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NARRATIVA E MODERNIDADE

No documento Infância - memórias: cenários - personas (páginas 65-75)

CAPÍTULO SEGUNDO

2.1 NARRATIVA E MODERNIDADE

Neste capítulo, dissertaremos a respeito das formas singulares de composição dos tipos que se apresentam no romance graciliânico de 1945, tipos com os quais, o escritor descreve seus personagens de forma fragmentária, coisificada, animalizada e animalesca. Antes, porém, de adentrarmos objetivamente nesse aspecto de nossa análise, faremos algumas considerações sobre o papel da narrativa na modernidade e sobre o significado do termo infante.

Sabemos que Infância é um romance de memórias do miúdo Graciliano Ramos, segundo filho (único homem) de uma prole de três filhos. Temos conhecimento, também, sem grandes divagações, de seus sofrimentos com a inexperiência de seus pais, que de forma geral converte -se em exageros quer seja de cuidados e mimos, quer seja, mais comumente, em cobranças e exigências exacerbadas, em deveres. Pois bem, em contrapartida, é sabido que o “filho homem” sempre tem direito à coroa, mas, aqui em Infância essa regra protocolar foge à praxe, nosso pequeno não herda senão as responsabilidades supremas de uma majestade, pois acaba destituído de coroa, quer dizer, é um infante.

Buscamos, nos nossos maiores lexicógrafos e dicionaristas, Aurélio Buarque de Holanda e Antonio Houaiss, o verbete Infante. Para AURÉLIO (1999), infante significa: “que não fala”, “incapaz de falar”. Para HOUAISS (2001), significa: “em Portugal e Espanha, filho de reis que não herda o trono”.

Usualmente, sabemos que esta palavra significa criança, menino ou menina. Na língua falada atual do Brasil, não deixa de ser uma palavra obsoleta ou de uso raro e muito circunstanciado e, de fato, nem propriamente ela, mas seu radical infans, compondo

outras palavras como o título que nos serve de objeto de estudo Infância ou o assassínio de crianças, infanticídio. Buscamos, enfim, esse verbete por sua etimologia aquele que não fala, incapaz de falar. Inclusive em Portugal e Espanha, como já dissemos antes, infante ou infanta seria o filho ou filha do rei que não terá direito ao trono, ou seja, apesar de gozar de toda a majestade de estar sob a coroa de seu pai, não terá poder de decisão. Quer dizer, não fala, é incapaz de dizer.

Recorremos, ainda, à classificação dada por Gagnebin (2005, p. 167), em seu ensaio “Infância e pensamento”. Para a autora, “o marco privilegiado dessa concepção moderna de infância, data de 1762, com a publicação de Emílio, de Jean-Jacques Rousseau”.

Parafraseando-a, podemos dizer que os homens desenvolvem a capacidade da fala e do pensamento, diferentemente dos bichos, dos animais. Esse desenvolvimento da linguagem já os possibilita escolher o mal em detrimento do bem. Gagnebin ainda acrescenta que sem a aquisição da lingua gem, o homem seria um bicho cruel, talvez, mas moralmente impossibilitado de ser ruim, pois o mal só pode ser atribuído aos seres dotados de linguagem, logo de pensamento, logo de inteligência. Vejamos, então, a definição longa de infância para Gagnebin muito pertinente para o desenvolvimento de nossos argumentos:

A infância reúne assim, no pensamento de um Santo Agostinho, por exemplo, a selvageria bruta do animal e a disponibilidade, simultaneamente infinita e latente, dos homens para o mal. Ela é o testemunho vergonhoso do pecado que nos marca, já ao nascer, e contra o qual só podemos tentar lutar quando sairmos dela, quando pudermos entender os conselhos bondosos de nossos pais e lhes responder pelas nossas palavras e pelas nossas ações. Longe de ser a idade da inocência, a infância é descrita por Santo Agostinho, em particular no livro I das Confissões, como duplamente marcada pelo pecado: não só cada criança, cada infans – palavra cuja etimologia é realçada por Agostinho em oposição ao puer: qui n on farer [g rif o nosso] I , 8, 13 – é signo, pelo seu nascimento, do comércio carnal e libidinoso

de seus pais. Isto é, profundamente marcado pelo pecado original; mas também cada criancinha manifesta desejos e ódios, cuja intensidade desproporcional será justamente censurada numa idade mais avançada e que só é tolerada nela, na criancinha sem fala, sem razão, porque é fraca, portanto e felizmente, impotente (2005, p.171). [grifo nosso].

