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LEMBRANÇA – ESQUECIMENTO – FICÇÃO

No documento Infância - memórias: cenários - personas (páginas 52-65)

Falar de Infância e de Graciliano é conhecer, através dele, a vida “do homem da seca”, marcado pelo abandono e pela crueldade de um tempo em que viver, por si só, já era uma tarefa árdua. Sem direitos, órfão da sorte e de destino, esse homem não fazia planos, não expunha suas vontades, não conhecia justiça. Vivia, apenas vivia, como podia.

Do campo para a vida, o menino Graciliano experimenta a humilhação, a injustiça, e, dessa forma, exposto a esses impasses da vida, forma a sua personalidade.

De personagem a autor, Graciliano relata, rememora, denuncia, remexe nas gavetas do tempo, discute regras e , mais precisamente, remonta à época, o espaço e ressuscita pessoas: seus pais, avós, agregados, enfim, o autor personagem traça um painel social, fruto das experiências pessoais, tão fortes na lembrança, que somente cabe à descoberta da literatura tão grande feito.

Para Graciliano, a experiência é condição da escrita. Candido revela já no início do ensaio “Ficção e confissão” que:

Para ler Graciliano Ramos, talvez convenha ao leitor aparelhar-se do espírito de jornada, dispondo -se a uma experiência que se desdobra em etapas e, principiada na narração de costumes, termina pela confissão das mais vívidas emoções pessoais (1992, p.13).

Experimentamos, vemos e sentimos em cada página escrita de Infância, passagens do sertão, da vila, da mata, das pessoas, dos bichos, em seu mais íntimo, como forma de reintegrar, reconstruir e perfazer o ciclo de sua infância.

Diríamos, com isso, que, a mímese seria a grande responsável pelo intercâmbio imagético colhido n o universo pessoal e literário de Graciliano. Contudo, a palavra traz esse elemento chamado realidade que presenteia o leitor com os recursos da literatura necessários para se chegar às imagens de um passado recente recobrado pelo autor narrador de suas próprias imagens.

Em Lembrar escrever esquecer, de Jeanne Marie Gagnebin (2009), encontramos densa discussão sobre conceitos importantes e cruciais para nossa pesquisa como: memória, rastros, verdade, passado, história, esquecimento, testemunho, oralidade. É , também, através desta autora, que “podemos tentar entender” Infância, não só como um exemplo esteticamente inovador dentro da tradição literária brasileira, mas também como um representante do gênero “memórias de infância”, digno de figurar na tradição literária universal. Citamos, abaixo, uma descrição referente a Proust, todavia bem aplicada a Graciliano Ramos:

(...) podemos tentar entender Em busca do tempo perdido (...) misturando em sua composição os gêneros literários do ensaio e do romance, da autobiografia e da ficção, criando uma unidade nova e essencial para a literatura contemporânea, na qual reflexão estética, invenção romanesca e trabalho de lembranças confluem e se apoiam mutuamente (GAGNEBIN, 2009, p. 148).

Também Walter Benjamin, em seu ensaio, “A imagem de Proust”, nos confirma que rememorar também é esquecer, é salvar o passado:

Sabemos que Proust não descreveu em sua obra uma vida como ela de fato foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu. Porém esse comentário ainda é difuso, e demasiadamente grosseiro. Pois o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência. Ou seria

preferível falar o trabalho de Penélope do esquecimento? A memória involuntári a, de Proust, não está mais próxima do esquecimento do que daquilo que em geral chamamos de reminiscência? Não seria esse trabalho de rememoração espontânea, em que a recordação é a trama e o esquecimento a urdidura, o oposto de trabalho de Penélope, mais que sua cópia? Pois aqui é o dia que desfaz o trabalho da noite. Cada manhã, ao acordarmos, em geral fracos e apenas semiconscientes, seguramos em nossas mãos apenas algumas franjas da tapeçaria da existência da vida, tal como o esquecimento a teceu para n ós (BENJAMIN, 2010, p. 37).

Graciliano, também, buscou testemunhar a verdade humana, impregnada nele, desde menino, confessando essa arte do testemunho em sua obra Infância, através do trabalho de memória o qual está bem próximo desta descrição elaborada em atenção à memória de Proust: todos esses gêneros se aplicam e se somam na tessitura de Infância, além de contar, também, com a composição independente dos capítulos, característica tratada mais a frente amiúde.

