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BICHOS – COISAS – PESSOAS CENÁRIOS

No documento Infância - memórias: cenários - personas (páginas 75-105)

CAPÍTULO SEGUNDO

2.2 BICHOS – COISAS – PESSOAS CENÁRIOS

A partir da publicação de As flores do mal, em 1857, a Europa testemunhava o nascimento de uma literatura de traços “pessimistas”, que exalta a estética do feio, a poética do hediondo que tematiza a decomposição do belo, decomposição dos corpos e o caráter ilusório do real. Arthur Rimbaud cria, por exemplo, o soneto Vênus Anadiomena nesses padrões da poética do hediondo. Como sabemos a Vênus é a deusa da beleza, a representante máxima da beleza, o ícone da personificação do ideário do belo na nossa concepção latina da estética física, pois bem o poeta maldito desfaz esse ideário ao compor um soneto – outra criação do homem para tentar a perfeição já que em sua gênese o soneto deveria ser arquitetado milimetricamente simétrico em suas métricas e rimas – no qual a deusa da beleza se apresenta anadiomena, ou seja, verde como o lodo, pois esse adjetivo remete a algas marinhas de pigmentação esverdeada e de tonalidade escura, vale dizer, o mito da Vênus emergiu pálida, verde, decrépita e com uma úlcera nas ancas e não formosa como a própria lenda Greco-romana nos ensina, conforme SILVA:

Vênus anadiomene, — que desconstrói a imagem clássica da bela Vênus — e é um ícone máximo dessa lavra de motivos horrendos, o soneto Vênus anadiomene “com a bela hediondez de uma úlcera no ânus”. (RIMBAUD, 1994, p. 81). Esse texto não reclama um dualismo que, por exemplo, ocorre em Baudelaire, nada de platônico ou neo -platônico, Rimbaud não reclama uma forma pura que se degrada, que decai. As fealdades elencadas e o extremo vigor nessa Vênus têm mais a dizer de seu nascedouro que dos eufemismos da lenda: a Clara Vênus nasceu da feiúra da castração de seu pai, Júpiter, que teve os testículos lançados ao mar, daí as ondas foram fecundadas e da clara espuma nasceu a Clara Vênus. Com o adjetivo anadiomene ganha a pigmentação esverdeada das algas anadiomenáceas; anadiomene é epíteto de Afrodite, vem do grego e expressa que surge ( 2010, p. 13).

Perto desse perfil da estética do hediondo observa remos, neste capítulo, os trabalhos de construção de personagens que Graciliano Ramos elabora, mas não necessariamente por ser um seguidor dessa estética. Apresentamos aqui diversas formas de fragmentação, de coisificação, de animalização, miniaturização, inclusive de autominiaturização que constantemente são utilizadas para a criação das personagens e consequentemente das tramas da narrativa. O nosso narrador -personagem elabora, desde as mais aceitas em usos poéticos ou de uso diário da língua, como metáforas nas quais as personagens são reduzidas as suas peças de vestuário, por exemplo:

Ignoro como chegamos à fazenda: as minhas recordações datam da hora em que entramos na sala. Meu pai e o proprietário sumiram -se, foram cuidar de negócios, numa daquelas conversas chei as de gritos. Minha mãe e eu ficamos cercados de saias. (RAMOS, 2011, p. 40).

Os traumas de seus primeiros anos revelam -se a todo momento ao longo do romance. Os homens são diminuídos a miniaturas, os bichos são elevados a condição de homens, (como foi o caso do cururu), os homens “rebaixados” a condição de animais. Ele mesmo, nosso autor -narrador, por dezenas de vezes, é bicho-homem, homem-bicho, meio homem, meio bicho, isso tudo sem ter a “elegância” clássica de uma lenda como o minotauro ou o centauro. Na verdade, em Ramos, o meio homem, por exemplo, perde tanto a forma de homem quanto a fo rma do bicho que é aproximado, o homem acaba mesmo apenas sendo um simples coacho, zumbido, berro, por exemplo: Ridículo um indivíduo hirsuto e grave, doutor e barão, pipilar conselhos, zumbir admoestações (RAMOS, 2011, p.131).