Ora, aquele que não fala, que não tem direito a voz não terá, por conseguinte, o direito de narrar, ou, pior não tem a capacidade de narrar.

O infante é, portanto, não somente aquele que não fala, mas “o testemunho precioso de uma linguagem dos sentimentos autênticos e verdadeiros, ainda não corrompidos pela convivência humana” (Gagnebin, 2005, p. 177).

É possível, então, na era do “caos da modernidade” se falar de narrativa sem levar em consideração a própria era da modernidade? Acreditamos que não e para isso teceremos alguns comentários a respeito.

Desse termo que ora nominamos, a “não-narrativa”, fruto dessa incapacidade de falar, portanto de narrar, podemos extrair a compreensão por analogia de porquê dezenas de estudos sobre Ramos o aproximam aos estudos de Walter Benjamim, sobre o fim da narrativa.

Em 1933, Benjamin (1892-1940), refletindo sobre o acelerado desenvolvimento da técnica que estava sobrepondo -se ao homem, isto é a Modernidade, nos alerta sobre o declínio das ações da experiência, e o perigo de extinção que paira sobre a arte de narrar, dizendo que:

Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos mais jovens de forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como

elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração e m geração? Quem é ajudado, hoje por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência? (2010, p.114) .

Tomando como base para nossas próximas discussões, as reflexões de Benjamin, o silêncio experimentado por uma geração que viveu os horrores da guerra e:

Que ainda fora a escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano (2010, p. 115).

Volta, agora, silenciosa, dos campos de batalha. Nas suas dúvidas, incertezas, medos, uma verdade:

Nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes (2010, p.115).

Desmoralizada e visivelmente abandonada, essa geração, bem mais pobre em experiências da fala, vazias em experi ências que se comunicam – pelo desaparecimento das formas tradicionais de narrativa e, consequentemente, pelo enfraquecimento da memória – morrerá, diante do progresso da modernidade. Vê -se, portanto, que essa geração traumatizada por essas experiências negativas e chocantes no pós-guerra, não podia senão calar -se. O ser humano, bastante fragilizado, foi privado de comunicar -se e elegeu o silêncio para rememorar. A técnica de narrar os fatos, foi

castrada dos mais velhos: o silêncio mudo prevaleceu, como consequência. Chegara, então, o fim da narrativa?

Para Gagnebin, em “Verdade e memória do passado”: “lutar contra o esquecimento e a denegação é também lutar conta a repetição dos horrores (que infelizmente se produz constantemente)” (2009, p. 47). Percebe-se, pela afirmação de Gagnebin, uma constante tensão da memória viva entre presença e ausência, lembrança e esquecimento. Passado e presente se completam no embalar do esquecimento: a memória existe, de fato.

Seguindo o mesmo raciocínio das reflexões de Benjamin e Gagnebin, mas focando nos procedimentos da narrativa literária, Theodor W. Adorno resume, numa única e sábia afirmação, o paradoxo por onde passa toda a crise atual do romance: “não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narração” (2008, p. 55).

Ainda com relação à crise do romance, para Adorno (2008, p. 56), “o que se desintegrou foi a identidade da experiência, a vida articulada e em si mesmo contínua, que só a postura do narrador permite”. Tomando por base, ainda, essas refle xões adornianas, ele ainda nos diz, na mesma página, que: “contar algo significa ter algo a dizer, e justamente isso é impedido pelo mundo administrado, pela estandardização e pela mesmice”. Coisas da Modernidade, poderíamos assim dizer.

