiótica greimasiana que tem toda uma teoria narrativa e da significação. Tomei contato com conceitos como percurso gerativo do sentido, programas narrativos, níveis de significação, interessantes como elementos descritivos, mas que para mim engessavam o texto, considerado como fechado em si mesmo, e provocavam um ilusório apagamento do sujeito, um retrato da visão positivista e abstratizante - o texto como uma máquina significante e auto-suficiente.

Depois do logicismo de Greimas que trabalhou com a narrativa a partir de uma analítica puramente abstrata e com as dificuldades que isso me trazia, descobri Ricoeur com a sua hermenêutica da vida humana. A semiótica já não mais me satisfazia e encontrei nele com a sua reflexão hermenêutica, novos horizontes. Ele mostrou que o ser humano objetiva as suas ações, pensamentos, desejos em obras, em textos, em pinturas, esculturas etc, e que, através dessa mediação, travo um diálogo com a minha vida e o texto escrito, ele mesmo uma mediação do autor. É nesse encontro humano que se expressa a significação.

Comecei a me interessar pela imaginação criadora em Ricoeur e juntamente com a professora Dinorá Fraga pude realizar aulas em uma cadeira do Pós-Graduação em Educação na UFRGS. Primeiramente queria captar uma imagem proveniente do inconsciente, um símbolo no dizer de Jung. Não seria uma imagem fixada, morta, mas uma metáfora viva como queria Ricoeur, uma imaginação criadora como pensava Bachelard. Os encontros que preparei e que valorizavam o aspecto poético e vivencial me abriram as portas para a narrativa de uma vida. Nessa aula, e em outras do mesmo grupo da professora Dinorá, pude entrar em contato com arte-educadores ligados a artes plásticas que me fizeram reconhecer que eu realizei um trabalho em arte-educação.

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criticar a postura da semiótica, mas, na realidade, me trouxeram a imagem de uma vida, de um eu no tempo como imagem significativa mais importante e estimuladora.

Eu estava abrindo caminho para a hermenêutica da existência e da narrativa de Paul Ricoeur, deslocando da questão do símbolo e da imaginação para a da colocação em intriga, da trajetória de um eu às voltas com os seus desejos, ações e circunstâncias.

Com essa abordagem se estruturando em minha cabeça pesquisei livros sobre roteiros e vi na estrutura de pontos de virada, da mudança significativa de uma vida, o meu maior interesse de pesquisa. Foi quando passeando pela Feira do Livro, encontrei o livro A aventura (auto) biográfica (2004), organizado pela professora Maria Helena Menna Barreto Abrahão, relativo ao primeiro encontro de pesquisa autobiográfica em Porto Alegre. Identifiquei-me rapidamente com os artigos, mas o que me chamou a atenção foi o artigo da Professora Maria Helena, pelas relações complexas que estabeleceu entre a temporalidade e a história de vida, inclusive usando Ricoeur. Neste artigo ela citava Christine Josso (2004) e a sua teorização referenciada às biografias. Procurei o livro na biblioteca da PUCRS e, em cada página deste livro encontrei o pensamento que vinha buscando, e que estava estruturando por minha conta, claro, mas Josso aportava muito mais complexidade, mas eu estava indo na mesma direção, tal foi a emoção que tive ao lê-lo.

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fiz o curso com Josso1, quando conheci a pessoa por detrás do texto teórico, o que inclusive iluminou a leitura e mostrou níveis mais profundos imersos na teoria, mas que eram fontes diretamente ligadas à biografia de Josso, e que se tornavam parte da sua metodologia, sem comprometê-la.

Todo esse caldo de cultura fomentou em mim a vontade de realizar um velho desejo, o de reunir os arte-educadores, para que eles pudessem trocar idéias, iluminar as suas experiências, uns com os outros, e ampliarem os seus horizontes como educadores, percebendo a grandeza das artes, o seu fundo comum, o ser humano, a sua capacidade de imaginar e criar. Assim eu concretizaria o meu intento de pesquisar o inconsciente, o simbólico, não mais pela via da captação de uma imagem simbólica, a partir de uma experiência culminante, mas leria esse simbólico na própria trama escrita pelos educadores, agora não mais como puro memorial, mas como uma narrativa que permite desvelar, um sonho, um projeto de vida, uma ligação profunda com o inconsciente, ou com a vida.

Essa vida não passaria despercebida, ela seria notada, vocalizada, escrita, de tal maneira que tomaria uma forma, seria uma obra de si mesmo, e não fios soltos, tintas guardadas numa gaveta, o movimento que não foi gesticulado, o som que não foi emitido. Agora o professor seria o foco, não tanto o seu aluno, preocupação central desse mesmo educador. O que expressa o arte-educador, o que diz sobre ele, a partir dele? Estas indagações me levaram à pesquisa. De inicio pensei focar a relação com o aluno e a experiência estética, e o que ele aprendeu com ela. Depois vi que o mais importante era o projeto de vida, a vida mesma desse professor.

Esta introdução quer mostrar a minha motivação, o meu contexto biográfico que tornou significativa essa pesquisa. Parece que consigo o meu foco, e não me afasto dele, mas aprofundo a mim mesmo nele. Ricoeur e Josso me forneceram as questões teórico-metodológicas: o como olhar, e para onde, o que buscar. Encontrei na pesquisa autobiográfica, em geral, no referencial da hermenêutica de Ricoeur e na metodologia das historias de vida, em particular, o que eu precisava para descrever e interpretar a trajetória de um eu que ensina e

1“Ciclos de estudos sobre pesquisa-formação e autobiografias aprendentes”, ocorrido entre os dias

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aprende no tempo. A rede conceitual da hermenêutica aporta para mim a tarefa de procurar o significado não-explícito, oculto no texto narrativo, que vai trazer-me o sentido de ser arte-educador, que eu mesmo busquei, para mim mesmo.

É como se eu quisesse me ver no espelho, mas usando instrumentos teóricos adequados e capazes de atender ao meu intento. Christine Josso traz a própria problemática da pesquisa biográfica, os seus instrumentos, o seu viés, particularmente os momentos-charneira, o evidenciar das buscas, o que diz respeito a um sujeito que se autoforma, toma consciência de sua trajetória, se sente capaz de recriá-la, de dar-lhe novos sentidos. A abordagem vem ao meu encontro, uma vez que não separa sujeito de objeto. Estou inteiro lendo os textos, mas, ao mesmo tempo, me distancio e sou capaz de reconstruir esse desenho, essa trajetória, e, assim, amplio o potencial de significação de cada vida, pois não fico preso ao literal de cada texto: posso perceber o simbólico, ou seja, o imaginado, o desejado, o encoberto, ou às vezes, nem tanto.

