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Os boêmios cívicos da Assessoria Econômica: saber técnico e decisão política no governo Vargas (1951-54)

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Os “boêmios cívicos” da Assessoria Econômica:

saber técnico e decisão política no governo Vargas (1951-54)

*

Marly Motta

Doutora em História (UFF) Pesquisadora CPDOC-FGV

Ele [Getulio] nos chamava de “boêmios cívicos”, porque abria a janela a qualquer hora da madrugada e nós estávamos lá trabalhando. (Ignacio Rangel)1

Quando os “boêmios cívicos” falam...

Este texto tem como objetivo analisar o papel e a atuação da Assessoria Econômica no segundo governo Vargas a partir de entrevistas que alguns de seus membros concederam ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getulio Vargas, ao longo da década de 1980. Ao avaliar a posteriori a curta, porém intensa, experiência que tiveram como

“braço imediato” do presidente da República,2 os depoimentos de Rômulo de Almeida, Cleantho Paiva Leite e Ignacio Rangel tornam-se fontes particularmente interessantes para quem está interessado em entender os meandros do processo de industrialização, em particular o papel que nele desempenharam as chamadas “elites técnicas”.

A partir dos anos 1980, o CPDOC realizou um conjunto de entrevistas com membros destacados da elite técnica do Estado. Esse acervo, enriquecido nas décadas seguintes, constitui uma fonte muito rica para o debate sobre os rumos da economia brasileira, na medida em que possibilita acompanhar a montagem de uma nova arquitetura do aparelho estatal, por meio da criação de novos órgãos públicos e de expansão de seu potencial de regulação e intervenção na vida econômica do país. Ajuda, ainda, a recuperar o movimento de modernização e de ampliação do Estado brasileiro,

* Trabalho apresentado no VI Encontro Regional no Sudeste de História Oral da ANPUH. Juiz de Fora(MG), 2005.

1 Ignacio Rangel, Depoimento: 1987-8, Rio de Janeiro, Programa de História Oral do CPDOC-FGV, p.9. 2 Rômulo de Almeida, Depoimento: 1980, Rio de Janeiro, Programa de História Oral do CPDOC-FGV, p. 10.

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no bojo do qual se constituíram os organismos e se definiu sua inserção no processo de desenvolvimento nacional.

A utilização de depoimentos orais como fonte para o estudo de instituições político-administrativas pareceria, até algum tempo atrás, uma completa heresia. E isto por vários motivos: a começar, pelo emprego desse procedimento metodológico para a análise de um tema suficientemente abastecido pela documentação escrita. Nesse caso, o apelo ao depoimento oral se mostraria irrelevante, e até mesmo perigoso, na medida em que a obediência a regras escritas e impessoais seria uma das marcas características desse tipo de objeto. Por formação, os membros da tecnocracia estatal se recusariam a dizer coisas importantes ou muito pessoais, já que o ethos de sua carreira estaria mais

ligado à atuação discreta nos gabinetes do que ao discurso “barulhento” dos políticos. No entanto, ao permitir a abordagem do mundo “fechado” da burocracia técnica, rachando a fachada de neutralidade e de racionalidade que busca isolá-lo do público externo, o método da história oral abre possibilidades interessantes de trabalho. Os depoimentos dos técnicos deixam entender, por exemplo, a maneira pela qual analisaram, “de dentro”, os meandros políticos e estratégicos de tomada de decisão, fornecendo elementos que possibilitam avaliar, nesse processo, o peso do aleatório e do conjuntural. Aí também estão presentes os conflitos com os políticos, as rivalidades com os pares, as redes de amizade, de escola, de grupo, ou seja, toda uma ambiance

impossível de ser recuperada através da documentação escrita.