Percebe-se claramente que, para Adorno, o romance rompendo com o realismo e buscando criar novas formas de linguagem, estaria então qualificado como uma alternativa de resistência à transformação do indivíduo do mundo contemporâneo, em coisa.

Infância é, pois, escrito como um testemunho (discurso histórico que dá vida ao literário), baseado nas experiências traumáticas de vida de um garoto, no início de Século XX, no Brasil, mais precisamente no sertão nordestino. Esse testemunho, no entanto, não foi escrito por uma voz, mas por vozes que

silenciaram, como forma de denúncia e retratação dos traumas da infância.

Entenda-se por humanismo, não a definição indissociável da luta de classes contra a “alienação do indivíduo”, produzida pelo mundo capitalista, que busca “valores autênticos” que resguardam a integridade humana, mas no sentido de “empatia”, de criação de elos, de solidariedade para com a sociedade, do ponto de vista da coletividade. Nesse sentido Infância é apresentado como um adversário ferrenho aos valores estabelecidos pela sociedade burguesa da modernidade.

Assim, tomando os conceitos de Selligmann -Silva, sobre a literatura de testemunho:

A literatura de testemunho é mais do que um gênero: é uma face da literatura que vem à tona na nossa época de catástrofes e faz com que toda a história da literatura seja revista a partir do questionamento da sua relação e do seu compromisso com o “real”. O autor, para evitar confusões, lembra também que esse “real” não deve ser confundido com a “realidade” tal como ela era pensada e pressuposta pelo romance realista e naturalista: o “real” em destaque deve ser compreendido na chave freudiana do trauma, de um evento que justamente resiste à apresentação. Nesse aspecto, a literatura do testemunho – tradutora de silêncios – reivindica para si o valor da verdade (2006, p.73).

Percebe-se, então, que o narrador não é um simples “contador” de histórias e que ele não pode, em hipótese alguma, ser confundido com o autor. Ele deve conhecer o leitor. Sendo então, o narrador, detentor da matéria narrada, ele a expressa, por meio da ficção. Na verdade, não existe narrativa sem n arrador, pois ele “diz” com a história narrada. É exatamente nessa perspectiva de narrador que narra “dizendo”, que podemos encaixar os relatos de Infância, como narrativa de testemunho.

Pois bem, se antes, na antiguidade, as narrativas eram repassadas pela oralidade, na reelaboração dessa oralidade, passaram a ser registradas em formas escritas, como na Ilíada e

Odisseia. Observando assim o que Walter Benjamim fala -nos em “O narrador”:

O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno. O que separa o romance da narrativa (e da epopéia no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa – contos de fadas, lendas e mesmo novelas – é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta (2010, p. 201).

A preocupação de Benjamim é bastante sensata e a nossa discussão que fazemos, por analogia, ao discurso de Benjamin é se a internet irá ou não acabar com o livro impresso. As discussões esclarecem que, apesar de legitimadas pelo senso ideológico do novo, pelo desconhecimento do novo, sabemos hoje que a internet cria novos canais e ferramentas de comunicação, todavia não foi, é, ou será ameaça qualquer ao livro impresso. Assim, o romance sequer chegaria a ser uma real ameaça às narrativas orais. Como argumen to disso temos Infância, uma mescla de oralidade, trabalho de memórias, experiências de vida, próprias e alheias.

Além da raiz etimológica da palavra infante com sua ideia de não-fala, incapaz de falar, podemos trabalhar com a ideia de trauma que, por inúmeras vezes, é relatada em Infância devido às violências.

De fato meu pai mostrava comportar -se bem. Mas havia aquela evidência de faltas antigas, uma evidência forte, de cabeleira negra, beiços vermelhos, olhos provocadores. Minha mãe não dispunha dessas vantagens. E com certeza se amofinava, coitada, revendo -se em nós, percebendo cá fora, soltos dela, pedaços da sua carne propícia aos furúnculos. Maltratava -

se maltratando-nos. Julgo que agüentamos cascudos por não termos a beleza de Mocinha (RAMOS, 2011, p. 26).

