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Infância - memórias: cenários - personas

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

ELIZABETE MARIA ÁLVARES DOS SANTOS

INFÂNCIA- MEMÓRIAS: CENÁRIOS-PERSONAS

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ELIZABETE MARIA ÁLVARES DOS SANTOS

INFÂNCIA- MEMÓRIAS: CENÁRIOS-PERSONAS

Orientador: Dr. Marcos Falchero Falleiros

Linha de Pesquisa: Literatura e Memória Cultural

NATAL 2012

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Dedico a meus pais, Francisco Alves dos Santos (in memorian) e Nilda Álvares dos Santos.

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A Deus, por ter me proporcionado vida e sabedoria para seguir sempre em frente;

Aos professores do Programa de Pós -Graduação em Estudos da Linguagem, da UFRN, Derivaldo dos Santos, Andrey Oliveira, Antonio Medeiros e Carlos Braga pelas aulas, conversas, estímulos e sugestões bibliográficas, como também aos funcionários e colegas Gabriel e Bete pelo apoio constante, no exercício de suas funções;

À Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas, da UFRN, e ao Departamento de Pessoal, nas pessoas de Mirian Dantas dos Santos, Solange Álvares e Eduardo Antunes, pela confiança dispensada ao meu trabalho, permitindo que concluísse esse mestrado conciliando-o com meu horário de trabalho. Também, não poderia esquecer da valiosa compreensão recebida dos meus colegas de sala, Gerlane, Valéria, Murilo, Igor, Milla e Janilsa pelo entendimento nos momentos de “aperreio”, na escritura deste trabalho;

Ao Professor Dr. Marcos Falchero Falleiros pela orient ação deste trabalho e pelo carinho e amizade sempre presentes;

Aos membros da banca examinadora dessa dissertação, professores Dr. Manoel Freire Rodrigues e Dra. Rosanne Bezerra de Araújo, pela leitura atenta e generosa que fizeram do texto;

A minha amada família pelo apoio e compreensão em todos os momentos e aos amigos Mayara Pinheiro, Valeska Limeira, Maria Aparecida Ferreira, Aluísio Barros, Lanaísa Araújo, Célia Silva, Arivaldo Leandro Monte e Cláudio Ewerton Martins, sem o apoio dos quais estas páginas não poderiam ter sido escritas;

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Infância é, sem dúvida, memória, literatura de grande qualidade, respeitável, à medida que a história contada transita entre ficção e realidade. História social e pessoal, com tamanho senso de realidade, fazendo com que o leitor lucre com a honestidade e a sinceridade que produziu, nessa obra, resultados marcantes em sua constância de recortes quadro-a-quadro.

Lembrança e esquecimento são, portanto, os guiadores deste trabalho, tendo como propósito a denúncia do encontro da criança com a violência e, sendo o texto memorialístico, vê -se a importância da ficção para que esse tipo de narrativa se sustente. Busco, com isso, mostrar no tom humanizador deste relato de memórias, o seu significado profundo e decisivo, através dos conceitos de memória de Le goff, de Seligmann -Silva e de Ecléa Bosi. É, também, através das teorias de Jeanne M arie Ganegbin que justifico o conceito de lembrança e esquecimento e que, me utilizando dos conceitos de Eliane Zagury, acrescento e amparo a relação da autobiografia como meio de expressão do relato de memórias.

Por último, em Infância, não há espaço para a fantasia. O lirismo que se avassala, no decorrer de cada capítulo, comanda a imaginação do autor. A necessidade de inventar cede espaço à necessidade de depor, de denunciar. E essa transição ocorre de forma lenta e gradual, assim como lenta é a vida do menino Graciliano, diante de tanta humilhação e submissão.

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Infância is undoubtedly memory, high quality literature, reputable, as the story moves between fiction and reality. Personal and social history, with such a sense of reality, causing the reader to profit from the honesty and the sincerity producing, in this work, remarkable results in a constancy of clippings, frame -by-frame. Memory and oblivion are this work guidance . We aim to denounce the relationship between the child and violence, and as it is a memorialistic text, we see the importance of fiction for this typ e of narrative to be sustained. I aim thereby show the tone of this report humanizing memories, its deep and decisive meaning, through the memories concepts by Le Goff, by Seligmann-Silva and by Ecléa Bosi. It is also through the theories of Jeanne Marie G anegbin that I justify the concept of remembering and forgetting, and also it is also according the concepts of Eliane Zagury that I give support to the importance of autobiography as a a mean of expressing the reported memories.

Finally, in Infância, there is no room for fantasy. The lyricism that overwhelms, throughout each chapter, commands the author's imagination. The need to invent gives way to the need to testify, to denounce. And this transition occurs gradually, slow as

Graciliano’s child life, due to such humiliation and submission.

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“Os fracos se queixavam, os fortes gritavam

mandando, constituíam uma sociedade. Sapos negociantes, sapos vaqueiros, o reverendo sapo João Inácio, o sapo José da Luz, amigo da distinta farda, sapos traquinas, filhos do cururu Teotoninho Sabiá, o sapo alfaiate, mestre Firmo, a sapa Rosenda lavadeira a tagarelar os mexericos da beira da água. O nosso mundo exíguo podia alarga-se um pouco, enfeitar-se de

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...9

CAPÍTULO PRIMEIRO...17

1.1 GRACILIANO E O HISTÓRICO...17

1.2 MEMORIALISMO – EU – ORALIDADE...25

1.3 LEMBRANÇA ESQUECIMENTO FICÇÃO...50

CAPÍTULO SEGUNDO...63

2.1 NARRATIVA ORAL E MODERNIDADE...63

2.2 BICHOS COISAS PESSOAS CENÁRIOS...73

CONCLUSÃO...87

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INTRODUÇÃO

Infância, obra de tom memorialista, é a própria anatomia do interior do seu autor, que se vale da literatura para retratar, parte da história de sua vida; da cultura de uma região e, também, da realidade político-social de uma época.

O livro narra os onze primeiros anos de vida do garoto Graciliano Ramos. Segundo Antonio Candido: “talvez seja errado

dizer que Vidas Secas é o último livro de ficção de Graciliano”.

Ainda conforme Candido, no mesmo ensaio acima referenciado:

Infância pode ser lido como tal, pois sua fatura convém tanto à exposição da verdade quanto d a vida imaginária; nele as pessoas parecem personagens e o escritor se aproxima delas por meio da interpretação literária, situando -as como criações (1992, p.50).

O silêncio do menino Graciliano já indicava a sua militância: descrevendo seus pais como car rascos, exibindo a natureza como impiedosa, relatando situações arbitrárias numa espécie de levante contra um regime que ele não se permitia aceitar. Como torturado silenciou, como militante denunciou os maus -tratos, fazendo referências às inúmeras injusti ças, como os casos do Cinturão; do Venta-Romba; do garoto que estava sendo surrado injustamente; da conduta estranha de Chico Brabo e de outras situações -denúncias que o menino guardou para o escritor: coube a esse menino reter na memória o grito silencios o do seu protesto.

Não apenas em Memórias do cárcere, mas também em sua vida, nos aspectos geográficos, paternos ou religiosos, é visível a inquietação diante dessas injustiças, tendo assim como traços constantes em sua narração autobiográfica, os sentime ntos de dor,

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de nebulosidade, somente a descoberta do novo traz consistência e, passo a passo, remonta uma vida que, a princípio, par ecia tão sem sentido:

O narrador de Infância se encarrega de nos ensinar algumas das razões dessa cadeia necessária de sofrimentos. Os castigos imerecidos, as maldades sem motivo, de que são vítimas os fracos, estão na base da organização do mundo. Ele, a priminha, João, o colega, Venta-Romba, a irmã natural representam a semente da filosofia de vida característica dos romances de Graciliano Ramos. Ela não é nova nem brilhante, e isso não importa. Um artista nada mais faz do que tomar os lugares -comuns e renová-los pela criação (CANDIDO, 1992, p. 54).