Ao retomarmos a citação direta de Proust , tomemos os tópicos “reflexão estética, invenção romanesca e trabalho de lembranças, que se confluem e se apoiam mutuamente”. Analisando o tema, “trabalho de lembranças” vemos que o mesmo não é elaborado simplesmente pelo e para o trabalho de memórias, de registros, mas também para compor cenários e tramas de “invenção romanesca e reflexão estética” dos casos, como temos, por exemplo, no trecho abaixo:

Se aparecia notícia deles, as portas se fechavam, o comércio enfraquecia, nas pontas das ruas queimavam excremento de boi e creolina em cacos de telha. Uma noite levavam os infelizes, enrolados, paia os barracões de palha feitos nas brenhas, onde a carne doente apodrecia quase ao abandono, sobre folhas de bananeiras. Alguns enfermeiros imunizados furavam -lhes as pústulas com espinhos de mandacaru, lavavam-nas com aguardente e cânfora. Havia grande mortandade, e as marcas dos

sobreviventes eram horrorosas. Os curandeiros dessa praga inspiravam tanto receio como as vítimas dela. Cercava-os uma faixa de isolamento. Admiração e repugnância (RAMOS, 2011, p.67).

Na composição de Infância, o caráter de crônica atribui o sabor caseiro do cotidiano, da informalidade, ao retratar tão simplesmente os costumes e os modos de organização específicos de um povo em determinado tempo-espaço histórico: “os barracões de palha feitos nas brenhas, onde a carne doente apodrecia quase ao abandono, sobre folhas de bananeiras” (RAMOS, 2011, p.67). A oralidade vai costurando um texto tão peculiar quanto o seu vocabulário: “Uma noite levavam os infelizes” (RAMOS, 2011, p.67).

Esta característica, a oralidade, é reafirmada explicitamente não só pelas marcas textuais típicas da fala oral; ela é ratificada pela descrição de oitivas de causos ou diálogos rememorados: em diversas passagens a personagem central registra seu hábito de ouvir narrativas: “Desconfiava da coisa próxima, vista, ouvida, pegada, mas em geral admitia sem esforço o que me contavam” (RAMOS, 2011, p. 29). E ainda: “Ora, sucedia que minha mãe abrandava de repente e meu pa i, silencioso, explosivo, resolvia contar-me histórias” (RAMOS, 2011, p.22).

Em Infância as cantigas de roda surgem nos momentos em que a solidão mais assola de tédio a vida do infante Graciliano, como a cantiga do “sapo cururu que tem frio”. Ao chegar em Buíque, sua família aloja -se numa casa simples.

Não se distinguia nenhum ruído fora a cantiga dos sapos do açude da Penha, vozes agudas, graves, lentas, apressadas, e no meio delas o berro do sapo-boi, bicho terrível que morde como cachorro e, se pega um cristão, só o larga quando o sino toca. Foi Rosenda lavadeira quem me explicou isto. Admirável o sino. Como seria o sapo -boi? Pelas informações, possuía natureza igual à natureza humana. Esquisito. Se eu pudesse correr, sair de casa, molhar-me, enlamear-me, deitar barquinhos no

enxurro e fabricar edifícios de areia, com o Sabiá novo, certamente não pensaria nessas coisas. Seria uma criatura viva, alegre. Só, encolhido, o jeito que tinha era ocupar-me com o sapo-boi, quase gente, sensível aos sinos. Nunca os sinos me haviam impressionado.

Sapo cururu Da beira do rio.

Não me bote na água, Maninha:

Cururu tem frio.

Cantiga para embalar crianças. Os cururus do açude choravam com frio, de muitos modos, gritando, soluçando, exigentes ou resignados. Eu também tinha frio e gostava de ouvir os sapos. (Ramos, 2011, p. 63)