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1.2 - Projetando o caminho

Minha caminhada teórica tem início na exploração das potencialidades da hermenêutica narrativa de Ricoeur (1994). Se voltarmos às suas raízes, vamos encontrá-las em Dilthey (Palmer, 1997), na preocupação com a relação entre a história, a vida e a experiência. A vida aqui significa o sentido, o que vem do interior, que não separa o intelectivo, o sentimento e a vontade, dimensões que não poderiam ser reduzidas à causalidade das leis da física mecanicista. Dosse (2009, p.249) nos ensina que Dilthey tinha uma visão da hermenêutica em que o singular contém o geral, compreensível, ele próprio, a partir do singular. A vida é colocada em termos de sentido, experiência humana conhecida a partir de dentro. Heidegger vai deslocar a interpretação dos sentidos de uma vivência interior expressa em um texto para a captação do ser-no-mundo, propondo uma analítica da existência, em que a subjetividade que se encontra no mundo é lida como temporalidade e finitude. Ricoeur (1994) propõe a narrativa como um análogo da existência e a sua hermenêutica encontra neste texto a experiência do tempo vivido por um sujeito, como um ser existencial, portanto, para ele, a narrativa é a mediação entre o tempo cosmológico, objetivo e o tempo interior subjetivo, essa articulação se encontra em Josso (2004), quando ela afirma que as histórias de vida devem articular um percurso interior e um exterior configurados em linguagem, numa biografia. A narrativa constitui então uma concepção toda própria de subjetividade e objetividade, compondo um domínio próprio. Nesse sentido, posso dizer que:

[...] a construção da narrativa segue regras que não são as de uma ciência teórica universal, unívoca e atemporal, mas que resultam de uma prática, de uma atividade cuja luminosidade original se desenvolve segundo o seu ritmo temporal. Os textos narrados têm um inicio e um fim. Eles requerem uma unidade e limites. Essa unidade pode ser vista em vários níveis (GILBERT, 2005, p.111).

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tempo subjetiva (eu conto a história do inicio ao fim) e objetiva (a história é contada do inicio ao fim). (GILBERT, 2005, p.112).

O tempo cosmológico, objetivante e o psicológico, subjetivante, aparecem transfigurados em uma narrativa com início, meio e fim; esta ação se desenrola em um tempo narrado, diferente do vivido, mas que se refere a ele. A narrativa realiza-se numa dialética da concordância com a discordância regida pela tecedura da intriga. Ricoeur me ajuda dizendo que “a intriga tira uma historia inteligível a partir de diversos acontecimentos ou peripécias, seja que coloque esses acontecimentos ou peripécias em uma história” (Op. Cit.).

A tecedura da intriga reúne motivações, paixões, ações, acontecimentos, eventos inesperados, realização ou frustração de um destino, sendo o texto-tecido o todo significativo no qual lemos o sujeito com uma motivação ou intenção a realizar, o contexto onde ele está situado e as ações e as interações misturadas com os acontecimentos favoráveis ou desfavoráveis a sua consecução. Essa tecedura opera uma concordância discordante. A operação da concordância tece uma com-posição feita de uma sucessão em que percebemos um todo significativo que busca chegar a sua realização completa, como um intento, articulando a ação e a conseqüência. Na discordância apreendemos as dificuldades, as dissonâncias, os obstáculos, os desvios, as circunstâncias não previstas, as mudanças de rumo, de fortuna, de felicidade para infelicidade ou vice-versa. Com este conceito tomo consciência do que não estava previsto nas condições iniciais de uma narrativa. A partir do desejo que busca a sua consecução a discordância mostra as complicações da vida, o contexto vital, o ser humano situado sofrendo as conseqüências de suas ações, as voltas e reviravoltas da vida, as mudanças de concepção do próprio sujeito diante do que se lhe apresenta.

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maneira, não posso depreender das condições e ações iniciais o fim da história, muito menos o que vai se desenrolar, ao mesmo tempo em que leio uma historia coerente, por isso não se pode ler como uma causalidade mecânica, mas um nexo que une as motivações de um sujeito, os acontecimentos e o desfecho.

A narrativa permite que eu perceba uma ação que se faz, refaz, se retoma, muda o seu sentido, sendo que o sujeito se mantém apesar das vicissitudes do tempo, mas com uma identidade que também sofre com essas mudanças, incorporando-a na sua identidade dinâmica. Ricoeur instituiu a identidade narrativa como essa identidade processual que faz referência ao vivido, que interpreta a si mesma a partir do narrar uma história.

Nesse percurso circunstanciado, se insere o sujeito, que se forma nessas condições e constrói um sentido que as transcende sem negá-las. Nesse momento posso falar do conceito de projeto.

Para Boutinet (2002, p.77), o projeto direciona-se para a realidade que ainda não é, mas para isso constitui uma globalidade incluindo o passado e o futuro, vive de uma trajetória, de uma caminhada, mas não é um simples elencar de prazos, ou de desejos: tem que incluir a contingência de uma narrativa e, ao mesmo tempo, dar um fio condutor a essa narrativa, uma coerência. Penso que o projeto é, portanto, uma narração do futuro que relê o passado e o reorganiza, mas tão importante quanto à projeção é a leitura que ela provoca por parte do sujeito de sua trajetória.

Nesse sentido, Ricoeur está menos preocupado com as coerções estruturais imanentes à narração do que as subjetivas sob as quais uma história é aceitável, pois estas condições de aceitabilidade constituem a aptidão da história para ser seguida. E então ele conclui:

Seguir uma história, com efeito, é compreender as ações, os pensamentos, os sentimentos sucessivos enquanto apresentam uma direção particular (directedness). Isto significa que somos impulsionados adiante pelo desenvolvimento tão rapidamente quanto respondemos a esse impulso pelas expectativas que concernem à conclusão e ao resultado de todo o processo. Vemos como compreensão e explicação se misturam inextricavelmente nesse processo: ‘Idealmente, uma historia deveria explicar-se por si mesma’ (Op.Cit. p. 215).

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A contribuição que recolhemos de Ricoeur é a de que a inteligência narrativa se evidencia quando seguimos uma história e que segui-la é uma forma de compreensão contextual e processual. Somos testados nas nossas expectativas e, ao caminhar com uma história, o eu revela-se diante dela, assim como ela se desenrola diante de si , portanto, seguir uma história não é ler o desdobramento de um teorema a partir de um axioma. Ao caminhar vou criando expectativas do que vem adiante, recapitulo o vivido ao mesmo tempo em que projeto o rumo de minha caminhada.