Como resultado dessas novas preocupações do historiador, as análises macro-estruturais foram cedendo lugar às abordagens em pequena escala, que buscam entender o papel dos atores sociais, os processos através dos quais estes elaboram os projetos que dão sentido a suas ações, e as práticas e as estratégias que desenvolvem para empreendê-los. E mais: permitem desvendar as relações entre o indivíduo – com seus vários graus de liberdade de ação – e a rede histórica – com seus vários graus de atividade condicionante.3

“Homens capazes de dizer que estou errado”

O presidente [Vargas] disse: “Eu sei” – porque a Polícia política tinha avisado – “tudo sobre o sr. Rangel, mas diga a ele que esteja à vontade, que ele se sinta em casa, porque aduladores eu tenho; homens

3 Ver Giovanni Levi, Sobre a micro-história, em Peter Burke (org.), A escrita da história: novas

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capazes de dizer que estou errado, isto é muito raro; e ele é um desses”. (Ignacio Rangel)4

Diferentes estudos sobre o segundo governo Vargas costumam enfatizar, em suas análises, o papel nele desempenhado pela Assessoria Econômica, então criada com um duplo objetivo: assessorar diretamente o presidente da República nas questões cotidianas do governo, e ser um órgão informal de planejamento. Apesar do interesse comum, esses trabalhos não convergem, no entanto, para uma mesma interpretação sobre o significado da Assessoria na conjuntura política e econômica do Brasil do início dos anos 1950.

Estudiosos do processo de profissionalização dos economistas e de sua inserção no movimento de renovação das elites dirigentes reconhecem a Assessoria Econômica como um espaço de consolidação e de reconhecimento do saber econômico, fundamental para a construção do Brasil como um “novo” país.5 Na verdade, a maioria dos membros da Assessoria ostentava diploma de advogado e de engenheiro, e não de economista – no Rio de Janeiro, a primeira faculdade privada de economia data de 1938 e foi incorporada, oito anos depois, à Universidade do Brasil, sob a denominação de Faculdade Nacional de Ciências Econômicas.6 No entanto, esses homens eram identificados, foram convocados e se reconheciam como economistas. “Eu fui convidado como economista”, diz Rômulo de Almeida.7

A Assessoria Econômica é vista também como uma importante arena decisória que refletiria as tensões econômicas e políticas do governo Vargas. Lourdes Sola a considera um dos “braços” da política econômica varguista, aquele voltado para a implantação de “um projeto moderadamente nacionalista de desenvolvimento”. O outro

“braço”, preocupado com “a busca de novas formas de inserção do Brasil no sistema de

cooperação internacional”, seria a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos.8 Se, na esfera da decisão econômica, o contraponto da Assessoria era a Comissão Mista, na instância

4 Ignacio Rangel, op. cit., p. 5.

5 Ver, entre outros, Maria Rita Loureiro, Economistas no governo, Rio de Janeiro, Editora FGV, 1997; Marly Silva da Motta, Economistas: intelectuais, burocratas e “mágicos”, em Ângela de Castro Gomes (coord.), José Luciano de Mattos Dias e Marly Silva da Motta, Engenheiros e economistas: novas elites burocráticas, Rio de Janeiro, Editora FGV, 1994.

6 Ver Marly Silva da Motta, op. cit., p. 94-98.

7 Rômulo de Almeida, Depoimento: 1988, Rio de Janeiro, Programa de História Oral do CPDOC-FGV, p. 72.

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política era o Ministério.9 Enquanto este resultou de um esforço de conciliação e, por isso mesmo, contava com figuras não-afinadas com o presidente, aquela havia sido escolhida por critérios “técnicos” e pela “lealdade ideológica” aos propósitos de Vargas.10