Podemos bem observar nessa citação, essa marca da oralidade, mais pontualmente nos trechos que ora destacamos Foi Rosenda lavadeira quem me explicou isto (RAMOS, 2011, p. 63) e em Admirável sino (p.63). Uma das mais recorrentes competências de nosso protagonista é o gosto pela audição seja de causos, de conversas de transeuntes pelas ruas, ou as conversas repetida s de todo dia nos mesmos estabelecimentos com e sobre os mesmos motivos e personagens, que é uma forma de se perceber natureza: Eu também tinha frio e gostava de ouvir os sapos (RAMOS, 2011, p. 63) e assim possuir pares, semelhantes, companhias. Como mesmo chega a afirma na citação acima Como seria o sapo-boi? Pelas informações, possuía natureza igual à natureza humana. Esquisito. Vale ressaltar natureza igual à humana. Esquisito (RAMOS, 2011, p.63) Vejamos nosso narrador não se faz sapo, mas eleva este à condição humana, é como que assim pudesse se ver livre, mesmo como um sapo, como um bicho, mas assim poderia se sentir vivo:

Se eu pudesse correr, sair de casa, molhar -me, enlamear-me, deitar barquinhos no enxurro e fabricar edifícios de areia, com o Sabiá novo,

certamente não pensaria nessas coisas. Seria uma criatura viva, alegre. (RAMOS, 2011, p. 63).

Tendo em mente essas considerações que vão se espalhando em Infância e que lhes servem de substâncias, acabamos por compreender um procedimento indispensá vel, o de conhecer a si, através do conhecimento que tenha de seu entorno habitual. Ou seja, reconhecendo-se como produto de um sistema social. Vemos, então, que na narração, a relação entre ouvinte e narrador é uma relação de eternidade da matéria narrada . A valorização da oralidade, despertada pelo menino Graciliano, mostra que “a história deve reproduzir-se de geração a geração, gerar muitas outras, cujos fios se cruzem, prolongando o original, puxados por outros dedos” (Bosi, E., 2007, p. 90).

Vejamos, ainda, o que nos fala Mikhail Bakhtin sobre esse conceito de memória:

Tomo conhecimento de uma parte considerável da minha biografia através das palavras alheias das pessoas íntimas e em sua tonalidade emocional: meu nascimento, minha origem, os acontec imentos da vida familiar e nacional na minha terna infância (tudo o que podia ser compreendido ou simplesmente percebido por uma criança). Todos esses momentos me são necessários para a reconstituição de um quadro minimamente inteligível e coerente da minh a vida e de meu mundo, e eu, narrador de minha vida pela boca das suas outras personagens, tomo conhecimento de todos aqueles momentos (2010, p. 142).

Considerando os lapsos da memória, instantes do silêncio e sendo silêncio um grito abafado, uma querência de mudar, rememorar é também esquecer. Essa memória coletiva é instituída não pelo agenciamento do sujeito, mas por outros. “Memória também é conservação” (Bergson). A metáfora da memória é do passado, do presente e também do futuro. É a própri a desconstrução do tempo linear. É pela memória que o passado se

torna dinâmico, no presente. No tempo da memória, há uma diluição do tempo.

Vejamos o comentário de Ganegbin, o qual dá suporte ao que, aqui, ora afirmamos:

Tal rememoração implica uma certa ascese da atividade histórica que, em vez de repetir aquilo que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras. A rememoração também significa uma atenção preciosa ao presente, pois não se trata somente de não se esquecer do passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente (2009, p. 55).

Memória, também pode ser vista como crítica, pois sendo como é um recorte, é, portanto, uma evocação ao passado, considerada por nós como um momento de vertigem, com pontos nebulosos e estremecimentos da memória. Esse passado pode ser uma crítica à ordem da civilização moderna (resistência). As contradições se extinguem, pois a dialética se esvai. Observemos, para tanto, o início de Infância, mais precisamente, o capítulo “Nuvens”, no qual podemos ver claramente a ideia de criação de “coisas”, as quais ultrapassam o momento da suposta veracidade:

A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde o vi, quando o vi e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu a ter comunicado a pessoas que a confirmaram. (RAMOS, 2011, p. 9).

O cenário de Infância é uma realidade marcada pela seca num território onde a produção econômica deveria ser eminentemente agrária: mas como produzir num torrão, em que a

sociedade que se faz rica é dominada pelo poderio de alguns poucos coronéis, absolutamente incompetentes?