Para mim, a inteligência narrativa se constitui em um inteligível narrativo - a inteligência de compreender um processo dentro de um contexto vital e apreender a sua direção, o que se torna claro ao seguirmos uma história até o final, e apreender a história como um todo, tanto objetivamente, ao seu término como texto lido, e subjetivamente como compreensão do que aconteceu no tempo a um sujeito-biógrafo. Que sentido ele construiu nessa história, afetando a minha própria capacidade de criar sentido em um processo vital e histórico pessoal ou coletivo? Esse saber da narração, da mediação de um eu no tempo, é a base de uma sabedoria prática, ou de um saber experiencial.

Ler a narrativa posicionando o fim como começo e o começo como fim é uma circularidade, uma reversibilidade que mostra a intervenção do leitor que segue a narrativa em que a sucessão se transforma em razão, ou em um nexo coerente. A narrativa se realiza como obra, como totalidade significativa e dinâmica, pois incorpora o potencial, o motivacional ao campo das ações e do ocorrencial. Este processo nos mostra a construção lógica que é a narrativa, ao mesmo tempo, ela remete ao vivido.

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A projeção de si num futuro mais ou menos próximo obriga, de resto, as pessoas a inventarem cenários possíveis daquilo em que desejam tornar-se, em seu fazer, em seu ser, em relação ao mundo. Também aqui somos confrontados com uma projeção que integra representações atuais do sociocultural e potencialidades conhecidas do autor da narrativa combinadas com o que ele é capaz de imaginar como desenvolvimento futuro verossímil (Op. Cit. p. 264.).

Nas buscas evidenciam-se as projeções, os desejos, ao mesmo tempo em que as origens, ou seja, a arché e o telos, a origem e o fim de uma história. Através da colocação em intriga pensada por Ricoeur, vista como ato recriador da vida, escrita numa narrativa, conecto as motivações, os eventos, as circunstâncias, tecidos em uma certa direção. Eles não são ligados de forma estanque, mas na sua tecedura revelam os sonhos, as lutas, e o que foi aprendido, o que me identifica como pessoa, o que ela busca nessa vida, e o que ela encontra. Lendo o projeto como produto de uma concordância discordante, dos elementos concordantes com as minhas buscas, e dos elementos discordantes, mas que serviram para torná-la, mais clara, ou complexa, ou revelar novos valores ou direções. Esse sentido é construído retrospectivamente, buscando-se a arché, a origem, mas não como única causa necessária, mas relacionando-a com o término de um longo processo para que desde o começo se introduza uma tensão em direção ao futuro.

Delory-Momberger (2008), diz que a construção biográfica se assenta em uma dinâmica temporal passado, presente, futuro, sendo que a projeção do porvir é a sua força motriz. Para ela toda a atividade humana implica um horizonte de possibilidade, um espaço à frente dela mesmo que a lança na existência e lhe dá a sua finalidade e justificativa. Ela nos traz a idéia de que a narrativa de vida faz um balanço prospectivo construindo uma maiêutica do passado pelo futuro, pois a história de vida não está fechada sobre si mesma, mas permite a emergência de potencialidades projetivas pela sua abertura para o possível. O contar uma historia é uma tarefa projetiva, do lançar-se do eu no tempo e no espaço.

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anima. É, portanto, nessa direção primeira de um ser-a-vir e de um ser para que o eu se constrói como tendo sido (DELORY-MOMBERGER, 2008, p.65).

A narrativa complexa “aquela que extrai da contingência uma necessidade é a operação estruturante que possibilita o projeto”, pois ao organizar acontecimentos singulares fazendo-os contribuir para a progressão da intriga dá a visibilidade de um projeto do eu no tempo, impedindo que ele se fixe no que passou, e dando o sentido do que foi vivido, assim o autor-biógrafo articula o seu passado com o seu futuro, a cada momento em que podemos entrever uma busca e a sua implicada expectativa e conclusão. O ato de tomar em conjunto as peripécias de uma narrativa permite-me ler o projetar-se em um caminhar com as suas transformações, as suas tomadas de consciência sobre suas aprendizagens e sobre si mesmo, constituindo um projeto de si auto-orientado. O ato de seguir uma história com suas expectativas, ações realizadas, as buscas que dão em resultados felizes, ou infelizes, esperados ou inesperados, e que se inserem em um todo inicio-fim me dá a ler um projeto processuado. É assim que leio as narrativas das arte-educadoras, não apenas uma reminiscência vivida, mas o projetar-se de vida de uma arte-educadora.

Este movimento se torna possível após realizar essa articulação da composição de uma intriga com a idéia de processo-projeto de Josso (2004): podemos articulá-la com a idéia de momentos-charneira.

Podemos agora unir a teoria da narrativa em Ricoeur com a teoria da formação em Josso, que valoriza a orientação, a busca de referências, um sistema de coordenadas para se atingir onde se quer chegar, ser o que se quer ser, descobrir quem se é, ou inventar-se quem se quer ser. A busca de sentido é o fundamento para a autoformação, a partir de uma tomada de consciência. A formação reúne o saber fazer, o saber, o saber viver, o inventar a si mesmo. Nessa ótica,

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A formação atravessa e enreda todas as ações, acontecimentos e mudanças de fortuna numa certa direção. Ela é esta síntese das rememorações, das projeções, dos aprendizados, sejam formais, técnicos, ou de saber-fazer. O meu olhar é mais focado no projeto de vida, com as suas aprendizagens integradas num todo significativo, numa narrativa. Esse tomar em conjunto feito pelo narrador ao contar a história e selecionar os eventos, vai ser analisado por mim como um processo de concordância discordante, vinculando-a aos momentos-charneira e, nessa articulação, posso ler um projeto de si auto-orientado, rastreando as buscas e o sentido da autoformação de cada um.

Christine Josso vai nos trazer a problemática da formação inserindo nela a da autoformação. A heteroformação abarca todas as influências que nos formaram, que nos deram forma, que nos influenciaram de alguma maneira, sejam familiares, sociais, culturais, escolares. A autoformação é o processo de constituir-se a si mesmo, não de maneira isolada, mas em diálogo constante com o mundo cultural e físico. Ela é definida por Pineau (1988) como apropriação do poder de formar a si mesmo. Josso procura a mediação da narrativa para propiciar essa tomada de consciência de si mesmo e aproximando o pensamento de Ricoeur contido na pergunta quem sou eu, Josso temporaliza dizendo: como me tornei o que sou? Como cheguei a pensar o que penso?

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Tais movimentos se tornam visíveis através do reconhecimento das buscas que fiz, como deixo me afetar por elas, o que elas acarretam para mim. No fundo, ela está preocupada com as aprendizagens que foram feitas, e em que essas buscas e os seus resultados alteraram a nossa identidade. Essas buscas se resolvem na busca de felicidade de si e dos outros, conhecimento e sentido. Cada um de nós vai tecer uma história e construir conhecimentos e experiências significativas que vão dar forma a essa trajetória vital.