O que se vê, de certa forma, em Infância, é a denúncia, é o posicionamento revolucionário, de esquerda, diante de uma vida marcada pela secura das relações humanas. As cenas e as circunstâncias que exibem esses acontecimentos são marcas vagarosas e detalhadas como se, ao escrever, o autor sentisse o tempo voltar. Não privou o leitor da responsabilidade de pensar no tempo, de ser responsabilizado pela condição de testemunho de um quadro pintado à mão, da rea lidade social de uma época, em uma determinada região.

Dessa forma, fica esse leitor desobrigado de inserir a obra nas linhas da ficção do mero registro literário. É possível estabelecer relações com esses aspectos, nunca delimitando fronteiras.

A história contada transcende o pessoal e o ficcional. E isso é a grande contribuição que o escritor dá à literatura brasileira. Não cabe ao crítico encaixar a história, é preciso que ele tenha a consciência do material apreendido.

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realidade, fazendo com que o leitor lucre com a honestidade e a sinceridade com que se produziu essa o bra com seus resultados marcantes e seus constantes recortes de memórias. Sabemos que escrever memórias não é lembrar com exatidão dos fatos do passado e repeti-los no presente, mas sim reelaborá -los, combinando-os com fatos presentes, se utilizando da fic ção, como

se fosse costurando “retalhos”, dando-lhes significados diversos

dos que tiveram no momento passado. Esse nosso entendimento se encaixa, perfeitamente, ao que Falleiros escreveu sobre a

construção desses “retalhos” da memória:

Em Infância, o narrador evita, delicadamente, entrar pela crítica da gênese biográfica, fora de sua alçada, mas mobiliza os retalhos da memória para explicar o vínculo autor -obra num plano meramente alusivo (1990, p. 4-5).

Antonio Candido, em “Os bichos do subterrâneo”, não saindo

do mesmo viés, aliando poética à realidade, revela que:

Infância, como foi dito, conserva a tonalidade ficcional e é composto segundo um revestimento poético da realidade, que despersonaliza dalgum modo o depoimento e o mergulha na fluidez da evocação (1992, p.87).

Portanto, temos que essa distância temporal entre os fatos vividos e os ora narrados, em Infância, confere a estes últimos, posição de invenção, de criação, de fantasia, atualizados pela ficção. Essa ideia de impossibilidade de passar para o papel, a recorrência permanente à ficção é que permite o escritor, transformando-se em personagem, construir seu retrato, embora lacunar, com o auxílio da narrativa.

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memória é uma espécie de doença, pois estanca o indivíduo no passado e o impede de enxergar e entregar -se ao fluxo da vida atual, a única com chances de ser vivida. Então, devemos sim considerar o esquecimento ao estuda rmos a obra memorialística Infância (1945), onde é esquecendo o passado traumático que Graciliano busca a compreensão do outro. Somente a capacidade de esquecer, principalmente quando se trata de situações traumáticas vividas repetidamente, é que faz do ho mem um reprodutor de fatos.

Lembrança e esquecimento são, portanto, os guiadores deste trabalho, tendo como propósito a denúncia do encontro da criança com a violência e, sendo o texto memorialístico, vê -se a importância da ficção para que esse tipo de nar rativa se sustente. Graciliano busca, através do esquecimento, em Infância,

humanizar o outro. Segundo Antonio Candido, em “O direito à literatura” (2004, p. 171): “o temor é um dos caminhos para a compreensão”. Vemos, nas palavras de Candido, que a

compreensão dos problemas sociais é a chave para a igualdade de tratamento entre os povos e a literatura entra nesse contexto para revelar esse desejo pelo equilíbrio social, um dos pontos abordados na obra Infância. Buscamos, então, ao longo de nosso estudo mostrar, no tom humanizador desse relato de memórias, o seu significado profundo e decisivo. Percebe -se, ao longo da narrativa, que o motivo maior desse esquecimento, ao rememorar, é exatamente a necessidade de compreensão e entendimento, de empatia, de identificação desse outro. Para darmos voz a essa

nossa observação de “empatia”, no mundo de Ramos, fazemos referência a Alfredo Bosi, em seu ensaio “Céu, inferno”, onde ele

transcreve um trecho de Vidas secas:

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começavam a reproduzir o gesto hereditário” (BOSI

apud RAMOS, 2003, p. 24).

Sabemos que, em Infância, o lirismo que se avassala, no decorrer de cada capítulo, comanda a imaginação do autor. Não é um lirismo que recebe, que abriga, que traz à lembrança o lado doce da vida, tampouco aquele que enaltece o passado. É, sim, a necessidade de inventar cedendo espaço à necessidade de depor, de denunciar. E essa transição ocorre de forma lenta e gradual, assim como lenta é a vida do menino Graciliano, diante de tanta

humilhação e submissão. Para Adorno, em “Palestra sobre Lírica e

sociedade” (2003, p. 89): “a lírica fala em nome do pensamento de

uma humanidade livre”. Vemos, então, que a presença social nas

linhas de Infância está apoiada nessa afirmação de Adorno, expressada no resguardar-se do sujeito, reagindo à “coisificação”

do mundo. Na pagina 70, desse mesmo ensa io, destacamos um trecho, o qual, a nosso ver, respalda e confirma o tom humanizador de Infância: “somente através da humanização há de

ser devolvido à natureza o direito que lhe foi tirado pela dominação

humana da natureza”.

A singularidade da obra não vem de uma simples foto empoeirada, nem de meros registros pessoais do autor, mas de sua verdade literária, da qualidade de sua escrita, regida pelas marcas fortes e determinantes de um dado tempo de sua existência.

O livro se ocupa em registrar o espaço dessa existência, que teria de vingar, a qualquer custo, sem entre -linhas.

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O que resulta é um livro literário e autobiográfico. O passado não tem a solidez dos documentos. As dores, mais que os prazeres estão na escrita e na vida narrada. O passado é uma densa bruma. O contador hesita, esquece-e-lembra, mas o romancista maduro e o artesão virtuoso, mostram -se, fundem-se com o menino e se afastam dele (...) (2011, p.267).

Vê-se, no decorrer da leitura desses relatos, um duelo desumano travado entre o menino oprimido, maltratado pela vida e o homem escritor que não conseguiu apagar essas marcas temporais, causadas pelas contingências de sua realidade.

Sem dúvida, essa literatura silenciosa e seca, mesmo explicada pela crítica, ou m esmo situada em um movimento

literário nacional, tem sua textura, sua marca como um “negativo”

de material fotográfico: resultado do que o autor não pôde liberar, muito menos apagar, portanto, denuncia, pela necessidade de se auto-contar, de se auto-revelar.

Também, tem-se em Infância, a senha para se reconhecer a vida de um garoto, relembrada pela sisudez do homem Graciliano Ramos, pela escrita seca e sem adjetivação, objetiva, capaz de contemplar uma realidade dura ou a aspereza dela, produzindo capítulos que expressam economia, não de palavras, mas de enfado. O autor Graciliano escreve duro, escreve pedra, escreve ele, revelando a ausência de cores, próprias da infância que ele viveu.

O livro, desde seu título, carrega a falta de complemento e a secura de suas palavras, pois este Infância é seco, como seco é o tempo nele relatado. Carpeaux vai mais além e complementa:

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até a cachorrinha Baleia, cuja morte me comoveu intensamente (...) (1997, p.30).