Esse recurso estilístico de composição dos personagens é a expressão, a voz do autor, a voz do homem isento no processo de criação que se permite a criar, a manusear as personagens da maneira mais pertinente às suas memórias e idiossincrasias de infante que perduraram no adulto. Veja mos o que nos informa o mestre Russo Bakhtin sobre a construção de personagens:

O tipo pressupõe a superioridade do autor sobre a personagem e a completa desvinculação axiológica daquele ao mundo desta; daí ser o autor absolutamente crítico. A autonomia d a personagem no tipo é consideravelmente reduzível, todos os elementos problemáticos são transferidos do contexto da personagem para o contexto do autor, desenvolve-se a pretexto da personagem e vinculados a ela, mas não nela, e quem lhes dá unidade é o autor e não a personagem, que é portadora da unidade vital ético -cognitiva que no tipo é extremamente reduzida. É claro que inserir elementos líricos no tipo é inteiramente impossível. É essa a forma do tipo do ponto de vista da relação mútua que nela existe entre a personagem e o autor. (BAKHTIN, 2010, p. 169).

Toda a sociedade era retratada nas letras graciliânicas e assim o viés grotesco e animalesco da Humanidade se faz presente como quando, por exemplo, explora as potências moralizantes dos apólogos e d escreve o Homem-animal e vice- versa:

Não me parecia desarrazoado os brutos se entenderem, brigarem, fazerem as pazes, narrarem as suas aventuras, sem dúvida curiosas. Tinha refletido nisso, admitia que os sapos do açude da Penha manifestassem, cantando, coisas ininteligíveis para nós. Os frac os se queixavam, os fortes gritavam mandando. Constituíam uma sociedade. Sapos negociantes, sapos vaqueiros, o Reverendo sapo João Inácio, o sapo José da Luz, amigo da distinta farda, sapos traquinas, filhos do cururu Teotoninho Sabiá, o sapo alfaiate mest re Firmo, a sapa Rosenda lavadeira a tagarelar os mexericos da beira da água. O nosso mundo exíguo

podia alargar-se um pouco, enfeitar -se de sonhos e caraminholas.

Infelizmente um doutor, utilizando bichinhos, impunha-nos a linguagem dos doutores.

— Queres tu brincar comigo?

O passarinho, no galho, respondia com preceito e moral. E a mosca usava adjetivos colhidos no dicionário. A figura do barão manchava o frontispício do livro — e a gente percebia que era dele o pedantismo atribuído à mosca e ao passar inho. Ridículo um indivíduo hirsuto e grave, doutor e barão, pipilar conselhos, zumbir admoestações. E isso ainda era condescendência. Decifrados a custo os dois apólogos, encolhi -me e desanimei, incapaz de achar sentido nas páginas seguintes. Li - as soletrando e gaguejando, nauseado. Lembro -me de um desses horrores, que bocejei longamente. Um sujeito, acossado, ocultava-se numa caverna. A aranha providencial veio estender fios à entrada do refúgio. E os perseguidores não incomodaram o fugitivo: se ele estivesse ali, teria desmanchado a teia (RAMOS, 2011, p.130-131).

Ramos chega mesmo a compor personagens que, de imediato, descreve com certo desdém e que de fato sequer, chegam a ser verdadeiramente pessoas:

D. Clara, pessoa grave que tinha diversos filhos, um gato, marido invisível. Uma parenta dela, irmão ou sobrinha, dessas criaturas que não pedem, não falam, não desejam, aparecem quando são úteis e logo se somem, fogem aos agradecimentos, familiarizou-se conosco, tomou conta dos arranjos da instalação (RAMOS, 2011, p.59).

As descrições cronistas que Ramos nos traz revelam cenas que não deixam de ser horrendas e de corroborarem com cenas descritas das praças públicas do medievo:

As pessoas comuns exalavam odores fortes e excitantes, de fumo, suor, banha de porco, mofo, sangue. E bafos nauseabundos. Os dentes de Rosenda eram pretos de sarro de cachimbo; André Laerte usava um avental imundo; por detrás dos baús de couro, brilhantes de tachas amarelas,

escondiam-se camisas ensangüentadas. (RAMOS, 2011, p. 122)

Temos abaixo um exemplo que frequentemente se faz no romance, que é a opressão física e psicológica que sua mãe exerce pelos mais pífios “motivos”:

De fato meu pai mostrava comportar -se bem. Mas havia aquela evidência de faltas antigas, uma evidência forte, de cabeleira negra, beiços vermelhos, olhos provocadores. Minha mãe não dispunha dessas vantagens. E com certeza se amofinava, coitada, revendo -se em nós, percebendo cá fora, soltos dela, pedaços da sua carne propícia aos furúnculos. Maltratava-se maltratando-nos. Julgo que aguentamos cascudos por não termos a b eleza de Mocinha (RAMOS, 2011, p.26).