Josso centra nas vivências, experiências atravessadas pelos afetos e valores e que podem ser refletidas pela consciência e transformadas em tomada de consciência e aprendizado pelo sujeito, um saber da formação, um saber do sujeito que se constrói a si mesmo, um saber da autoformação. Ela usa o reconhecimento de si que a narrativa propõe, como imitação recriadora do vivido, como diria Ricoeur, fazendo-a trabalhar, na busca de um todo significativo, que implique a descoberta de si, a aprendizagem com as situações vividas. Nessa perspectiva, mais do que sermos formados, nos formamos. Aprendemos conosco mesmos, ao nos formarmos. A arte é esse aprendizado de dar forma ao nosso mundo interno em diálogo com o exterior.

A operação de configuração, ou dar uma forma na narrativa, implica uma auto-interpretação, o que Delory-Momberger (2008) chama de hermenêutica em ato. A minha tarefa na pesquisa foi fazer a interpretação dessa posição em intriga operada pelo sujeito-biógrafo, narrador da história e o ato interpretativo que ela carrega, propondo uma interpretação que desvela níveis mais profundos explicitando-os e ampliando o contexto significativo do texto biográfico, em função de um projeto de si mesmo no seu contar autobiográfico. Com Josso, coloco a tarefa dessa construção de si mesmo na atenção consciente:

A atenção consciente está sempre lá para dar testemunho do mais ou menos longo trabalho de elaboração que gera o movimento do ser para transformações de sentido, contextos de vida, de relação com o outro, de relação consigo mesmo. Josso (2004, p. 257).

E mais adiante amplia o trabalho da própria atenção consciente:

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atenção consciente é sempre necessária para observar os “desvios” ao que tinha sido antecipado, para localizar avarias, para identificar caminhos sem saída. Josso (2004, p. 257).

A atenção consciente não é uma mirada imediata de um sujeito estático para si mesmo, ela percebe uma identidade dinâmica, como defende Ricoeur que se realiza no espaço-tempo captável por uma narrativa. É Josso mesma quem fala que uma das formas da manifestação da atenção consciente é a reflexão que se utiliza da narração. Localizo aqui um ponto de articulação com Ricoeur, pois percebo que a atenção consciente se aproxima, como procedimento, do ato configurador da armação de uma intriga, para ele um movimento de distanciamento reordenador do real, uma recriação criativa do processo vivido. Posso pensar que a atenção consciente tem essa função observadora e antecipadora, sendo ao mesmo tempo uma postura recriadora do real como a narrativa e compreensiva do que foi narrado, tomando em conjunto a expectativa e a mudança de fortuna e integrando-as num todo coerente, uma totalidade temporal projetiva.

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sentido à vida dela. As narrativas são a mediação necessária, pois que essa experiência acontece no tempo, um tempo vivido, uma experiência humana existencial. Para Josso o projeto existencial visa preencher um tempo ilimitado, a impermanência das coisas, a finitude. Este projeto do arte-educador comporta para cada educador um sentido, uma trajetória, com as suas experiências fundadoras, significativas e existenciais.

Nesse processo-projeto abro espaço para questionar a minha heteroformação, o que me serviu de referência do exterior e perceber o meu processo interno que se exterioriza numa ação ou decisão, o que pude fazer com o que a vida fez, como reelaborei os acontecimentos que experimentei e os que eu mesmo provoquei. Na resposta às perguntas o sujeito aprendente toma consciência do seu percurso de formação e de (auto) conhecimento ao costurar a intriga, tornando-a coerente a partir das tomadas de consciência que reorganizam essa experiência. É na fase de recordação que se retomam os fios narrativos, se reorganizam as experiências, se retrabalha a memória. O trabalho do pensamento auxilia o da narração, mas não o substitui. Partindo de José Reis (1994, p.50), a experiência vivida no tempo – vista como a reunião entre o passado e o futuro - articulada com a atenção consciente que realiza a tomada de consciência e a ressignificação que se utiliza da narrativa, recriação do vivido, no fundo reúne passado e futuro, constituindo os momentos-charneira.

Articulando com Josso, posso entender que:

Tomada na sua globalidade a narrativa articula vários períodos da existência que reúnem vários fatos considerados formadores. A articulação entre estes períodos efetua-se em torno de momentos-charneira, designados como tal porque o sujeito escolheu - sentiu-se obrigado a – uma reorientação na sua maneira de comportar e/ou maneira de pensar ou meio ambiente e/ou pensar de pensar em si através de novas atividades. Esses momentos de reorientação articulam-se com momentos de conflito e/ou mudanças de estatuto social, e/ ou com acontecimentos sócio-culturais (familiares, políticos, econômicos). (JOSSO, 1988, p. 43).

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[...] assim, a compreensão da escolha mais ou menos consciente dos referenciais que presidem a um processo de formação pode levar a modificar a direção tanto de um itinerário de vida como do olhar que incide sobre ele, assim como das orientações determinadas por seu autor. (JOSSO, 2004, p.83)

O trabalho auto-interpretativo e o co-interpretativo feito no grupo tende a remexer os referenciais e mobilizar o professor arte-educador em direção àquilo que o formou, como ele interpretou e, ao mesmo tempo, fazê-lo perceber as semelhanças e diferenças na relação com os outros educadores. A autoformação é essa consciência de si na interação com o outro e o meio ambiente social e cultural. Quando se rememora o passado de forma flexível tem-se a tendência a ser mais caótico, porém quando se coloca a rememoração em uma narrativa atualiza-se um processo de recordação – antecipação, pois que numa narrativa têm-se o desenrolar dos acontecimentos, mas também o “fim da história”. Nesse sentido, a proposta de Josso de um projeto de si auto-orientado encaixa-se em uma narrativa de uma vida.

Para Josso, a história de vida é, assim, uma mediação do conhecimento de si em sua existencialidade, que oferece à reflexão de seu autor, oportunidades de tomada de consciência sobre diferentes registros de expressão e representações de si, assim como as dinâmicas que orientam a sua formação.

[...] Essa modificação de direção pode também ser considerada como um ato deliberado de transformação e, por isso mesmo, de auto-orientação refletida. Quando essa modificação acontece , a finalidade formativa do processo foi atingida (JOSSO, 2004, p.83).