Além do valor estético da obra, ao deslocar o olhar do adulto para um tempo distante e difícil, Graciliano ainda retoma, no decorrer da narrativa, lembranças da infância para revelar os sentimentos mais escondidos. O autor não assume papéis de herói, mas de ser humano igual a qualquer outro. O compromisso com a verdade dura, real, o desejo inexplicável de exibi -la sem disfarces, sem maquiagem literária, faz da sua literatura, arte despida e visceral, a própria expressão de sua memória e personalidade. É o que Martins (1977, p. 43) diz: “sentimos em

todo o livro a preocupação com a verdade, com a espontaneidade,

com a ‘inocência’”. Em nosso estudo, além de abordar esses

aspectos observados por Martins, também direcionaremos o nosso trabalho para o tom humanizador que Graciliano apresenta em sua obra Infância e o significado importante que esse tom proporciona ao relato de memórias.

Ainda, em toda obra de Graciliano os problemas relatados pelo autor, não somente o afetam, mas também o seu meio social. Daí, o sujeito empírico recriar o passado e tentar dar -lhe sentido. É o que atesta, ainda, Carpeaux:

Todos os romances de Graciliano Ramos – e este é o sentido de seu experimentar – são tentativas de

destruição: tentativas de “acabar com minha

memória”, tentativas de dissolver as recordações pelos “estranhos hiatos” dum sonho angustiado. “Trata-se de saber que mundo de recordações se

dissolve assim”. (1977, p. 31-32).

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biografismo que sempre se atribuiu a Infância. Com esta crônica, Graciliano denuncia toda uma ambiência cultural, ou seja, um coletivo e não apenas suas idiossincrasias sobre suas memórias de infância. Esta descrição se observa em Reis:

Enquanto alguns se jactavam de usar a primeira

pessoa, Ramos tinha ojeriza ao “pronomezinho irritante”. Testemunhar sobre a condição humana

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CAPÍTULO PRIMEIRO

1.1 GRACILIANO E O HISTÓRICO

Com a chegada do fim do século XIX, o otimismo da era das revoluções sai de cena, cedendo espaço a um olhar mais reflexivo e pessimista. Na Europa do fim desse século, havia muitas inquietações e indefinições e as descobertas científicas deram início a um processo de mudança de mentalidade, pois provocaram alteração de valores centenários e o questionamento de convicções religiosas. A sociedade teve que acomodar a economia capitalista, que trouxe prosperidade para a elite e miséria para o proletariado, conforme Hobsbawun, 1961.

Na literatura, uma onda de pessimismo se espalha pela Europa. O artista já não pode se apoiar nos sent imentos que no Romantismo serviram de filtro para a compreensão da realidade. Não acredita que a razão chave que adotou para a explicação e interpretação do mundo depois da revolução Industrial, seja ainda suficiente para orientar seu olhar e inspirar sua arte. Desconfia da realidade, considera-a enganadora. Entende que o mundo concreto, visível, dá ao ser a sensação de conhecimento, mas que a razão não lhe permite ver o que vai além do real, não lhe dá meios para alcançar o desconhecido.

No Brasil, os primeiros anos da República, final do Século XIX, são agitados. O nordeste é flagelado pela seca e sacudido pela guerra de Canudos (1896-1897), profetizada pelo messiânico Antonio Conselheiro que queria transformar o sertão nordestino em mar. Essa guerra foi considerada um dos eventos de confrontos internos mais sangrentos do país. O sertão nordestino virou palco para batalhas entre a política e grupo de cangaceiros, que exigiam

dos coronéis o pagamento de “taxas” de proteção de suas

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No norte, a borracha traz riqueza e prosperidade para uma região isolada e desconhecida. Com a riqueza que a extração da borracha gerava, Manaus e Belém prosperaram, tornaram -se importantes centro culturais, como registram até hoje os

monumentais “palácios” erguidos pelos barões da borracha nessas

duas capitais.

No Sudeste do Brasil, a riqueza de São Paulo é proveniente

do café, o “ouro negro”. Imigrantes começam a chegar, com

costumes diferentes, atraindo milhares de brasileiros esperançosos em conseguir um trabalho estável e mais bem remunerado.

O desafio da Literatura, portanto, era a representação desses contrastes. Passava da hora de dar voz a um país com tanta diversidade e complexidade.

Mesmo assim, com a Proclamação da República, em 1888, o cenário econômico brasileiro não teve grandes mudanças. A situação das famílias que viviam no campo, dois terços da população do país, naquela época, continuava sendo determinada pelos latifundiários, que controlavam extensas porções de terra tanto no litoral quanto no interior. Nessa época a região Nordeste do país enfrentava o crônico problema da seca, cujo tema foi enfaticamente exposto e denunciado, por Graciliano, em Vidas secas (1938). Segundo Candido, em seu ensaio “A revolução de 1930 e a cultura” (1989, p. 186): “Graças a isto, no decênio de

1930, o inconformismo e o anticonvencionalismo se tornaram um

direito”, trazendo níveis de “aceitação” da escrita de alguns

escritores, dentre eles Graciliano Ramos. Logo, a produção literária dessa época se fragmenta e outros autores escrevem sobre as diferentes regiões, os centro urbanos, os funcionários públicos, os sertanejos, os imigrantes. Graciliano, em sua vasta obra, dá conta de todos esses temas e os retrata, sabiamente.

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nos primeiros anos do século XIX era a de olhar para o Brasil e usar a literatura como meio para torná -lo mais conhecido pelos brasileiros, desviando o olhar das classes sociais mais privilegiadas que, até aquele momento, ocupavam boa parte da s páginas dos romances escritos. Iniciou -se, então, uma busca por narrativas mais voltadas para os acontecimentos históricos e atuais. Como consequência natural da maior aproximação entre literatura e realidade, há uma maior crítica à realidade social e econômica contemporânea, enfim, a constituição de uma literatura que retratasse verdadeiramente o Brasil do século XX.

Então, os ecos da denúncia de um Brasil ainda por descobrir, cujos problemas precisavam ser conhecidos pelo resto do país, determinaram os rumos da prosa dos autores da geração de 1930. A produção literária desse período privilegiou as questões sociais e ideológicas de um país maltratado pela seca, pela miséria de seus habitantes, pela travessia de seus retirantes. Os dramas da região nordestina são o traço mais forte das obras dessa época, de uma certa tendência de alguns autores dessa época, mostra ndo o cenário devastador e desolador consequente da fome que determina a vida do sertanejo. Destacamos um trecho de Candido, como nota a essa nova modalidade de narrativa, pode ndo assim dizer:

É o caso do “romance do Nordeste”, considerado

naquela altura pela média da opinião como o romance por excelência. A sua voga provém em parte do fato de radicar na linha da ficção regional

(embora não “regionalista”, no sentido pitoresco),

feita agora com uma liberdade de narração e linguagem antes desconhecida. Mas deriva também, do fato de todo o País ter tomado consciência de uma parte vital, o Nordeste, representado na sua realidade viva pela literatura (1989, p.187).

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e pela diversidade cultural. É a denúncia da realidade que cerca seu povo.

Nas três primeiras décadas do século XX, o cenário artístico europeu também vivia um momento de grande agitação. Diferentes movimentos artísticos chamados de vanguardas surgiram para estabelecer novas referências para a pintura, a literatura, a música, e a escultura. O termo vanguarda hoje é usado para definir uma postura que antecipa um novo caminho, seja esse literário, artístico ou científico, clamando pela diferença, por novos padrões estéticos para um mundo em transformação. Não diferentemente da Europa e dos Estados Unidos, no Brasil dos anos 30, houve

uma “espécie de convívio íntimo entre a Literatura e as ideologias políticas e religiosas” (Candido, 1989, p. 188).