Esses cascudos, esses reiterados cascudos desferidos por sua mãe, reaparecem nas mais diversas vezes e em, bons devaneios os rastros da violência diária são descritos inexistentes Nem palavras ásperas nem arranhões, cocorotes e puxões de orelhas:

Entretinha-me remexendo as maravalhas, explorando os recantos escuros, observando o trabalho das aranhas e a fuga das baratas. Divagava imaginando o mundo coberto de homens e mulheres da altura de um polegar de criança. Não me havendo chegado notícia das viagens de Gulliver, penso que a minha gente liliputiana teve origem nas baratas e nas aranhas. Esse povo mirim falava baixinho, zumbindo como as abelhas. Nem palavras ásperas nem arranhões, cocorotes e puxões de orelhas. Esforcei - me por dirimir as desavenç as. Quando os meus insetos saíam dos eixos, revelavam instintos rudes, eram separados, impossibilitados de molestar -se. E recebiam conselhos, diferentes dos conselhos vulgares. Podiam saltar, correr, molhar -se, derrubar cadeiras, esfolar as mãos, deitar ba rquinhos no enxurro. Nada de zangas. Impedidos os gestos capazes de motivar lágrimas.

Largando esses devaneios, entregava -me à inspeção das mercadorias. (RAMOS, 2010, p.104 -105).

Graciliano Ramos (1892 -1953), no capítulo “Um incêndio”, de Infância, já traz essa decomposição dos corpos em sua temática. Percebe-se que o contato prematuro que o garoto teve com a morte desencadeia cenas monstruosas de puro horror: não presenciando a vivo, o incêndio, ele quase passa despercebido por “uma coisa estendida, junto ao borralho” (2011, p.95). Era, portanto o corpo carbonizado da negra, definido pelo menino como: “aparência vaga de um rolo de fumo” (2011, p. 95) como veremos num trecho em que o autor retrata suas impressões do corpo da negra queimada:

Jazia ali um ser humano. Logo recusava a proposição insensata. Nada de humano: tinha a aparência vaga de um rolo de fumo. Isto, rolo de fumo, semelhante aos que viscoso, empacavirados em bananeira. (...) Em alguns pontos semelhava carne assada, e havia realmente u m cheiro forte de carne assada; fora daí ressecava -se demais. Nesse torrão cascalhoso sobressaía a cabeça, o que fora cabeça, com as órbitas vazias, duas fileiras de dentes alvejando na devastação, o buraco do nariz, a expelir matéria verde, amarelenta (RA MOS, 2011, p.95-96).

Como exemplo dessas inferiorizações, inclusive as de si mesmo, dos danos à autoestima de “Ramos”, este espalhou ao longo de Infância “no intimo julgava-me fraco. Tinham—me dado esta convicção e era difícil vencer o acanhamento” (RAMOS , 2011, p. 123). As situações de aviltamento às quais o “eu” é um bicho domado, domesticado desprovido de ações e vontades e o que resta ao nosso autor-narrador é uma ambivalência de emoções de espanto e desdém, em palavras de Infância desprezo e inveja a quem consegue revoltar-se contra o sistema:

Dias depois, vi chegar um rapazinho seguro por dois homens. Resistia, debatia-se, mordia, agarrava-se à porta e urrava, feroz. Entrou aos arrancos, e se

conseguia soltar-se, tentava ganhar a calçada. Foi difícil subjugar o bicho brabo, sentá -lo, imobilizá-lo. O garoto caiu num choro largo. Examinei -o com espanto, desprezo e inveja. Não me seria possível espernear, berrar daquele jeito, exibir força, escoicear, utilizar os dentes, cuspir nas pessoas, espumante e selvagem. Tinham -me domado. Na civilização e na fraqueza, ia para onde me impeliam, muito dócil, muito leve, como os pedaços da carta de A B C, triturados, soltos no ar (RAMOS, 2010, p.120).

A relação diretamente proporcional sujeição -objeto:

Foi assim que se exprimiu o Tentador, humanizado, naquela manhã funesta. A consulta me surpreendeu. Em geral não indagavam se qualquer coisa era do meu agrado: havia obrigações, e tinha de submeter-me [grifo nosso]. A liberdade que me ofereciam de repente, o direito de optar, insinuou -me vaga desconfiança. Que estaria para acontecer? Mas a pergunta risonha levou-me a adotar procedimento oposto à minha tendência. Receei mostrar -me descortês e obtuso, recair na sujeição habitual [grifo nosso]. Deixei-me persuadir, sem nenhum entusiasmo, esperando que os garranchos do papel me dessem as qualidades necessárias para livrar -me de pequenos deveres e pequenos castigos [grifo nosso]. Decidi-me.