Os maiorais do município, governo e oposição, vinham de um grupo de famílias mais ou menos entrelaçadas, poderosas no Nordeste: Cavalcantis, Albuquerques, Siqueiras, Tenórios, Aquinos. Padre João Inácio era Albuquerque. O Comendador Badega, parente de todos os graúdos, autor de vários filhos naturais, esfarinhado em César Cantu, vestia cassineta esfiapada e ru ça, usava chapéu de abas roídas e botas pretas com remendos amarelos. Assim, de rebenque e esporas, entrou uma noite no paço municipal com um lote de caboclas novas e, ao som da harmônica, dançou valsas e quadrilhas até o nascer do sol. Apesar da comenda, os roceiros davam-lhe o título de capitão. (RAMOS, 2011, p.53).

Cenário esse que o próprio narrador se faz personagem. É no processo de refeitura das narrativas para si, refeitura no ato de escrever e tão quanto de rememorá -las, remontá-las e burilá-las que a representação se torna digna de apresentação, inclusive para si mesmo. É isso que nos afirma Bakhtin:

Ao narrar sobre minha vida cujas personagens são outras para mim, passo a passo eu me entrelaço em sua estrutura formal da vida (não sou o herói da minha vida, mas tomo parte dela), coloco -me na condição de personagem, abranjo a mim mesmo com minha narração; as formas de percepção axiológica dos outros se transferem para mim onde sou solidário com eles. É assim que o narrador se torna personagem. Se o mundo dos outros goza de autoridade axiológica para mim, ele me assimila enquanto outro (claro, nos momentos precisos em que ele tem autoridade). (BAKHTIN, 2010, p. 141 - 142).

Assim também afirma-nos um dos pensadores prediletos de Ramos, o italiano Gramsci: conhecer -se melhor a si próprio através dos outros, e os outros, através de si próprio:

Conhecer-se a si próprio quer dizer ser ele próprio, isto é, ser dono de si próprio, distinguir -se sair do caos, ser um elemento de ordem, mas da própria ordem e da própria disciplina que tendem para um ideal. E não se pode obt er isto se não se conhecem também os outros, a sua historia, o desenrolar dos esforços que fizeram para serem o que são, para criar a civilização que agora queremos substituir pela nossa, quer dizer, ter noções de como é a natureza e suas leis para conhece r as leis que governam o espírito. E aprender tudo sem perder de vista o objetivo último que é o de conhecer -se melhor a si próprio através dos outros e os outros através de si próprio. (MONASTA apud GRAMSCI, 2010, p. 55).

Uma trama social delimitada e de bilitada pela escassez, pela secura, minguada, onde tudo se apresenta pouco e quando o contrário se faz o momento é de alegria, é de júbilo, apesar de ser uma pequena festa privada de “imenso prazer”:

Uma tarde preguiçávamos no milho. Fazíamos buracos, e quando estavam bastante fundos, mergulhávamos neles, provocávamos o desmoronamento, das rampas e desaparecíamos sob ruínas amarelas. Isto me dava imenso prazer. (RAMOS, 2011, p.69).

Num dos capítulos da obra, o menino Graciliano descreve o inferno, baseado na insatisfação persistente pela incompletude das conceituações que sua mãe e o padre João Inácio fazem desse local. E o menino Graciliano persiste em sua curiosidade e chega a receber alguns cascudos de sua mãe para que desistisse desse inferno.

E de quando em quando aventurava perguntas que ficavam sem respostas e perturbavam a narradora. (...). E num lugar existem casas, árvores, açudes, igrejas, tanta coisa, tanta coisa que exi gi uma descrição. Minha mãe condenou a exigência e quis permanecer nas generalidades. Não me conformei. Pedi esclarecimentos, apelei para a ciência dela. Por

que não contava o negócio direitinho? (RAMOS, 2011, p. 79-80).

A necessidade questionadora da criança sendo oprimida pela desatenção, pela ideologia (como não poderia deixar de ser, manipuladora) e força física dos adultos: o velho senso -comum de “ainda não é hora de você saber disso” ou “isso não é assunto pra você”: “O inferno era um nome feio, que não devíamos pronunciar (...). Exprimia um lugar ruim, para onde as pessoas mal -educadas mandavam outras, em discussões”. (RAMOS, 2011, p.80).