Rômulo de Almeida (1914-88), baiano, bacharel de direito dedicado aos estudos de economia, fez parte da equipe do Instituto de Serviços Sociais do Brasil (ISSB) que, dirigido por João Carlos Vital, tinha como objetivo planejar a instituição da previdência social no Brasil. Composta por Américo Barbosa Oliveira, Tomás Pompeu Accioly Borges, Jesus Soares Pereira, entre outros, essa equipe participou da Comissão de Investigação Econômica e Social da Assembléia Constituinte (1946), onde Rômulo assessorou Horácio Lafer, que era relator da subcomissão de finanças. Diretor, desde 1945, encontrava-se à frente do Departamento Econômico da Confederação Nacional da Indústria (CNI), presidida por Euvaldo Lodi, Rômulo foi aí recrutado e encarregado de montar a equipe que daria origem à Assessoria Econômica de Vargas. Em virtude da variedade de atribuições – a mais urgente delas era a elaboração da Mensagem Anual do Presidente a ser divulgada em março de 1951 –, a composição do grupo acabou sendo heterogênea, apesar de a base ser oriunda da “turma do Vital”. Os requisitos fundamentais desses assessores eram: a competência e o conhecimento técnicos, que os tornaria capazes de dizer que o presidente estava errado; a especialização em política energética e mineral, que acabou juntando os “comunistas” Jesus Soares Pereira e Ignacio Rangel ao “direitista” Mário da Silva Pinto; a vivência internacional, caso de Cleantho Paiva Leite; e, finalmente, a experiência com planejamento e política industrial – caso de Rômulo de Almeida.

“Sob o comando nacional e o comando do Estado brasileiro”

Nós considerávamos objetivamente que em alguns casos você não podia deixar de utilizar o capital estrangeiro. Inclus ive houve até uma vez um debate meu com uma figura eminente que queria obstaculizar o projeto da Reynolds Alumínio no Nordeste (...). Agora, era um projeto que não poderia prejudicar o projeto da Votorantim, que era um projeto nacional e que ainda não se tinha consolidado (...). As atividades básicas deveriam estar sob o comando nacional e o comando do Estado brasileiro (...). Aliás,

9 Ver Maria Celina D’Araújo, O segundo governo Vargas – 1951-54: democracia, partidos e crise política, São Paulo, Ática, 1992.

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o projeto da Reynolds não saiu (...); enfim pela resistência também do capital nacional, que era o Ermírio de Morais. (Rômulo de Almeida)11

Ao lado dos trabalhos que consideravam a infra-estrutura econômica o elemento explicativo fundamental do processo de industrialização brasileira,12 verificou-se o crescimento de uma produção historiográfica cujo ponto alto foi a análise do papel decisivo que determinados atores sociais e políticos tiveram nesse processo.13 A Assessoria Econômica e as associações representativas dos industriais, como a Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), podem ser incluídas nesse caso e, por isso mesmo, foram objeto de estudos preocupados em averiguar o grau de influência que tiveram no ritmo e nos rumos da política de industrialização implementada pelo segundo governo Vargas. Nesse sentido, mais importante do que descobrir quem efetivamente dava as cartas no jogo do processo decisório é não só perceber o fluxo de interesses comuns e visões convergentes entre a Fiesp e a Assessoria de Vargas, mas também verificar seus possíveis pontos de estrangulamento. Quem sabe nessa dinâmica seja possível identificar alguns dos propulsores da industrialização nesse período, bem como algumas de suas dificuldades e de seus impasses.

A aliança entre Vargas, os quadros burocráticos que planejaram a política industrial e os industriais é o elemento principal da análise de Maria Antonieta Leopoldi sobre a industrialização no período entre 1951 e 1954.14 Os depoimentos dos assessores do presidente, especialmente o de Rômulo de Almeida, não deixam dúvidas sobre a intensa participação do “grupo industrialista” nos debates sobre o “desenvolvimento” da economia brasileira. Ao contar como havia se dado seu recrutamento para a Assessoria, Rômulo enfatizou o compromisso que tinha com as idéias expostas no “parecer” do Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial (CNPIC) e, obviamente com seu autor, Roberto Simonsen. Ao mesmo tempo em que deixava claro de que lado estava na

11 Rômulo de Almeida, Depoimento: 1980, op. cit., p.10 e 18.

12 Ver, entre outros, Wilson Cano, Raízes da concentração industrial em São Paulo, São Paulo, T.A. Queiroz, 1981.

13 Ver, entre outros, as teses de Maria Antonieta Leopoldi, Industrial associations and politics in

contemporary Brazil, Oxford, 1984 (publicada em Política e interesses ...., ...; e de Loudes

Sola, The political and ideological contraints to economic management in Brazil, 1945-1963, Oxford,

1982 (publicada em Idéias econômicas, decisões políticas: desenvolvimento, estabilidade e populismo,

op. cit.). Ver também Eli Diniz, Empresário, Estado e capitalismo no Brasil: 1930-1945, Rio de Janeiro,

Paz e Terra, 1978; e Sonia Draibe, Rumos e metamorfoses: um estudo sobre a constituição do Estado e as

alternativas de industrialização no Brasil – 1930-1960, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.