E a aprendizagem começou ali mesmo, com a indicação de cinco letras já c onhecidas de nome, as que a moça, anos antes, na escola rural, balbuciava junto ao mestre barbado. Admirei -me. Esquisito aparecerem, logo no princípio do caderno, sílabas pronunciadas em lugar distante, por pessoa estranha. Não haveria engano? Meu pai asse verou que as letras eram realmente batizadas daquele jeito.

No dia seguinte surgiram outras, depois , outras — e iniciou-se a escravidão imposta ardilosamente . Condenaram-me à tarefa odiosa [grifo nosso], e como não me era possível realizá -la convenientemente, as horas se dobravam, todo o tempo se consumia nela. Agora eu não tocava nos pacotes de ferragens e miudezas, não me absorvia nas estampas das peças de chita: ficava sentado num caixão, sem pensamento [grifo nosso], a carta sobre os joelhos. (RAMOS, 2 011, p. 110).

As fugas seriam necessárias para escapar das obrigações, das imposições:

Quando me impunham sapatos, era uma dificuldade: os pés formavam bolos, recalcitravam, não queriam meter-se nas prisões duras e estreitas. Arrumavam - se à força, e durante a resistência eu ouvia berros, suportava tabefes e chorava. Um par de borzeguins amarelos, um par de infernos, marcou -me para toda a vida (RAMOS, 2011, p 40).

Cria de gato que ofertamos indiscriminadamente e que sem qualquer afeto entregamos alheios e indiferentes, Luísa se destaca por gerar negrinhos que seriam comidos pela verminose. Luísa, uma das personagens, é par de Fernando nas grosserias mundanas, mas não foi digna de receber um capítulo :

Luísa era intratável e vagabunda. Em tempo de seca e fome chegava-se aos antigos senhores, instalava - se na fazenda, resmungona, malcriada, a discutir alto, a fomentar a desordem. Ao cabo de semanas arrumava os picuás e entrava na pândega, ia gerar negrinhos, que desapareciam comidos pela verminose ou oferecidos, como crias de gato. Parece que só escaparam os dois recolhidos por meu pai. (RAMOS, 2011, p. 85).

E da “moça bonita” que é reduzida a condição “subterranea” do rato, passando a ser prostituta após ser abusada sexualmente e a ser chamada de “ratinha”, ela é uma dessas moças que teve a juventude roubada pela exploração de Fernando. No cap ítulo, “Fernando” é parente de um chefe político e é uma das memórias de injustiça, pois, aproveitando -se da posição social favorável, espancava os frágeis e desprovidos e violentava as mulheres, tratando-as como objetos a serem usados ao seu bel -prazer. Ou seja, Fernando personifica as mais diversas formas de violência e o lado mais sarcástico e sujo do ser humano:

Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante,

tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra ( RAMOS, 2011, p.37).

A percepção de imagens da memória por Ramos, vem como vultos, figuras indefinidas que insistimos em compreender como sombras de pessoas:

De repente me senti longe, num fundo de casa, mas ignoro de que jeito me levaram para lá, quem me levou [grifo nosso]. Dois ou três vultos desceram ao quintal [grifo nosso], de terra vermelha molhada, alguém escorregou, abriu no chão um risco profundo. Mandaram-me descer também (RAMOS, 2011, p. 11).

As demais figuras admitem uma inconstância, uma situação disforme assim como as nuvens que também são símbolos dessa arte de rememorar e que abre o romance:

O oitão esquerdo era de altura incrível; à direita faltava oitão, não sei como o telhado podia equilibrar-se. Talvez currais e chiqueiros, construídos na vizinhança, ocultassem um dos muros. Chiqueiros e currais esvaíram -se [grifo nosso] (RAMOS, 2011, p.23).

Ramos estabelece um eterno embate Homem X Bicho no qual quase nunca o homem encerra-se vencedor, na citação separada os referenciais de força conhecido por nosso protagonista se esvaem, no caso o seu pai torna-se impotente diante de dois personagens da natureza:

As nascentes secavam, o gado se finava no carrapato e na morrinha. Estranhei a morrinha e estranhei o carrapato, forças evidentemente maiores que as de meu pai (RAMOS, 2011, p. 31).