Experimentados pelos diversos personagens de Infância, essa elaboração conceitual do trauma nos faz irmos ao encontro dos conceitos de Jeanne-Marie Gangnebin, sobre os traumas do infante que não fala ou não quer falar.

Os horrores das Guerras não foram sequer possíveis de ser narrados, devido à dor, ao sofrimento, aos traumas. As descomunais bombas atômicas e suas consequências para gerações diretamente afetaram o curso das narrativas. E o que poderíamos dizer do evento negado pelos nazistas, o Holocausto, em sua infame tentativa de “apagar os rastros” das chacina s, ato mais infame ainda que o próprio morticínio em massa: a ordem de desenterrar todos os que estavam enterrados em valas comuns para que fossem incinerados e assim camuflarem a terrív el matança? Corrobora-nos nessas assertivas a escrita de Gagnebin, sobre Benjamim:

(...) Os sobreviventes que voltaram das trincheiras, observa Benjamim, voltaram mudos. Por quê? Porque aquilo que vivenciaram não podia mais ser assimilado por palavras.

Nesse diagnóstico, Benjamim reúne reflexões oriundas de duas providências: uma reflexão sobre o desenvolvimento das forças produtivas e da técnica (em particular sua aceleração a serviço da organização capitalista da sociedade) e uma reflexão convergente sobre a memória traumática, sobre a experiência do choque (conceito -chave das análises benjaminianas, da lírica de Baudelaire), portanto, sobre a impossibilidade, para a linguagem cotidiana e para a narração tradicional, de assimilar o choque, o trauma, diz Freud na mesma época, porque este por definição, fere, separa, corta ao sujeito o acesso ao simbólico, em particular à linguagem (2009, p. 51).

Em Experiência e Pobreza (1993), o filósofo registra - nos que as ações da experiência estavam em declínio numa geração que, entre 1914 e 1918, viveu a truculência da Primeira Guerra Mundial. O “frágil e minúsculo corpo humano” se viu no campo minado da experiência das trincheiras, no corpo maltrapilho torturado pela fome, nas esperanças frustradas em face da frialdade da inflação econômica e no pessimismo diante do cinismo dos governantes. Destas experiências indeléveis, o frágil corpo humano ficou privado das experiências comunicáveis, os homens que retornavam do front viam no silêncio o virtuosismo – porquanto a sofreguidão interna era tão profunda que o comunicar-se era inútil. (2009, p. IV).

Opomo-nos à ideia de inútil que Reis expressa, a menos que tenhamos, junto a ele, toda a possibilidade de leitura que certamente fizemos sobre os vários estudos graciliânicos e então utilizemos incapaz. Pois, para usarmos uma palavra de Gagnebin o trauma incapacita a narrativa.

Vejamos que a transcrição de Gagnebin, abaixo, nos mostra, com clareza, que o “trauma” tem um papel crucial na ausência da fala: É o “sonho” pelo relato de um fato necessário, mas impossível de ser narrado, visto que ninguém tem interesse em escutar. Quando falo de fala, falo também em escrita, em narração.

O trauma, segundo Gagnebin (2009, p. 110), nos torna “estrangeiros para nós mesmos e para nossos familiares, em nosso próprio país”.

[...] a escrita, este rastro privilegiado que os homens deixam de si mesmos, desde as estelas funerárias até os e-mails efêmeros que apagamos depois do uso – sem esquecer naturalmente os papiros, os palimpsestos, a tábua de Aristóteles, o bloco mágico de Freud, os livros e as bibliotecas: metáforas -chave das tentativas filosóficas, literárias e psicológicas de descrever os mecanismos da memória e do lembrar. (GAGNEBIN, 2009, p. 111).

Pois bem, o mestre Graciliano escolheu justamente a narrativa de memórias para, através de seu testemunho, confessar suas dores e denunciá-las ao mundo dos “grandes”, se opondo ao mundo capitalista (des)ordenado, elevando os bichos à condição de “humanos”, através do seu “silêncio”, apresentado a nós, leitores e sociedade, pela ausência da fala.

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