14 Ver Maria Antonieta P. Leopoldi, O difícil caminho do meio: Estado, burguesia e industrialização no segundo governo Vargas (1951-54), em Angela de Castro Gomes (org.), Vargas e a crise dos anos 50,

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famosa “controvérsia sobre o planejamento econômico”, que envolveu o CNPIC, de um lado, e o Conselho de Planejamento Econômico (CPE) de Eugênio Gudin, de outro,15 Rômulo acenava com a possibilidade de uma aliança entre o “público e o privado” com o objetivo de “organizar o setor industrial brasileiro”:

Agora, eu fui convidado como economista. Como homem com compromissos com aquelas idéias que foram apresentadas no parecer do CNPIC. E encontrei no Roberto Simonsen, e inclusive no [Euvaldo] Lodi também, muita abertura. Quer dizer, muito desejo de conciliar o público com o privado, dentro dessa idéia de desenvolver a economia brasileira e industrializar ao país, substituir as importações (...). E eu achava que era muito importante a gente organizar o setor industrial brasileiro.16

No entanto, se até mesmo razões de ordem prática ligavam a Assessoria às entidades industriais – por falta de recursos do governo para remunerar os assessores, Rômulo continuou recebendo salário pela CNI –, isso não significava que houvesse uma sintonia fina na conciliação “entre o público e o privado” no que diz respeito, por exemplo, à presença e à participação do Estado na montagem do sistema elétrico, vale dizer, na criação da Eletrobrás:

O grupo industrialista – tomando como expressão desse grupo Roberto Simonsen – propôs um planejamento da economia brasileira que incluía, obviamente, os setores da infra-estrutura básica. Mas ele não propunha nada de estatização (...). A preocupação deles era mais que houvesse suprimento de energia elétrica. Mas não que se fizesse isso através do Estado. Pelo contrário. Sempre houve uma tendência a desconfiar do Estado.17

Essa “desconfiança” do grupo industrialista pode ser explicada, entre outras razões, pelo temor de que viesse a ocorrer a estatização de um setor fundamental para a atividade industrial, como também pela descrença de que o Estado fosse capaz de resolver o impasse energético que a ind ústria então enfrentava. Divididos em relação à política formulada pela Assessoria, os industriais brasileiros não foram, no entanto, os responsáveis pelo bombardeio sofrido pelo projeto de criação da Eletrobrás, oriundo, sobretudo, das companhias estrange iras que atuavam no setor elétrico.

15 Em agosto de 1944, Roberto Simonsen, relator do Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial (CNPIC), subordinado ao Ministério do Trabalho, preparou um relatório propondo a “planificação da economia brasileira”, e o enviou a Eugênio Gudin, relator da Comissão de Planejamento Econômico (CPE), subordinada ao Conselho de Segurança Nacional. As críticas que Gudin fez ao documento de Simonsen, publicadas em Rumos de política econômica, foram respondidas por este em O planejamento da economia brasileira. A publicação desse debate encontra-se em A controvérsia do planejamento econômico, Rio de Janeiro, Ipea/Inpes, 1978.