Há, ainda, nas páginas de Infância, um acentuado uso de antropomorfismo infantil o que traz leveza ao texto, acentuando esse lirismo que toma conta desses relatos do menino Graciliano, como pode ser observado no trecho em que o garoto descreve a Vila Buíque:

Buíque tinha aparência de um corpo aleijado: o largo da Feira formava o tronco; a rua da Pedra e aruá da Palha serviam de pernas, uma quase estirada, a outra curva, dando um passo, galgando um monte; a rua da Cruz, onde ficava o cemitério velho, constituía o braço único, levantado; e a cabeça era a igreja, de torre fina, povoada de corujas. Nas virilhas, a casa de seu José Galvão resplandecia, com três fachadas cobertas d e azulejos, origem do imenso prestígio de meninos esquivos: Osório, taciturno, Cecília, enfezada e d. Maria, que pronunciava garafa. Na coxa esquerda, Istoé, no começo da rua da Pedra, o açude da Penha, cheio de música dos sapos, tingia -se de manchas verdes, e no pé, em cima do morro, abria -se a cacimba da Intendência. Alguns becos rasgavam -se no tronco: uma ia ter á lagoa, outro fazia um cotovelo, dobrava para o Cavalo-Morto, areal mal afamado que findava no sítio de seu Paulo Honório; no terceiro as janel as do vigário espiavam as da escola pública, alva de platibanda, regida por um sujeito de poucas falas e barba longa, semelhante ao mestre rural visto anos atrás. Essa parecença me deu a convicção de que todos os professores machos eram cabeludos e silenciosos (RAMOS, 2011, p. 51-52).

As constantes cenas de injustiça, ao longo da obra, faz com que, pela própria natureza do infante, Graciliano desenvolva um senso de pequenez, retratado em alguns pontos de sua obra, no capítulo “Manhã”, por exemplo:

Divagava imaginando o mudo coberto de homens e mulheres da altura de um polegar de criança. Não me havendo chegado noticias de Gulliver, penso que a minha gente liliputiana teve origem nas baratas e nas aranhas. Esse povo mirim falava baixinho, zumbindo como abe lhas (RAMOS, 2011, p. 104-105).

Outro exemplo que daremos, extraído do capítulo “Leitura”, mostra essa miniaturização do ser, elevando os bichos, muitas vezes à condição de homem:

Os meus olhos molhados percebiam a custo o portão do quintal. As mãos descansavam na tábua, imóveis. Julgo que estive meio louco. E amparei -me ansioso às figuras de sonho que me atenuava a solidão. O mundo feito caixa de brinquedos, os homens reduzidos ao tamanho de um polegar de criança (RAMOS, 2011, p.113).

A comparação direta com um animal e homem que se animaliza bisonhamente e papagueia:

Veio novamente a resposta, mas a necessidade de instruir-me acendia-se e apagava-se, faiscava-me no interior como um vaga-lume. Estranha loquacidade inutilizava o silêncio obtuso que me haviam imposto. O animalzinho bisonho papagueava, e gargalhadas estrugiam na sala, abafando a quizília de minha mãe. Essa potência baqueava (RAMOS, 2011, p. 44).

Tão “insignificante e miúdo como as aranhas”:

Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, sopran do, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.

Foi esse o primeiro contacto que tive com a justiça (RAMOS, 2011, p. 37).

Homens invisíveis e pessoas que só existem quando são úteis:

A nossa casa era na Rua da Palha, junto à de d. Clara, pessoa grave que tinha diversos filhos, um gato, marido invisível. Uma parenta dela, irmão ou sobrinha, dessas criaturas que não pedem, não falam, não desejam, aparecem quando são úteis e logo se somem, fogem aos agradecimentos, familiarizou-se conosco, tomou c onta dos arranjos da instalação (RAMOS, 2011, p. 59).

As personagens de suas narrativas são meros passantes, ou empecilhos a serem ultrapassados, ou, simplesmente, bichos, como podemos ver, também, em passagens de São Bernardo: “Gosto dele. É corajoso, laça, rasteja, tem faro de cão e fidelidade de cão” (RAMOS, 2008c, p. 19).

A diminuição da figura humana, a tendência fatalista da decadência do ser, o esgotamento psíquico dos persona gens, a ausência de referência ao garoto, através de um nome de batismo, subjugado pela opressão, são pontos chaves que serviram de leitura para a feitura desse trabalho e para a retratação dos bichos em personas.

Sem dúvida o meu aspecto era desagradável , inspirava repugnância. E a gente da casa se impacientava. Minha mãe tinha a franqueza de manifestar-me viva antipatia. Dava-me dois apelidos: bezerro-encourado e cabra-cega.

Bezerro-encourado é um intruso. Quando uma cria morre, tiram-lhe o couro, vestem com ele um órfão, que, neste disfarce, é amamentado. A vaca sente o

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