Com o término da Republica Velha, em 1930, no Brasil controlado pelos grandes proprietários rurais, deu -se início a era de Vargas, que se estenderia até 1945, ano de publicação de Infância. Exposto ao horror de duas grandes guerras, o ser

humano vive “tempos sombrios” em meados do Século XX. O que

significa, então, estar no mundo? A esperança deve ser depositada nos indivíduos ou projetada na espiritualidade? Confrontada com questões como essas, a literatura precisa encontrar novos caminhos, abandonando a relativa leve za que a marcou, no início do século XX.

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Graciliano, “comunista”, numa prisão em Maceió, em março de 1936, acusado de subversão. Foi libertado, no Rio de Janeiro, em 1937. Essa época na prisão serviu de tema para sua obra Memórias do cárcere, publicado postumamente, em 1953. Um dos ganhos dessa nova era literária dos anos 30 foi o da consci ência com relação às contradições da própria sociedade, dando maior visibilidade aos aspectos culturais de nosso País. Os escritores dessa fase passaram a serem vistos com o “opositor”, nas palavras

de Candido:

Uma das consequências foi o conceito de inte lectual e artista como opositor, ou seja, que o seu lugar é no lado oposto da ordem estabelecida; e que faz parte da sua natureza adotar uma posição crítica em face dos regimes autoritários e da mentalidade conservadora (1989, p.195).

Em 1941, o cenário da Segunda Guerra Mundial (1939 -1945) agravou-se com o bombardeio de Pearl Harbor. Em 1945, o resultado da destruição era devastador e inacreditável: a rendição alemã expunha ao mundo as atrocidades cometidas contra milhões de judeus e outros cidadãos perte ncentes a grupos considerados

“indesejáveis” pelo governo nazista (homossexuais, ciganos,

comunistas, deficientes físicos e mentais, sindicalistas, membros de grupos religiosos católicos e protestantes, prisioneiros de guerra soviéticos). O lançamento das bombas atômicas, em agosto de 1945, contra as cidades japonesas de Hiro shima e Nagasaki revelou que a última fronteira da ética havia sido cruzada pela

ciência: o ser humano havia descoberto uma forma “eficiente” de

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define o projeto literário da prosa dessa época, sendo a obra Infância um exemplo claro dessa reflexão.

Esse contexto sombrio da Segunda Guerra Mundial e as atrocidades cometidas em nome do poder geram uma forte necessidade de resgatar a crença de que a nossa espécie pode ser

realmente “humana”. A espiritualidade também vive um momento

de grande conflito, porque não fica fácil compreender Deus (independentemente do nome que receba) quanto compreender a humanidade, diante da cruel existência de bombas atômicas e campos de concentração. A análise do ser humano e de suas angústias, o desejo de compreender a relação entre o indivíduo e a sociedade da qual faz parte são, portanto, os elementos recorrentes nas obras produzidas nessa época, de 1945 . É a necessidade de uma produção com forte dimensão social, expondo aos leitores acontecimentos que testemunham e para os quais buscam uma explicação. Então, os romancistas dessa geração, principalmente na região Nordeste, época que ficou conhecida

como “a era do romance brasileiro” preocupados com o país em

que viviam, usaram a narrativa como instrumento de denúncia de uma realidade para retratar essa realidade social. Graciliano foi um dos maiores expoentes, senão o maior, para essa geração. Alfredo Bosi, em História concisa da Literatura Brasileira nos dá uma visão geral sobre o realismo das obras de Ramos:

O realismo de Graciliano não é orgânico nem

espontâneo. É crítico. O “herói” é sempre um

problema: não aceita o mundo, nem os outros, nem a si mesmo. Sofrendo pelas distâncias que o separam da placenta familiar ou grupal, introjeta o conflito numa conduta de extrema dureza que é a sua única máscara possível. E o romancista encontra no trato analítico dessa máscara a melhor fórmula de fixar as tensões sociais como primeiro motor de todos os comportamentos (1994, p. 402).

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Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente, andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros aparec eu longe, através dos galhos pelados da catinga rala (RAMOS, 2008, p.9).

Estamos diante de um fragmento que ilustra o impacto do meio sobre o indivíduo. Vemos que o modo encontrado por Graciliano para mostrar isso, foi fazer com que o enredo de suas obras nascesse da relação entre o contexto socioeconômico e o espaço (caracterizado de modo bem definido). O livro de memórias, Infância, desenvolve, portanto, de maneira bem peculiar, esse projeto de denúncia social. Muito mais do que apenas romances regionalistas, os textos de Graciliano falam de problemas humanos universais. O cuidado com as palavras é um dos traços mais importantes de sua prosa. A economia absoluta do uso de adjetivos e advérbios, a escolha adequada e cuidadosa dos substantivos que m elhor contam e denunciam uma realidade, enfim todos os aspectos da construção de seus romances colaboram

para a criação do “realismo bruto”. A linguagem usada em seus

romances constrói o olhar realista, através da ficção. Observemos, por exemplo, como o narrador de Infância, descreve as pessoas comuns:

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1.2 MEMORIALISMO EU ORALIDADE

Visto que as palavras têm o poder de representar o pensamento, e, seria justamente esse pensamento traduzido mentalmente, que se transforma em imagem concreta quando da passagem de uma obra literária para o imagético, podemos dizer que a relação entre a literatura e a realidade se sustentam na verdade que passa a ser o próprio tecido do texto.

Historicamente, sabe-se que o início da elaboração da infância, como tema literário na lírica brasileira, é atribuído aos românticos. Além disso, desde os primórdios do século XIX, a infância foi produto dos vates brasileiros. No século XX, o tema se consolidou, o que de certa maneira acompanhou vanguardas estéticas européias e da Hispano -América, conforme atesta Eliane Zagury, em A escrita do eu:

(...) como prova da genuinidade literária no Brasil: é na década de 40 que surgem, entre nós, as memórias de infância, subgênero da literatura confessional que veio produzir textos de qualidade indiscutível, sendo mesmo um dos sustentáculos da nossa prosa lírica (1982, p. 14).

Essa genuinidade, não afastou das memórias de infância o estigma de literatura menor, u ma espécie de apêndice na bibliografia de um grande poeta ou romancista maduro esteticamente. Ora, como poderia ser pensada, discutida e registrada a infância senão em um momento posterior? É patente na forma muito imediata de se trabalhar na infância resu ltados imberbes dos nossos românticos.

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pessoas, dos bichos, em seu mais íntimo olhar, como forma de reintegrar, reconstruir e perfazer o c iclo de sua infância.

Antonio Candido (1992) ilustra essa jornada com uma

passagem no início de seu ensaio “Ficção e confissão”:

Para ler Graciliano Ramos, talvez convenha ao leitor aparelhar-se do espírito de jornada, dispondo -se a uma experiência que se desdobra em etapas e, principiada na narração de costumes, termina pela confissão das mais vívidas emoções pessoais ( 1992, p.13).

Ainda, nesse mesmo ensaio, Candido (1992, p.65), se posicionando em relação à obra de Ramos, afirma que a passagem

“da ficção para a autobiografia” foi um “desdobramento coerente e necessário de sua obra”, justificando com isso o caráter

confessional da obra do escritor Graciliano.

Há, portanto, em Infância, a necessidade de depoimento como expressão de sua verdade pura e c rua, fazendo com que as passagens memorialísticas de sua ficção sejam interpretadas como exposição do pessoal, características firmes do testemunho e da autobiografia.