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A relação da Assessoria com o capital estrangeiro era muito complexa e, em boa medida, representava a própria complexidade de um governo que, para ser bem-sucedido em suas ambiciosas metas políticas e econômicas, precisava conciliar nacionalismo e incentivo à vinda de capitais externos para o país. Aliás, como bem analisou Pedro Dutra, o nacionalismo no Brasil dos anos 50 significava, sobretudo, a busca de convergência entre os “interesses nacionais” e o bloco capitalista, com vistas a mais acesso a recursos estrangeiros, cuja alocação, essa sim, era direcionada para ramos e setores nem sempre do interesse norte-americano.18 Daí, inclusive, se pode entender os sinais, às vezes trocados, emitidos por Rômulo em relação aos investimentos estrangeiros no país. De um lado, tem-se a reação indignada quando, ao ouvir em um discurso que a “Light havia feito São Paulo”, retrucou que a afirmação deveria ser invertida: “Foi São Paulo quem fez a Light!”19

Se o “polvo canadense” parecia enfeixar todos os males trazidos pela “dominação imperialista”, a perspectiva de investimento de capitais estrangeiros, especialmente os que vinham da Europa e que se “mesclavam com brasileiros”, era vista com bons olhos pela Assessoria. O caso da Mercedes Benz parece exemplar:

Nós éramos muito atentos às iniciativas que havia de industriais, inclusive de capitais estrangeiros, sobretudo quando eles se mesclavam com brasileiros. Por exemplo, o projeto da Mercedes Benz foi um projeto que nasceu na nossa Assessoria. Quer dizer, nasceu do contato dos alemães com o embaixador Pimentel Brandão, que era amigo do Getulio, e que estava procurando fazer contato com alemães para trazer para o Brasil. E também de um polonês que conseguiu da Mercedes uma licença, e que ficaria com 25% de capital. Então o polonês já estava integrado no Brasil, parecia ser um homem muito capaz, daí nós demos todo apoio a ele.20

O mesmo tratamento não foi dado, no entanto, ao projeto da Reynolds Alumínio que pretendia se instalar no Nordeste. Aqui prevaleceu a lógica da proteção ao capital nacional, representado pelas Empresas Votorantim, do empresário Ermírio de Morais, que, em 1941, constituíra a Companhia Brasileira de Alumínio, graças a empréstimos concedidos pelo governo Vargas para a compra dos equipamentos necessários na Itália. Inaugurada em 1945, no estado de São Paulo, passou a abastecer o mercado brasileiro de alumínio industrializado, produto até então importado.

18 Ver Pedro Cezar Dutra Fonseca, Nacionalismo e economia: o segundo governo Vargas, em Tamás Szmrecsányi e Wilson Cano (org.), História econômica do Brasil contemporâneo, São Paulo,

Hucitec:ABPHE:Edusp:Imprensa Oficial, 2002.

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Embora a criação da Assessoria tivesse como pressuposto a perspectiva de preservar certas esferas do Estado – em especial, aquelas que lidavam com decisões técnicas na área econômica – das barganhas inerentes ao jogo dos interesses econômicos e político-partidários, é claro que isso só aconteceu no mundo das intenções. No mundo das realizações, o que se pode avaliar é o quanto essas áreas “preservadas” foram mais ou menos permeáveis aos embates do poder. Apesar de todo o esforço de Vargas para mantê-las apartadas, as áreas técnica e política do governo se interpenetraram: alguns dos “boêmios cívicos” tinham aspirações políticas, e os ministros viam com “suspicácia” a proximidade que estes desfrutavam com o centro nevrálgico do poder, vale dizer, com Vargas.

“Era um jogo de pesos e medidas, de contrabalanço”

A Comissão de Desenvolvimento Industrial ficou sediada no Ministério da Fazenda, e sediada com muita razão, porque o Ministério da Fazenda vivia muito suspicaz. O Ministério da Fazenda estava sob o comando do Lafer, e o Lafer era do grupo de João Neves, que era do grupo da Comissão Mista, então nós queríamos evitar atritos (...). A Assessoria obedecia a uma política, e a Comissão Mista à outra. (Rômulo de Almeida)21