A aprendizagem se dá na interligação de experiências significativas que ajudam a compor o todo da configuração do texto; Ricoeur fala na motivação, o que faz mover o texto, Josso fala nas buscas e, narrativamente, nos momentos-charneira e nos acontecimentos significativos. Com ela podemos transformar a idéia de Ricoeur de que a armação da intriga transforma contingência em necessidade, como um processo-projeto de formação de si, um projeto de si auto-orientado. Assim pensada a problemática do eu no tempo, parto para a questão da estética.

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A intelecção orienta a nossa percepção em torno das funções dos objetos e de suas relações com os outros atos humanos (caneta-escrever-papel; fósforos-acender-cigarro); Já na percepção estética o “ser” do objeto é o seu aparecer. É no próprio sensível, no ato de perceber, que reside o prazer estético: na percepção direta de harmonias e ritmos que guardam, em si, a sua verdade (DUARTE, 1981, p. 84).

A percepção estética é, no fundo, a percepção ativa e consciente da harmonia objetificada em um objeto que se refere ao significado captado do sensível, ou a sua reelaboração. Esse objeto não pode ser excludente e fechado em si mesmo, ele tem que ser um catalisador de experiências afetivas e significativas. Na sua configuração, na sua forma abre-se o espaço para uma experiência significativa. Em razão disso,

A beleza habita a relação. A relação onde os sentimentos entram em consonância com as formas que lhes tocam, vindas do exterior. O prazer estético reside na vivência da harmonia descoberta entre as formas dinâmicas dos sentimentos e as formas da arte (ou dos objetos estéticos). Na experiência estética os meus sentimentos descobrem-se nas formas que lhe são dadas, como eu me descubro no espelho. Através dos sentidos (DUARTE, 1981, p. 85).

Duarte me levou a explorar o fundo sensível de toda a ação e experiência humanas, o que podemos acessar através das narrativas como a ação e a sua conseqüência e o sentir, o fluir das paixões por parte do sujeito-biógrafo.

O artista como ser humano vive no fluxo vital de sensações e sentimentos, do pré-reflexivo, e com a reflexão os traz para a consciência mais elaborada. No outro plano, o do inteligível estaciona-se no campo das definições restritivas dos conceitos, dos critérios ordenadores da realidade.

A pessoa do artista se coloca como encruzilhada entre o seu sentimento e o sentimento humano, entre um jeito seu e a forma pregnante e simbólica, que comunica principalmente a si mesma. Ele abre para além da referência literal uma referência metafórica:

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do ponto de vista retrospectivo é que existem experiências delimitadas. Somente o que já foi vivenciado é significativo, e não aquilo que está sendo vivenciado (DUARTE, 1981, p.26).

Com essa fala Duarte me mostrou que quando se está imerso no fluxo de consciência do vivido não se consegue diferenciar-se dele, não há distancia, portanto não há condições de se criar uma experiência significativa.

O artista não é somente um vivenciador, alguém que se emociona, ou apenas sente. Ele se coloca no esforço de criar uma forma significativa, expressiva. A conexão com o sensível retira o artista da cômoda posição de repetir a fala de todos os dias, de reproduzir a cor que todo mundo vê, ou o som que as nossas entoações dão a ouvir. Ele luta com a forma, tem que banhá-la nesse sensível, mas esse sensível não é reconhecido de forma imediata como um sinal puramente indicativo de uma emoção. Tem de reelaborar essa forma e inserí-la em uma comunidade de referências culturais e tem de comunicar-se com o outro que não a si mesmo.

Porém, diferentemente do pensamento conceitual, o pensamento artístico não separa a forma do conteúdo e não tem a intenção de definir, de delimitar, de excluir. Como se move no campo experiencial, do sensível, o seu procedimento é mais analógico e apresentativo. Até mesmo a ciência só adquire sentido se é conectada, de alguma maneira, com esse mundo vivido, senão se torna pura informação logo adiante abandonada.

Na pessoa do fruidor é que buscaremos compreender seus efeitos educativos; no conhecimento que ela possibilita ao espectador é que iremos procurar a sua dimensão educacional [...] isto envolve a conceituação de uma perspectiva mais abrangente que a simples transmissão de conhecimentos. Envolve a consideração da educação como um processo formativo do humano, como um processo pelo qual se auxilia o homem a desenvolver sentidos e significados que orientem a sua ação no mundo. Neste sentido, o termo educação transcende os limites dos muros da escola, para se inserir no próprio contexto cultural onde se está. A questão da educação gira sempre em torno da criação e da criatividade: ao aprender, estamos criando um esquema de significados que permite interpretar nossa situação e desenvolver nossa ação numa certa direção. A educação, dessa maneira compreende também o ambiente cultural no qual o individuo vive, na medida em que lhe possibilite ou lhe vete a constituição de um sentido, (o mais amplo possível) para sua existência. A circulação de idéias, significados, e sentidos, no interior de uma cultura e o acesso a essa circulação compreendem, pois o contexto formativo (educacional) mais amplo no qual estamos inseridos (DUARTE, 1981, p.15).

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2 - O PROJETO DO CAMINHO

2.1 - Sentidos do caminhar

Minha trajetória de professor da Língua Portuguesa fez-me descobrir a prática do texto criativo e com o contato com os professores de artes plásticas me descubro arte-educador. Esse encontro na UFRGS, já na época, acendeu a ideia de eu reunir arte-educadores para contar os seus segredos, o que eu chamei de caldeirão das artes.

Alguns anos depois, agora, posso retomar a minha busca de conhecimento sobre as experiências de professores de arte. A dissertação de mestrado representou a retomada daquele desejo e a seleção que fiz recuperou alguns arte-educadores que conheci na UFRGS, com um “bom tempo de estrada”, e me deu a oportunidade de conhecer outros. O fundamental para mim não foi o tempo de serviço no sentido quantitativo, mas ter um compromisso com a arte-educação e a experiência com a arte, com tempo suficiente para gerar uma significativa reflexão. Não é um estudo sobre professores aposentados, ou professores iniciantes, não é essa a chave do meu trabalho. O importante, para mim, é compreender a relação entre pessoa e profissional, o projeto de vida de arte-educadores e suas aprendizagens para si mesmos, que compõem o seu processo-projeto.

Contatei as professoras no primeiro semestre de 2009 e após me desincumbir das ultimas cadeiras do curso, concentrei-me na dissertação. No período de julho /agosto realizei as entrevistas a partir dos contatos que havia feito em maio/junho.