Em entrevista a Homero Senna (in Brayner, 1977, p. 55), Ramos confirmou os reflexos que sua vida tem na sua literatura,

dizendo: “Nunca pude sair de mim mesmo. Só posso escrever o

que sou. E se as personagens se comportam de modos diferentes,

é porque não sou um só”. Essa declaração mostra que seus livros

de memórias e seus relatos ficcionai s estão em completa conexão com o homem e o escritor.

Percebemos, também, ao longo da obra em estudo, retratos negativos dos pais, professores, conterrâneos e até de sua própria

figura, como forma de nos “presentear” com os aspectos sombrios

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Para nos posicionarmos nesse sentido do pessimismo que Infância parece retratar, vamos tecer nossas considerações partindo de uma análise de Ecléa Bosi em Memória e Sociedade – Lembrança de Velhos:

Se o adulto não dispõe de tempo ou desejo para reconstruir a infância, o velho se curva sobre ela como os gregos sobre a idade de ouro.

Se examinarmos criticamente a meninice, podemos encontrar nela aspirações t runcadas, injustiças, prepotência, a hostilidade habitual contra os fracos. Poucos puderam ver florescer seus talentos, cumprir sua vocação mais verdadeira. Comparamos acaso nossos ideais antigos com os presentes? Examinamos as raízes desse desengano progr essivo das relações sociais? (2007, p. 83).

Percebemos, nesse trecho escrito por Ecléa Bosi, que o que resta ao adulto é tão somente o desejo de evocação da infância, do passado onde tudo era lúdico, tinha cores, resplandecia. A reflexão e a constatação dos “velhos” é que foi tirado deles, o direito de escolha. O sentimento de inferioridade, diante de suas impossibilidades, aflora e grita abafadamente. Portanto, narra -se pela experiência adquirida, transformando -a em “experiência dos

que a escuta”, de acordo com Bosi, E. (2007, p. 85).

Levando-se em consideração que os velhos, nas sociedades tradicionais ou orais, tinham um lugar de dest aque como detentor de sabedoria e, sua ausência, portanto, nos privaria de experiências significativas, conforme nos asse gura Ecléa Bosi, no mesmo ensaio:

(30)

No início de seu livro, Ecléa Bosi chama nossa atenção para o fato de que:

A memória não é oprimida apenas porque lhe foram roubados suportes materiais, mas também porque uma outra ação, mais daninha e sinistra, sufoca a lembrança: a história oficial celebrativa cujo triunfalismo é a vitória do vencedor a pisotear a tradição dos vencidos (2007, p.19).

Para darmos cabo a essa nossa discussão sobre tradição e modernidade, apresentaremos alguns conceitos chaves, a nosso ver, imprescindíveis a nossa aná lise.

Para isso, a partir dos estudos sobre tradição e modernidade (enquanto elementos constituintes e estruturantes do sistema literário), desenvolvidos por Antonio Candido, Octavio Paz e Bornheim, demonstraremos o modo como Graciliano Ramos participará do processo de (re) constituição da história cultural do seu país, do ponto de vista da tradição.

(31)

Dentre esses denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes de uma fase literária, e que são, além das características internas (língua, temas, imagens), certos elementos de natureza social e psíquica, Candido destaca a existência de: (1) um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; (2) um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; e (3) um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem traduzida em estilos), que liga uns a outros. A literatura,

“um tipo de comunicação inter-humana”, feito sistema simbólico”, e

daí resultante, será o meio pelo qual “as veleidades mais

profundas do indivíduo se transformam em elementos de contato entre os homens, e de interpretação das diferentes esferas da

realidade” (CANDIDO, 2009, p.25).

O produtor literário ao integrar -se a tal sistema (autor → obras ← leitores), possibilita a ocorrência de outro elemento

decisivo: a formação da continuidade literária. Con forme Antonio Candido (2009), o produtor, tal qual o corredor que passa a tocha para o outro, assegura no tempo o movimento conjunto, define os lineamentos de um todo. E somos levados, então, a compreender, pela simbologia associada à imagem que nos é ofer tada [o fogo], que à ideia de sistema literário associa -se, indubitavelmente, a ideia de continuidade, de permanência e de questionamento, logo, a ideia de tradição.

O que seria, então, a tradição? O filósofo Gerd Bornheim (1987), em O Conceito da tradição, considerando a etimologia da palavra e suas acepções dicionarizadas, entre outros aspectos do conceito, nos diz que:

(32)

que, através da tradição, algo é dito de geração a geração (BORNHEIM, 1987, p. 18).

Este algo que é dito ou escrito, voz e/ou letra, conservada em memória, ou por escrito, inclui as formas narrativas comumente conhecidas, como: notícias, lendas, histórias, cre nças, costumes, formas literárias e artísticas, ideias, estilos.

Então, esse conjunto de elementos transmitidos de uma

geração a outra, “formando padrões que se impõem ao

pensamento ou ao comportamento, e aos quais somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar” (CANDIDO, 2009, p. 26), constitui a tradição. E sem ela, “não há literatura, como fenômeno

de civilização” (CANDIDO, p. 29).

E, por estarmos o tempo inteiro “como que inseridos nela, a

ponto de revelar-se muito difícil desembaraçar -se de suas peias

[valores]”, nos lembra Bornheim (1987, p.18), que a tradição, de

certa maneira, também nos constitui, pois, não se trata apenas das formas do conhecimento ou das opiniões que temos, mas também da totalidade do comportamento humano, que só se dei xa elucidar a partir do conjunto de valores constitutivos de uma determinada

sociedade” (BORHHEIM, p. 20).

Decerto, ““no difícil desembaraçar-se de suas peias” residiria a

vontade de “ser permanente” comumente associada à tradição.

Desejo, ainda segundo Bornheim, que persiste emperrado na vontade.

Por sua vez, o poeta e crítico mexicano Octavio Paz (1984), em Os filhos do barro, intentando nos apresentar a linha de pensamento que direcionou as suas reflexões por ocasião das conferências que proferiu na Universidade de Harvard (Charles Eliot Norton Lectures), no primeiro semestre de 1972, sobre a

tradição moderna da poesia, nos dirá que “a expressão não só nos

significa que há uma poesia moderna, como que o moderno é uma tradição. Uma tradição feita de in terrupções, em que cada ruptura

(33)

Segundo Octavio Paz (1984), a Modernidade nunca é ela mesma: sempre é outra. Polêmica, em seu princípio ativo, a Modernidade é uma tradição que desaloja a tradição imperante, qualquer que seja esta; porém, desaloja-a para, um instante após, ceder lugar a outra tradição que, por sua vez, é outra manifestação momentânea da atualidade e assim sucessivamente. Tradição heterogênea ou do heterogêneo, a Modernidade está condenada à pluralidade, pois se a antiga tradição era sempre a mesma, a moderna será sempre distinta. E se a primeira postulava a unidade entre o passado e o presente, a segunda, não contente em subtrair a diferença entre ambos, afirmará que esse passado não é único, mas plural:

Tradição do moderno: heterogeneidade, pluralidade de passados, estranheza radical. Nem o moderno é a continuidade do passado no presente, nem o hoje é filho do ontem: são sua ruptura, sua negação. O moderno é autossuficiente: cada vez que aparece, funda a sua própria tradição (1984, PAZ, p.18).