É bem estudada a estratégia de Vargas de buscar articular interesses divergentes alocando-os em instâncias diversificadas de poder, possibilitando assim, com o apoio do governo, a convivência de posições distintas abrigadas sob o mesmo teto.22 Com o objetivo de elaborar planos e projetos voltados para a industrialização e a infra-estrutura energética, foram alocadas no Ministério da Fazenda a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos e a Comissão de Desenvolvimento Industrial. A primeira delas se instalou em julho de 1951, como resultado do acordo assinado no ano anterior entre os governos Dutra e Truman. Sua meta principal era a “troca” de matérias-primas estratégicas brasileiras por assistência técnica norte-americana para projetos de desenvolvimento, para o que se contava com a garantia de créditos por parte do Banco Mundial e do Eximbank como resultado de negociações conduzidas por João Neves da Fontoura, ministro de Relações Exteriores de Vargas. Importando o estilo soviético dos planos qüinqüenais, os trabalhos produzidos pela Comissão acabaram compondo o chamado Plano de Reaparelhamento Econômico, cujo financia mento viria do fundo de mesmo

21 Idem, ib., p. 8.

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nome, a ser gerido pelo Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico (BNDE). Criada também em julho de 1951, a Comissão de Desenvolvimento Industrial, igualmente subordinada a Lafer, era composta por representantes de vários ministérios e órgãos do governo, e contava ainda com a participação, nas subcomissões específicas, de representantes indicados por entidades industriais. Voltada para a elaboração da política industrial, cujo objetivo principal era atrair indústrias para setores considerados estratégicos, a CDI traçava, entre outras, políticas de proteção tarifária, cambial, tributária e financeira, em articulação com as entidades cambiais e financeiras do Estado.23

Se é evidente a tensão entre a Assessoria e o “grupo” dos ministros Lafer e Neves da Fontoura – “a Assessoria obedecia a uma política, e a Comissão Mista à outra” –, era ainda maior o desconforto entre o ministro da Fazenda e o presidente do Banco do Brasil, Ricardo Jafet. Ambos eram industriais paulistas – Jafet, do setor de siderurgia/metalurgia, e Lafer, do ramo de papel –, e haviam tido o aval do governador paulista Adhemar de Barros, grande eleitor de Vargas em 1950. Além disso, Jafet fora um dos principais financiadores da campanha presidencial vitoriosa. Estudos apontam que suas divergências se relacionariam, sobretudo, à disputa entre diferentes grupos econômicos pela manutenção da hegemonia dos interesses industriais paulistas dentro da economia brasileira.24

Alçados à condição de “braços imediatos” do presidente, os membros da Assessoria sentiam-se imprensados – como um “sanduíche”, na interessante expressão de Rômulo de Almeida – entre essas duas forças antagônicas, com quem eram obrigados a despachar cotidianamente:

Evidentemente, eu estava em sanduíche, porque eu despachava os processos dos dois (...). Agora, o Jafet não nos criava nenhum problema. O Jafet era um homem da indústria paulista, era um homem do presidente, era um homem inspirado na idéia nacionalista do presidente, enquanto que o Lafer era um homem ligado a setores menos ortodoxos no particular, que queriam proteção para suas indústrias, mas não em caráter nitidamente nacionalista, um homem muito persuadido de que o Brasil era inviável sem uma aliança com o capitalismo americano (...). Além disso, havia o problema de ordem pessoal, questão de rivalidade, de certa maneira a presença do Jafet era uma diminuição da autoridade do Lafer (...). Era um jogo de pesos e medidas, de contrabalanço, que o governo tinha que fazer

23 Ver, além dos acima citados, Pedro Malan et alii, Política econômica externa e industrialização no

Brasil (1939-1952), Rio de Janeiro, Ipea/Inpes, 1977; Lucas Lopes, Memórias do desenvolvimento, Rio

de Janeiro, Centro de Memória da Eletricidade, 1991; Sonia Draibe, Rumos e metamorfoses, op. cit..