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as entrevistas individuais, que trabalharam com a rememoração, o desbordar emocional do vivido, e que atenderam à pergunta: como me formei como arte-educador? Mergulhando no passado, visando a que a educadora se colocasse como pessoa dentro de um processo vital, desencavando os acontecimentos significativos, o que é plenamente atendido com êxito, tudo guardado em arquivo digital. As professoras escolhidas foram: Maximila Coelho, professora universitária, criadora de ludotecas e especialista em Educação Infantil e Psicomotricidade Relacional; Marly Meira, Doutora em Educação, arte-educadora de longa data, participante política dos movimentos de valorização da arte-educação no Rio Grande do Sul; Rosa Coitinho, ceramista, escultora, professora da UPF, arte-terapeuta; Perla dos Santos, professora da rede municipal de ensino de Alvorada, criadora de grupo de dança vinculado à promoção da cultura afro-brasileira; Simone Rasslan, professora de música em escola, compositora/arranjadora de música para teatro/cinema, show-woman, com grande experiência de palco.

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Esse clima fica mais claro no seu texto biográfico. Essa fase de reminiscências enche de vida e emoção o meu mês de julho, e também o de agosto. Ao mesmo tempo me reconheci em algumas narrativas, vejo que eu mesmo vou me sensibilizando com o que ouvi, já não sou mais a mesma pessoa. Pena que nem todas participaram até o final do processo.

A segunda fase, a das experiências de professores, quebrou a minha expectativa, pois pretendia um grande encontro e, por causa das agendas lotadas, tive que fazer vários encontros de pequenos grupos. Isto me proporcionou um vasto material acumulado, mas o mais importante era sair do tempo da infância e da adolescência e ir para a prática das arte-educadoras e a evolução da própria professora, a sua carreira, e claro, no grupo o diálogo intersubjetivo das diferentes experiências. Comecei com uma solicitação que já havia feito para cada professor, ao final da primeira fase: relate uma experiência significativa como arte-educadora.

Acrescentei no decorrer do processo uma pergunta no final de cada diálogo do grupo: qual o sentido da arte-educação para ti? Fiz questão de aproveitar o contexto de vida de professor que havia sido criado, e como percebi que não haveria um terceiro encontro, como imaginado, resolvi abrir essa questão para que fossem estruturando um pensamento sobre o todo da vida de arte-educadora. A emoção que foi gravar com a Maxi e a Marô no Theatro São Pedro o primeiro diálogo dos arte-educadores, naquele ambiente tão sofisticado e antigo, eu com o meu gravador digital, elas avançando sobre a questão da imaginação e a criança, como abertura a todo um mundo interior da infância que ganha vida numa contação de história ou de uma brincadeira. Muitos professores não sabem ler, contar histórias para as crianças, não tem eles mesmos expressividade e capacidade imaginativa para dar vida a um personagem, lêem mecanicamente, sem entusiasmar os alunos.

No diálogo com as professoras Rosa, Miriam, Perla esta ainda no começo, jovem professora de dança que trabalha lendas africanas nos trouxe incríveis lições de vida. Mais tarde, no memorial2, ela mostra a profundidade da sua ligação afetiva com a dança e com a história africana e negra no Brasil. Rosa e Miriam trouxeram toda uma contribuição de uma rica trajetória, as mudanças no

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sistema de educação das artes, e a crítica às inércias que até hoje existem, como prática de imitar servilmente um modelo, ao invés de propiciar a criatividade das crianças. O encontro entre Marly e Simone, das artes visuais e da música, respectivamente, foi o encontro das artes não–verbais, e ressaltou-se a repercussão social da arte, o papel do metafórico, na música e na pintura. Estes diálogos mostraram a experiência de cada uma, o sentido que foi dado para essa atividade, as vitórias e os confrontos com a incompreensão, talvez pela sutileza do trabalho com a arte.

Mudo a minha orientação de trabalho, pois não penso mais em investigar a experiência estética, mas o projeto de vida do arte-educador. A experiência estética sendo mediada pela prática e a obra, é mais difícil de recuperar pela memória, mais trabalhoso, exigiria um foco que eu não havia pensado, e dispor de mais tempo, o que eu não tinha. Além disso, todos estes encontros fortaleceram em mim o desejo de investigar o arte-educador e não tanto a inefável vivência estética. Isso não me impediu de eu recuperar momentos importantes, ou emocionantes, mas eles estavam mais relacionados com a vida do professor, com as suas intenções, no fundo, o que eu queria mesmo investigar, isso foi ficando cada vez mais claro para mim.

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O importante para mim é que os objetivos dos encontros e das perguntas elaboradas foram atingidos, isto é, que as entrevistadas construíssem uma narração refletida e significativa de suas vidas de arte-educadoras, e não se deixassem levar pelo primeiro impulso, mas que fossem guiadas pelas perguntas a interrogarem a sua própria história e a reconstruíssem com os seus próprios critérios, saindo do clichê e do imediato. Isso corresponde a uma maior importância que acabou obviando para mim a noção de projeto em Josso, e me obrigou a fazer uma articulação entre a concordância-discordante, momentos-charneira e projeto, com o ganho teórico que acabou trazendo para a dissertação. Qual o sentido da arte-educação, para mim, transformou-se em qual a relação entre o projeto de vida e a arte-educação para essas professoras. Trata-se, portanto, de perceber nas ligações entre os acontecimentos; ler a intenção da autora-narradora na direcionalidade construída a partir das transformações evidenciadas nos momentos-charneira, como projeto de si, auto-orientado, como invenção de si. Este objetivo fica mais claro quando evidenciamos o ponto de virada de uma vida, que nos coloca com mais clareza as mudanças de sentido aprendidas em uma trajetória. Esse esforço nos leva a tornar conseqüente e exeqüível a autoformação como capacidade de dar forma a si mesmo, pois, segundo Josso:

[...] o conceito de formação, [...] se enriquece com práticas biográficas, ao longo das quais esse objeto é pensado tanto como uma história singular, quanto como manifestação de um ser humano que objetiva as suas capacidades autopoiéticas (JOSSO, 2004, p.38).

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desejos e motivações do arte-educador passa pela concordância e pela discordância, o que evita que o projeto seja lido numa chave puramente ideal, mas que seja transformado através da busca de sentido do sujeito, que se situa em um contexto concreto e, ao mesmo tempo, reelaborado por ele.

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3 - O CAMINHANTE E SEUS ITINERÁRIOS

3.1 - A via da singularidade

A via da singularidade não se faz com uma caminhada em linha reta, mas incorporando os contratempos, as dificuldades, extraindo uma história razoável e aceitável, e no nosso caso com um sentido de vida da arte-educadoras.

Esta via está baseada no fato de que o ser humano é um ser que se auto-interpreta e, que por isso, conta historias. Estruturo a leitura a partir do conceito de concórdia-discórdia de Ricoeur, na tecedura de linhas de concordância e de discordância articulada com o conceito de momentos-charneira de Josso. Com esse referencial teórico pretendo dar conta da singularidade inquieta que se constrói ao caminhar.