O moderno não se caracteriza somente por sua novidade, mas sim por sua heterogeneidade, pois o novo em si não é garantia do moderno: há novidades que não são modernas, aponta Octavio Paz usando como referência o crítico norte -americano Harold Rosenberg e a obra The Tradition of the New:

O título do livro de Rosenberg expressa com saudável e lúcida insolência o paradoxo que fundou a arte e a poesia do nosso tempo. Um paradoxo que é, simultaneamente, o princípio intelectual que as justifica e que as nega, s eu alimento e seu veneno. A arte e a poesia de nosso tempo vivem de modernidade e morrem por ela (1984, PAZ, p.18).

(34)

palavra crítica. Mas não sozinha, a ela deverá vir acoplada à paixão a fim de subtrair o caráter paradoxal de nosso culto ao moderno:

Paixão crítica: amor imoderado, passional, pela crítica e seus precisos mecani smos de desconstrução, mas também crítica enamorada de seu objeto, crítica apaixonada por aquilo mesmo que nega. Enamorada de si mesma e sempre em guerra consigo mesma, não afirma nada de permanente nem se baseia em nenhum princípio: a negação de todos os princípios, a mudança perpétua é seu princípio (1984, PAZ p.21).

Voltando aos conceitos de Ecléia Bosi como S endo a velhice naturalmente um destino do indivíduo e também uma categoria

social, ainda segundo a autora (2007, p. 82): “um mundo social

que possui uma riqueza e uma diversidade que não conhecemos pode chegar-nos pela memória dos velhos”. Portanto, o seu

aniquilamento seria suficiente para que o elo – já fortemente fraturado – fosse para sempre quebrado. Justificamos o uso desse comentário baseado nas ideias de Ecléa Bosi, Antonio Candido, Octavio Paz e Bornheim, numa tentativa de enxergar, na obra Infância, nas passagens em que o menino Graciliano se interessa

em ouvir as experiências, os “causos” que os mais velhos contam

como crença na verdade expressa por eles, em virtude do tempo vivido e das experiências de vida acumuladas. Todos a nosso ver, exemplos de tradição.

Ilustraremos, agora, essa valoração pelas experiências dos velhos, em um trecho de Infância:

(35)

E ainda:

Pela primeira vez falaram -me do diabo. É possível que tenham falado antes, mas foi aí que fixei o nome deste espírito: sem conhecê-lo direito, soube que ele andava solto nos redemoinhos que varriam o pátio, misturado a folhas e garranchos (RAMOS, 2011, p. 28).

Vê-se, portanto que a valorização da tradição, que é o respeito as experiências dos velhos, dá um a r de continuidade e de conhecimento aos fatos acontecidos, numa determinada época, em uma determinada sociedade. Sem continuidade, não há memória. Observemos que esse fato é inerente à sociedade industrial, capitalista, estruturada como espaço de competiçã o, de lucro, dos jovens, onde nela todo sentimento de continuidade é destro çado. Concluímos, então, que para a modernidade, o elo fraco da corrente – os velhos – causa um mal estar na sociedade moderna. Ecléa Bosi ainda nos presenteia com uma célebre perg unta:

Como deveria ser uma sociedade, para que, na velhice, o homem permaneça um homem? A resposta

é radical para Simone de Beauvoir: “Seria preciso

que ele sempre tivesse sido tratado como homem

(BOSI, E., 2007, p.81) [grifo nosso].

Esta é, portanto, uma lição a ser apreendida por todos, desde a infância. Percebe-se, com isso, que ao infante não lhe é dado o direito de voz e que lhe é tolhido o direito de ser respeitado, como criança. Então, não resta nenhuma alternativa a esse ser, que não seja a de retratar com maestria os tempos

sombrios de uma infância. O lirismo “seco” que se avassala, nas

(36)

a crítica chama de “pessimismo”. Graciliano, pelo contrário, da

primeira à última página desse relato de memórias está

exatamente “gritando”, clamando, com otimismo, por uma

sociedade mais justa. Para tanto, uma das soluções que foi dada

ao “velho” Graciliano foi a de relatar, através de suas memórias

fragmentárias, pelas mãos pedintes do garoto Graciliano, um dos

grandes problemas da modernidade: os “avanços” da sociedade

guiada pelo capital. “Avanços” os quais têm como consequências

sérias, esse desajuste e essa desigualdade de direitos, inerentes ao Brasil de 1945.

Com o intuito de escaparmos das propostas de leitura que a interpretação da obra de Ramos, e do próprio autor, são de tom pessimistas, devemos levar em consideração os aspectos da

sociedade dessa época. Logo, perceberemos que as “propostas”

de leituras no viés do pessimismo na verdade incorrem em percursos dignos de olhar diferente.

Então, de onde surgiu essa ideia de pessimismo? Esta palavra ocorre com muita força no contexto de estudos

graciliânicos. Candido, em seu ensaio “Ficção e confissão”, usou

essa palavra e daí ela foi deslocada para um uso isolado, autônomo e certamente falho. Para que não caiamos nos limites da interpretação, transcrevemos a passagem do ensaio de Candido

para que assim possamos observar o tom articulado “de seu pessimismo”:

(37)

outros homens e acabamos esmagados por ela. Nada tem sentido, porque no fundo de tudo há uma semente corruptora, que contamina os atos e os desvirtua em meras aparências. Uns se refugiam na ironia e no cepticismo, como João Valério, ou na fúria decepcionada da renúncia, como Paulo Honório. Outros se entregam ao desespero, como Luís da Silva. Outros, ainda, abrem os olhos sem entender e os baixam de novo, resignados, como Fabiano. Tudo depende do ponto de partida: da educação, das pancadas, do sexo reprimido ou satisfeito, da falta ou da abundância de di nheiro. O narrador de Infância se encarrega de nos ensinar algumas das razões dessa cadeia necessária de sofrimentos. Os castigos imerecidos, as maldades sem motivo, de que são vítimas os fracos, estão na base da organização do mundo. Ele, a priminha, João, o colega, Venta-Romba, a Irmã natural representam a semente da vida característica dos romances de Graciliano Ramos. Ela não é nova nem brilhante, isso não importa. Um artista nada mais faz do que tomar os lugares-comuns e renová-los pela criação (1999, p. 53-54).

Constatamos, com essa citação de Candido, em que situação

ocorre o “pessimismo” legado às obras de Ramos. Não podemos

esquecer a audaciosa postura do ensaísta e decorrentemente o modo como a imperícia das generalizações desvirtua o vocábulo.

São, no mínimo, apressadas avaliações críticas sobre um “sistema

literário” tão grandioso quanto à complexidade social que

representa. Esta, a representação da sociedade, desvela um espaço rural árido e dramático da subsistência entre secas, que, de acordo com a região, intermitentes ou permanentes, mais cruéis ou mais brandas, situa -se num sistema, produtivo agrário, onde

parte da produção é entregue ao fazendeiro em “gratidão” pela

moradia e cultivo da terra. Assim temos, então, nesta sociedade os coronelismos com suas atitudes “humilhantes”; famílias bastante

(38)

de migrações protagonizadas por décadas pelos nordestinos em busca do sul-sudeste, Rio, São Paulo, Minas, para o norte do país, como igualmente fizeram levas e levas de milhares de nordestinos para Serra Pelada ou para construção da Madeira -Mamoré. Temos em Vidas secas, por exemplo, um retrato dessas cenas.

É bem verdade que o cenário apresentado por Graciliano Ramos não é dos mais otimista s. Numa perspectiva poética, Ramos estabelecia registros do cotidiano de um país agrário no qual cerca 70% de sua população vivia em áreas rurais1 e suas cidades, ainda pequenas, não dispunham de grandes sistemas produtivos e financeiros, nas quais a expectativa de vida da população era em torno de 48 anos, também segundo o IBGE, em 1945, quando do lançamento do conjunto de Memórias, subtítulo de Infância.