Quando os adultos dão “atenção” às suas crianças, isso é feito de uma descrença prévia, num sentido mecânico de r eplicar- lhes e livrarem-se dos pequenos. Mas o pequeno Ramos, indagando-se como e se era possível descrever um lugar no qual nunca estivera:

— A senhora esteve lá? (...), — Os padres estiveram lá? (...) — Os padres estiveram lá? tornei a perguntar. Minha mãe irritou-se, achou-me leviano e estúpido. Não tinham estado, claro que não tinham estado, mas eram pessoas instruídas, aprendiam tudo no seminário, nos livros. (RAMOS, 2011, p.82).

Candido observa bem esse aspecto, em “Ficção e confissão”:

(...) Um dos traços mais constantes é o sentimento de humilhação e de machucamento. Humilhação de menino fraco e tímido, maltratado pelos pais e extremamente sensível aos maus -tratos sofridos e presenciados. Por toda parte, recordações doídas de alguma injustiça, (...) (1992, p. 51).

No “romance” de 45, nosso autor não retrata abstrações pueris de um menino abastado num rincão do nordeste, como aponta Zagury:

Graciliano escritor não trata seu protagonista infantil com paternalismo. O lirismo que aí aparece está para além das convenções literárias e do pseudo - entendimento adulto-criança, feito de uma “sábia” complacência do adulto, na verdade esquecido do seu antigo ser-criança. Graciliano Ramos não empresta a seu protagonista sentimentos e sensações convencionais da infância mentada pelo adulto. Muito pelo contrário, tenta reconstruir todo o primarismo das sensações e dos sentimentos infantis reais (1982, p. 129).

Como também, observa Candido:

O narrador de Infância se encarrega de nos ensinar algumas das razõe s dessa cadeia necessária de sofrimentos. Os castigos imerecidos, as maldades sem motivo, de que são vítimas os fracos, estão na base da organização do mundo. Ele, a priminha, João, o colega, Venta-Romba, a irmã natural representam a semente da filosofia d e vida característica dos romances de Graciliano Ramos. Ela não é nova nem brilhante, e isso não importa. Um artista nada mais faz do que tomar os lugares - comuns e renová-los pela criação. (1992, p. 54).

Na arte literária, ora o espaço é de contemplação, espaço feliz; ora é de dissonância, de dor, de fome, de miséria. A ideologia procura encobrir as verdades e Graciliano procura desvendar essas verdades: dor, desespero, injustiça social, fome, miséria. Graciliano procura dar visibilidade a essas verdades. A ideologia vela, a literatura revela. A ideologia nos dá o falso como verdadeiro. A literatura aparece como contraponto, não participa da vida social como consenso, é uma prática do dissenso, pois desmascara esse dito instituído como verdade, mostrando u ma verdade escondida. O literário é ideológico e tem a função de desvendar as verdades escondidas pelo discurso da ideologia.

Como se percebe, a organização da memória, em Infância, é representada de forma fragmentária, retalhada. Tal concepção é bem retratada com Gagnebin, em Walter Benjamin (1982):

(...) é possível que o presente seja incapaz de reencontrar a parcela do passado e que ela permaneça imersa no esquecimento. O passado pode ser salvo, mas pode também ser novamente perdido. A exigência do passado é, entretanto, duplamente atual: porque alude o nosso presente e porque quer tornar-se ato, abandonar o domínio do possível. Não se trata, simplesmente, de impedir que a história dos vencidos se passe em silêncio; é necessário, ainda, atender a suas reivindicações, preencher uma esperança que não pôde cumprir -se (p. 72-73).

É nessa busca desenfreada pelo rememorar que a ficção entra em cena, dando fluidez à narrativa de memórias, numa busca frenética pela descoberta da escrita, que é também o desejo de “ler o mundo” (Oliveira, 1988, p.110). Sendo assim, para que a uma obra memorialística seja dado o direito de continuidade, se utilizando dos recursos ficcionais, é necessário, que o sentido visual seja aguçado, pois, ainda segundo Oliveira (1988, p.114), “o ato de rememoração é antes de tudo visual”.

Em “memória e libertação” (1982), Gagnebin diz que:

Para Benjamin, a arte do narrador é também a arte de contar, sem a preocupação d e ter de explicar tudo; a arte de reservar aos acontecimentos sua força secreta, de não encerrá -los numa única versão (p. 70).

Dizemos, portanto, que o ato de narrar é, nada mais do que

No documento Infância - memórias: cenários - personas (páginas 52-65)

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