Na concordância, o todo é mais importante, ele é a configuração do desejo do eu no tempo, a discordância representa a ameaça ao eu, ao próprio projeto, na descontinuidade no tempo questionando a unidade narrativa que aglutina os diversos tempos e eventos. Seja como for o narrar de uma história é a vitória de uma singularidade que narra a sua própria circunstancia e formação.

A seguir, a análise das narrativas pela via da singularidade:

3.1.1 - Maximila Coelho

“A criatividade é como o grão de trigo, só produz riqueza quando cultivado...”

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Maxi começa com uma frase que diz do valor do cultivo da criatividade e contrapõe com outra que fala do descaso da escola, e até mesmo do medo que se tem da ludicidade, quando ela cita Tonucci “... uma ou duas pílulas por semana para não viciar.” Ela se coloca como especialista em ludicidade, citando autores que têm identificação com esta área. Logo em seguida, ela narra a sua trajetória refletindo sobre a sua vida, prática e conceitos, procurando saber-se arte-educadora, tomando consciência dos pressupostos existenciais dessa identificação. Essa busca de si levou-a a rever os critérios de compreensão de si mesma, o que posso perceber na dialética concordância – discordância, nos momentos-charneira, e pela direção que eles vão indicando. Esses movimentos marcam a transformação existencial, a mudança de perspectiva sobre a sua vida e sobre si mesmo.

Trabalho a leitura da narrativa de Maxi na perspectiva dos momentos-charneira, os que marcam as transformações existenciais dela, e que vão desenrolando as peripécias dos desejos e ações do sujeito, e que vão marcando as tomada de consciência das transformações da sua singular história. No começo da narrativa Maxi se diz instigada a se pensar uma arte-educadora, e cita os pontos de referência teórica, proporcionando a mim uma primeira visão de sua identificação com a arte na linha da ludicidade. Ela abre uma primeira reflexão sobre a sua identificação com a arte-educacão, com uma pergunta sobre a sua identidade: sou arte-educadora?

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concordância aqui marca uma consciência de uma tendência pessoal que quer se objetivar no mundo, num primeiro movimento de autoformação, ou de dar forma a si mesmo.

O segundo momento-charneira é marcado pela atividade como recreadora de crianças na escola da mãe, que ela descreve como a chegada do futuro, a realização de um anseio esperado, que consolida a sua escolha pessoal, através das coreografias ensaiadas com as crianças e tendo como conseqüência a busca de cursos de formações de atores. O fio organizador da concordância- motivação agora é a confirmação de um desejo por uma pratica satisfatória e a abertura de um novo horizonte de expectativa.

O terceiro momento-charneira foi quando ela participou das peças infantis, percebe a dificuldade de ser uma atriz3 (nota 1) o que a desmotiva para seguir carreira, mas, ao mesmo tempo, ela ganhou consciência do gosto especial em interagir com crianças. Nesse momento, aparece a linha de discordância, da dessintonia com o mundo, que ao mesmo tempo foi uma ameaça ao seu projeto, porém com o contato com as crianças abriu-se uma nova frente, uma via possível.

Este momento é na realidade uma fase de transição, para o quarto momento-charneira que ela considera um marco, ele abarca a sua participação nos cursos na área da educação e a descoberta da psicomotricidade e, em particular, da ludicidade, e dela com as artes que sempre a acompanharam na faculdade, com a construção de um referencial teórico que une o psicológico e o corporal, abrindo uma comunicação com o mundo infantil e para além dele - uma nova compreensão de si mesma e da sua humanidade.

Compreendi que minha relação comigo, com o outro e com o meio transcendia o racional, o material. Era corporal, mas também era e é visceral, intuitivo e que não cabendo nas fôrmas do formal da escola tinha de encontrar outro modo de manifestar desejos, intenções, saberes e fazeres que estivessem para além do pré-concebido e socialmente aceito. (ANEXO A).

Nesse sentido de autoconsciência de si e do mundo, aclara-se o seu movimento de autoformação iniciado quando de sua busca pelo teatro. Aqui a linha de concordância do projeto de arte-educadora mostra uma nova possibilidade de ser

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e fazer, e revela a profundidade das experiências que Maxi estava realizando: ela percebe e penetra outra camada de si mesma, e avalia a distancia dela e do seu projeto do que é socialmente e culturalmente aceito.

Esse eixo orientador de si mesma e da sua busca, vai abrir caminho para os as outras mudanças como a do quarto momento-charneira, que ela classifica como uma nova etapa é o da atuação como educadora infantil, e a consciência que ela ganhou levando-a a querer e ser formadora de formadores pela percepção da importância dos adultos se apropriarem sem culpas e bloqueios, a ludicidade na relação com as crianças e com eles mesmos. O fio do projetar-se na concordância vai na direção do mundo e dos outros professores, para a descoberta desse outro mundo neles mesmos.

O quinto e ultimo momento-charneira é aquele em que Maximila trabalhando no IES, estabeleceu uma relação entre as linguagens expressivas, a ludicidade e a arte-educação, assumindo-se, finalmente, como arte-educadora. O projetar encontra-se agora no projeto de ser arte-educadora através do trabalho com as linguagens expressivas articuladas com a ludicidade, com o acesso a essa região visceral.

Posso ver que como educadora infantil ela percebe a importância do contato com a sua própria ludicidade, ou seja, capacidade de brincar, criar, libertar-se de amarras e romper as barreiras entre educadores e educandos, tendo em vista algo mais profundo deles mesmos. Posso dizer que o fim do processo é o ápice e, ao mesmo tempo, reorienta toda a trajetória de Maxi, e é simultaneamente uma recuperação da ligação primordial com a arte, através das linguagens expressivas, que só mais tarde no contexto educativo ela pôde recuperar. Ela supera a ameaça discordante em relação às suas experiências estéticas e criativas, encontrando um campo de trabalho e pesquisa na educação e na psicologia de tal forma que lhe permite tomar consciência que estava entrando novo mundo simbólico-corporal mediado pela arte.

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Como linha de discordância posso entender que a sua relação com o teatro foi positiva, mas, ao mesmo tempo, trouxe para Maxi uma consciência da fragilidade da profissão de ator. A psicologia parece tomar o lugar da arte, mas, ao mesmo tempo, a leva de volta, porque a psicomotricidade tem a ver com esse aspecto sensível e imaginativo do ser humano revelado em um corpo. Ainda como tônica discordante aparece a escola que se opõe a essa visão, como foi marcado bem no começo da sua narrativa, e os próprios adultos que não reconhecem essas potencialidades e negam a criatividade e a criança interior deles mesmos.