Podemos retomar então a discussão enunciada acima sobre a elaboração de memórias de infância quando da maturidade do autor. Retomamos também a questão que outrora pusemos e se mantém: quando seria o melhor momento para se pensar a infância senão na maturidade? E ainda devemos levar em conta as variantes de como a cada época os homens com seus respectivos meios de vida interagem e interpretam o tempo. Tão certa é essa observação que ao analisarmos a expectativa de vida da época do lançamento de Infância, o seu autor, Graciliano Ramos, já seria um senhor numa fase da vida que hoje (2012) diríamos que ele estava

“beirando” a terceira idade, que dentro de nossa atual expectativa

de vida só se atinge aos 60 anos de idade. Ou seja, ao lançar Infância, Ramos, em 1945, aos 54 anos, já estava com idade distante de seus sete anos, o que de todo lhe conferiria autoridade não somente sobre o tema, mas também, sobre a elaboração

dessa memória “inventada”, que recupera o passado, mas também

impede que ele venha inteirinho para dentro de nós.

1

(39)

Porém, há de se pensar em como o nosso povo, em como a nossa sociedade percebe e autoriza o discurso do idoso. Do mesmo modo, devemos ter em mente qual é a representação social da figura do idoso e a valoração, por conseguinte, dos seus discursos a respeito de quaisquer assuntos. Ora, não precisamos de muita teoria para que reconheçamos os papéis e espaços dos idosos, em nossa sociedade. Contudo, vejamos o que nos diz uma das obras-primas da nossa Academia:

A degradação senil começa prematuramente com a degradação da pessoa que trabalha. Esta sociedade pragmática não desvaloriza somente o operário, mas todo o trabalhador: o médico, o professor, o esportista, o ator, o jornalista. Como reparar a destruição sistemática que os home ns sofrem desde o nascimento, na sociedade da competição e do lucro? [...] como deveria ser uma sociedade para que na velhice um homem permaneça um homem? A resposta é radical [...]: seria preciso que ele sempre tivesse sido tratado como um homem. A noção que temos da velhice decorre mais da luta de classes do que do conflito de gerações. (CHAUI apud BOSI, 2007, p. 20-21).

Posta essa citação ousamos a “enriquecê-la” numa mínima

observação sobre a degradação: se a nossa sociedade desvaloriza

quem trabalha, para usar as palavras citadas, “operário” e “trabalhador”, avaliemos o quão é degradado, nessa mesma

sociedade, o homem sem ofício pela escassez e flagelação das reiteradas secas.

Façamos, novamente, menção explícita de Ecléa Bosi, numas das passagens que mais se aproxima das experiências graciliânicas:

(40)

Apesar de Graciliano não ter sido pobre , sua família sempre apresentou grande mobilidade e essas experiências de mobilidade possivelmente acabaram favorecendo suas observações quanto aos fluxos migratórios de outras famílias e suas motivações, em detrimento de suas próprias experiências que nun ca foram motivadas pela privação de recursos. Portanto, Infância, “romance”

de memórias, refaz o passo a passo, de uma experiência de criança, nos fins do século XIX e início do século XX, vivida praticamente no interior de Alagoas. O romance não é a refeitura de uma infância em sua expectativa lúdica, com a representa ção de generosa demonstração de carinho e afeto, peripécias e aventuras infantis. Infância fala do primogênito de um casal sertanejo com boas condições de vida, não ricos, mas em condição razoavelmente confortável para uma vida familiar digna apesar da numerosa prole. Nosso protagonista é apresentado, em todo momento, a um novo desafio, atividades corriqueiras, violentas, que desenvolveram uma espécie de trauma na vida do garoto:

Meu pai não tinha vocação para o ensino, mas quis meter-me o alfabeto na cab eça. Resisti, ele teimou

— e o resultado foi um desastre. Cedo revelou impaciência e assustou-me. Atirava rápido meia dúzia de letras, ia jogar solo. [...] Mas ia -me pouco a pouco entorpecendo, a cabeça inclinava -se, os braços esmoreciam — e, entre bocejos e cochilos, gemia a cantiga fastidiosa que Mocinha sussurrava junto a mim. Queria agitar -me e despertar. O sono era forte, enjôo enorme tapava -me os ouvidos, prendia-me a fala. E as coisas em redor mergulhavam na escuridão, as idéias se imobilizavam. De f ato eu compreendia, ronceiro, as histórias de Trancoso. Eram fáceis. O que me obrigavam a decorar parecia-me insensato (RAMOS, 2011, p. 111-112).

(41)

de vários trechos traumáticos expostos na obra, elegemos um, do

capítulo “Leitura”, o qual reforça esse nosso entendimento da

vivência do trauma, por exemplo, na alfabetização, dentre muitos outros:

Enfim consegui familiarizar -me com as letras quase todas. Aí me exibiram outras vinte e cinco, diferentes das primeiras e com os mesmos nomes delas. Atordoamento, preguiça, desespero, vontade de acabar-me. Veio terceiro alfabeto, veio quarto, e a confusão se estabeleceu, um horror de qüiproquós. Quatro sinais com uma só denominação. Se me habituassem às maiúsculas, deixando as minúsculas para mais tarde, talvez não me embrutecesse. Jogaram-me simultaneamente maldades grandes e pequenas, impressas e manuscritas. Um inferno. Resignei-me — e venci as malvadas. Duas, porém, se defenderam: as miseráveis dentais que ainda hoje me causam dissabores quando escrevo (RAMOS, 2011, p.112).

Temos também, como exemplo, no mesmo capítulo, o uso de um instrumento acessório durante muito tempo em nosso sistema de ensino, a palmatória:

(...) as pobres mãos inchavam, as palmas vermelhas, arroxeadas, os dedos grossos mal se movendo. Latejavam, como se funcionassem relógios dentro delas. Era preciso erguê -las. Finda a tortura, sentava-me num banco da sala de jantar, estirava o s braços em cima da mesa, procurando esquecer as palpitações dolorosas. Os sapos cantavam no açude da Penha; o descaroçador rangia no Cavalo -Morto (RAMOS, 2011, p. 113).

Eliane Zagury, em A escrita do eu, elenca-nos obras e

escritores “definidores” da literatura a qual ela encaixou no

gênero: “memórias de infância”, no que diz respeito a sua nova forma e tradição do exercício, como representação deste “ser em crise” (p. 15), que é esse escritor de memórias:

(42)

da minha infância, de Eugênio Gomes, O meu pequeno mundo, de Luís Jardim ou A casa do meu avô, de Carlos Lacerda. Um acervo de tal qualidade, produzido em apenas vinte e poucos anos, demonstra a solidez com que se estabeleceu o subgênero (1982, p. 16).

Entre os expoentes estudados pela autora, Graciliano Ramos, com Infância, é investigado no ensaio “A infância revivida”,

o qual será abordado no decorrer de nosso trabalho.

Infância é uma compilação das “mais antigas recordações” de

um homem maduro que retrata fatos de seu tempo de infante. Surge, então, em 1945 (curiosamente coincidindo com o início das

publicações da chamada “geração de 45”, que combatia o

primitivismo modernista):

(...) as minhas mais antigas recordações onde me desenvolvi como um pequeno animal. Até então algumas pessoas, ou fragmentos de pessoas, tinham-se manifestado, mas para bem dizer viviam fora do espaço. Começaram pouco a pouco a localizar-se, o que me transformou. Apareceram lugares imprecisos, e entre eles não havia continuidade, ilhas esboçando -se no universo vazio (RAMOS, 2011, p. 12)

Aquilo, que parecia uma autobiografia, propositalmente

focada nas pretensas “recordações” de experiências de Graciliano

Ramos desdobra-se em uma crônica do “país” chamado Nordeste.