Penso que há uma trajetória de aprendizagem em que ela parte de uma atitude mais solta, espontânea, e que vai se direcionando para um expressão artística que não sendo bem resolvida, se desloca para a educação infantil, para psicomotricidade e desta para as linguagens expressivas em que podemos dizer que Maximila encontra o espelho onde se refletem as suas pulsões criativas, a sua corporeidade espontânea, agora trabalhada e conscientizada pelo jogo simbólico da ludicidade. No lidar com os professores, agudiza-se a percepção da carência que o adulto tem dessa mesma experiências visceral e intuitiva da arte e do brincar. Maxi, com o que ela descobre e aprende, se propõe a ser a mediadora desse mundo lúdico, mágico, com o mundo adulto. O que acontece a partir desse processo de heteroformação é a autoformação, o compreender e tornar-se a si mesmo que se transforma num poder de criar o seu próprio sentido e estimular as pessoas a fazê-lo.

Maxi quer fazer comunicar esses dois mundos, de tal forma que a criança que for interagir com esse professor adulto não seja prejudicada pela insensibilidade de uma escola que não compreende esse mundo de fantasia, por estar presa a uma visão convencional e puramente enciclopédica. O próprio professor se ressente dessa mesma carência de vida imaginativa e de uma consciência corporal mais aprofundada.

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Conheci Maxi nas aulas da professora Maria Helena Menna Barreto Abrahão e logo vi aquela criatura mignon, moreninha, cabelos negros e bastos. Era uma pequena usina de ternura e de inteligência vivaz. Aos poucos ela foi contando da sua trajetória de atriz do “Num semo istreia mais briamo”, grupo de teatro da década de 80, e de especialista em ludicidade. Seu movimento corporal e os seus abraços, maleavelmente afetivos e envolventes, mostraram que eu estava diante de uma teórica do corpo e do jogo simbólico, mas de uma pessoa que vivia o que dizia, no seu próprio estar no mundo, mostrando que ele pode ser feito menos de barreiras entre as pessoas e mais de pontes traçadas pelos afetos.

3.1.3 - Perla dos Santos

Pensar em arte educação é, seguramente, para mim, a união da realização profissional com a pessoal. Devo acrescentar também que arte-educação em minha vida foi como encontrar, depois de uma jornada cansativa, o sentido da minha existência. (ANEXO B).

A partir da análise vertical constatei que Perla traz, para mim, fruto de sua experiência, a ideia de que a arte-educação é um mediador que reúne a realização pessoal e profissional. Vejo claramente que Perla percebe o processo de uma vida, a passagem do tempo, e que ela toma consciência do sentido dificultoso dessa caminhada para ela. Esta afirmação marca a linha concordante do projeto de vida de Perla e, assim, anuncia o primeiro momento significativo.

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Como percurso de aprendizagem podemos marcar como Perla o designou “aprendi muito nova e quem me ensinou foi meu pai” e esse aprendizado foi marcado pela figura de seu pai. Podemos pensar esse encontro como o melhor que ela poderia guardar da heteroformação no nível familiar, esse amálgama de sentimentos, de valor de si próprio e do outro, e do próprio ato de dançar.

Essa aprendizagem situada na relação heteroformativa com o seu pai, gera um primeiro movimento de autoformação, dos sentidos que são construídos pelo sujeito e que contribuem para o seu desenvolvimento em todos os níveis. Aqui acontece o despertar da pessoa, da sua sensibilidade e, provavelmente, de sua vocação, a de bailarina, ou seja, de um aprendizado nasce a descoberta do seu ser.

Como linha discordante da sua projeção como arte-educadora e marco da primeira contrariedade, é a percepção de Perla, de que os professores do ensino fundamental não são tão dedicados e amáveis como seu pai. Esse momento-charneira marca a aluna Perla que tornou-se invisível na escola; as matérias não fazem o menor sentido para ela. Eu poderia ser levado a pensar que se trata de uma pessoa relapsa, desinteressada de estudar. Não mesmo! O que acontece aqui é o não-ser, o sentimento dela diante do não reconhecimento de sua pessoalidade. Aqui está a Perla aluna, mas também a arte-educadora lendo a sua realidade passada e percebendo o quão pouco a escola trabalha tanto a subjetividade, quanto as necessidades emocionais, sensibilidades dos alunos, pois ela era só mais um número. Nesse momento de tensão, sou levado para um sentido mais profundo do viver de Perla. A rememoração da perda da relação com o pai e a violência contra o seu primo marcam o indício da realidade de separação e isolamento social que ela se sentia. Esses acontecimentos só aumentam a sua revolta contra a escola, a sua distância do seu projeto de vida, visíveis pelas práticas aí realizadas.

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mesmo uma poeta e uma artista da dança. Ao mesmo tempo em que é ouvida como pessoa, é lida como artista, é reconhecida pela sua identidade afro-brasileira. Começa o projetar-se Perla e assumir-se consciente de sua formação.

Posso dizer que se abre uma nova linha nesse processo porque a exclusão sofrida na escola é resgatada nessa mesma instituição por professores que têm uma outra visão de escola ou prática de vida. A artista Perla é reconhecida. E ela toma consciência da exclusão cultural dos negros na escola, despertada pelos professores que aparecem como elementos favorecedores da sua autoformação por mostrarem caminhos que permitem a ela encontrar a sua autenticidade, desenvolver a sua individuação. O percurso de aprendizagem retoma o seu caminho libertador, saindo do mero conteudismo despersonalizante.

Abrindo um novo momento-charneira, de transformações existenciais, temos a decisão de Perla de ser professora. Parece paradoxal, que na escola que a ignora por tanto tempo, ela encontra o caminho de reencontrar-se como pessoa e profissional, corroborando o que ela mesmo diz: depois de um árduo caminho, o sentido da sua vida.

Perla aprende balé, jazz, e dança afro. Percebo retorno daquela experiência fundamental com seu pai, a afirmação de sua negritude, de sua história, e da história do povo negro. Ela cria, de modo informal, um grupo de dança com as crianças do bairro. Sua própria casa foi o começo dessa opção, quando dançava em criança,e estava cheia de sentidos vitais guardados ali. Aqui vemos o lançar-se de Perla pessoa singular e plural, no mundo, o objetivo é amplo, resgatar a historia negra na luta contra o racismo através da valorização da africanidade. Com o trabalho das lendas africanas Perla resgata a dignidade das crianças, e a sua própria, a sua criatividade, a sua autonomia e autoria, a sua liberdade. Pode ouvi-los e respeitá-los valorizando-os como pessoas e como seres criadores. Segundo ela, esses jovens têm necessidade disso, assim como ela mesmo teve.

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