(43)

Assim, Zagury cita:

Mais importante, porém, que essa intenção crítica vem a ser o próprio processo de composição do livro. Segundo Helmut Feldmann, de 1938 a 1944, os capítulos foram escritos como contos e publicados isoladamente em periódicos. A cronologia de publicação periódica2 que o professor alemão nos apresenta não corresponde à sequência de capítulos do livro pronto (1982, p. 121).

Como se observa, pela forma aleatória de publicação das crônicas, posteriormente capítulos do livro Infância, Graciliano reafirma a independência dos textos e essas características, aleatoriedade e independência, são comuns às lembranças, ou seja, à memória. Essa independência entre os capítulos representa o esfacelamento da memória, característica ilustrada, sabia e repetidamente, ao longo do livro de memórias Infância, livrando-se da rotulação de autobiografismo. Há, portanto, uma mobilização e predominância pelo gênero memorial, nesse romance de 1945. Sobre esse perfil, Eliane Zagury afirma:

Em Infância, o relacionamento mais ou menos livre entre os capítulos representa a descontinuidade da memória, em franca oposição às técnicas narrativas da autobiografia e sua prisão factual e cronológica. (...) o estabelecimento do novo gênero brasileiro de prosa lírica: assume-se a descontinuidade da memória e não se tenta complementar o vazio com técnicas historiográficas ou esforços de lógicas discursivas (1982, p. 122-123).

Ainda sobre a organização e publicação dos capítulos do livro, Salla diz:

(44)

Já para Diretr izes, no intervalo de março de 1923 e dezembro de 1941, o artista destinou capítulos de Infância (1945), que vieram a público, primeiramente em tal periódico. Tais textos, editados parcialmente como contos isolados, eram quase sempre acompanhados por ilust rações de artistas famosos (...) o que indicia a importância conferida aos mesmos. (SALLA, 2010, p.115).

Ressaltamos a subjacência do autobiográfico, ou seja, vêm em segundo plano os componentes factuais e cronológicos, apesar de esses caracteres comporem as tramas de primeiro plano que uniformizam o enredo, porém essas composições factuais e cronológicas em Ramos só se apresentam revestidas por uma estética ficcional narrativa. O que se faz deveras ressaltar no romance é o perfil memorialista que intenta uma elaboração, uma representação mais próxima da realidade e verossímil possível, ao que de fato ocorreu/existiu. Nessa linha de raciocínio dos romances autobiográficos afirma -nos Bakhtin:

Personagens secundárias, países, cidades, objetos, etc. integram o romance biográfico por vias substanciais e ganham uma relação igualmente substancial com o todo vital da personagem central. Desse modo, na representação do mundo supera -se tanto a dispersividade naturalista do romance (...) Graças ao vínculo traçado com o vínculo histórico, com a época, viabiliza-se uma representação realista mais profunda da realidade (2010, p. 215).

Apesar de um “romance” biográfico, nas palavras de Bakhtin, ao viabilizar “uma representação realista mais profunda da

realidade” – expressão que não nos deixa sem pensar em

redundância – elaboramos outra questão que mais se ajusta ao nosso percurso discursivo: seria possível se enveredar pelo mundo

da memória senão se apoderando das “nuvens de lembranças”? É,

(45)

do memorialista se enaltece, cria vida, relata, denuncia, sendo os fatos concretamente experimentados pela existência, expressados e representados, de maneira inquiridora, sem ser óbvia. É imprescindível o processo de criação ficcional, afinal.

Afim desse intento de elaboração do verossímil, podemos agregar outras observações de Gagnebin, a respeito novamente de Proust, quando da famosa passagem da Madeleine sobre a qual afirma que não se trata da sensação em si, mas s im, (...) a elaboração dessa sensação:

(“quando de repente, as paredes trêmulas da minha memória cederam, e foram os verões”), era rápida

demais – poderíamos arriscar essa hipótese para satisfazer a exigência de Proust. Para ele não se trata de escrever um romance de impressões seletas e felizes, mas sim de enfrentar, por meio da atividade intelectual e espiritual que o exercício da escrita configura a ameaça do esquecimento, do silêncio e da morte. Em outras palavras: não é a

sensação em si (o gosto da “madeleine” e a alegria

por ele provocada) que determina o processo da escrita verdadeira, mas sim a elaboração dessa sensação, a busca espiritual do seu nome originário, portanto, a transformação, pelo trabalho da criação artística, da sensação em linguagem, da sensação em sentido. Não se trata s implesmente de reencontrar uma sensação de outrora, mas de empreender um duplo trabalho: contra o

esquecimento e a morte, um, o lado “objetivo” do

tempo aniquilador; contra a preguiça e a resistência,

outro, o lado “subjetivo” do escritor que se opõe à

obra (GAGNEBIN, 2009, p. 154-155).

É, enfim, a confissão, a constatação de que escrever memórias é também esquecer. Sendo assim o escritor é capaz de tecer os retalhos da memória e dar cara nova ao seu eu denunciativo. Observemos, pois, a citação de Bueno, quanto ao

“estudo milimétrico do eu”, onde se percebe que Ramos acaba por criar o que Candido nos brindou, ao publicar “Ficção e confissão”:

(46)

menos da mesma fonte – e é mesmo o lançamento de Infância que o leva a escrever sobre o escritor alagoano. Mas, ao invés de se ocupar da infância sem amor que explicasse um autor tão duro com os homens – ou seja, ao invés de especular sobre o movimento psicológico que levou u m autor a escrever determinada obra – voltou-se para a obra em si e procurou nela um desenvolvimento. Assim, a alta elaboração literária a que Graciliano Ramos chega num gênero naquele tempo considerado

“menor”, como é o caso das memórias, leva o crítico

a buscar as conexões internas da obra entre o que fora conseguido nos romances e o que se leva a cabo nas memórias. É daí que nasce a ideia – quase um conceito independente – de que a obra de Graciliano Ramos elabora um arco que, partindo de uma observação do mundo, chega ao escrínio milimétrico do eu. Em duas palavras: ficção e confissão. (BUENO, 2008, p.75-76)

Indiscutivelmente, Infância transcende o aspecto relato-documento. Trata-se, na verdade, de uma mistura de literatura de memória com autobiografia. Pensar dessa forma a autobiografia coloca em evidência os problemas narrados, pois o autor, nesse caso estaria traçando um autorretrato de si próprio, sem se dar nome. Tomando então como referência os conceitos de um dos grandes nomes na pesquisa autobio gráfica na contemporaneidade, Philippe Lejune (2008, p.30), ele considera como obras

autobiográficas, aquelas em que: “o personagem não tem nome na

narrativa, mas o autor declarou -se explicitamente idêntico ao narrador (...) em um pacto inicial (...). Ao l ongo da narrativa, o

nome do autor não aparecerá nem uma só vez (...)”. Vemos, logo que Lejune acredita que deverá ser estabelecido um “pacto” de leitura entre o leitor e o autor, ao qual ele chama de “pacto

autobiográfico”. Nesse pacto, ele define que o leitor deverá ler a

obra autobiográfica, de acordo com a intenção que o autor quer

passar ao leitor. Cabe ao leitor, portanto, identificar as “pistas”

dadas pelo autor, logo no início da narrativa. No caso das memórias de Infância, escrita do eu, do menino Graciliano, essas

“pistas” devem se resumir na identidade entre o autor, o narrador e

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