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dentro de sua política, que tinha que ser ambígua para ele poder governar o que governou.25

Ocupar a presidência do Banco do Brasil naquele período significava dispor de poderes praticamente equivalentes aos do ministro da Fazenda, já que sob o comando direto do presidente do Banco encontravam-se as poderosas Carteira de Redesconto e Carteira de Exportação e Importação (Cexim), além da vice-presidência da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc) e do Conselho de Desenvolvimento Industrial. No caso específico de Jafet, o cargo ganhava ainda mais peso no tradicional jogo de poder com a Fazenda, já que, como diz Rômulo, “ele era um homem do presidente, um homem inspirado na idéia nacionalista do presidente”. Essas afinidades evidentes com a Assessoria, sobretudo a fidelidade a Vargas, podem explicar por que o presidente do Banco do Brasil “não criava nenhum problema”.

Lafer tinha também seus trunfos, já que era aquele que, por sua posição favorável a uma maior aproximação com o capitalismo norte-americano, poderia afastar as suspeitas quanto a uma recaída xenófoba do governo Vargas. A composição Lafer-Jafet, que, para além da boa convivência entre judeus e árabes no Brasil, sinalizava a delicada sustentação do complexo projeto de desenvolvimento implantado por Vargas, teria se desgastado também por problemas de “rivalidade pessoal”: o ministro se sentiria “diminuído” em relação a Jafet, seu subordinado na hierarquia governamental.

“A Assessoria Econômica era vista pelos ministros com ‘mixed feelings’”.

A Assessoria Econô mica era vista pelos ministros com “mixed feelings”; os ministros despachavam uma vez por semana, durante uma hora

com o presidente; ao passo que os assessores despachavam três vezes por semana, por duas horas, em um ambiente de muito mais intimidade com o presidente. Em segundo lugar, o presidente, quando despachava com os ministros, não assinava as exposições de motivos, a não ser em casos excepcionais (...). 60 ou 70% dos papéis ele enviava para seus assessores. Quando os assessores levavam esses papéis e trocavam idéias, aí é que ele despachava. Ele despachava os papéis na frente dos assessores, mas não na frente dos ministros. (Cleantho Paiva Leite)26

A opção estratégica de Vargas de criar instâncias diversificadas de poder, se, por um lado, respondia a necessidades de composição política e de implementação de um determinado modelo de desenvolvimento econômico, por outro, criava problemas de

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relacionamento entre os ocupantes dos cargos alocados nessas instâncias – e o affair

Lafer x Jafet não foi, certamente, o único exemplo desse tipo de problema. Os depoimentos de Ignacio Rangel, Cleantho Paiva e Rômulo de Almeida são pródigos na ilustração dos “mixed feelings” que os ministros tinham em relação aos “boêmios

cívicos” de Vargas.

A rigorosa rotina de trabalho do presidente, tal como descrita acima por Cleantho, seria uma das fontes de ressentimento dos ministros em relação à Assessoria. Aqueles disporiam de menos tempo com Vargas – apenas uma hora por semana –, e dele mereceriam menos confiança, já que o presidente não costumava despachar as exposições de motivos por eles levadas para sua apreciação. Em geral, estas eram encaminhadas à Assessoria para a devida análise, e, depois da “troca de idéias”, Vargas despachava “na frente dos assessores”, o que normalmente não fazia diante dos ministros, como gosta de sublinhar Cleantho.

A principal explicação para esse comportamento de Vargas era, na avaliação dos membros da Assessoria, a desconfiança que ele nutria em relação a seus ministros. Enquanto estes foram escolhidos com base em manejos resultantes da necessidade de composição política27 – desde a formação de uma base parlamentar em um Congresso onde não possuía maioria, até a tentativa de introduzir a UDN na órbita ministerial com vistas a assegurar a “união nacional” –, na Assessoria, Vargas podia dar “sua nota pessoal”.28 É justamente em função dessa avaliação que Cleantho bate na tecla de que a “lealdade” havia sido, ao lado do saber técnico, um elemento decisivo na seleção dos assessores:

Tenho a impressão que a escolha da Assessoria Econômica revela muito a atitude dele [Vargas] em relação à vida política do Brasil (...). Ele [Vargas] não tinha, digamos, confiança total nos ministros que foi obrigado a escolher por esses critérios; então, ele se apoiava em um pequeno grupo de assessores, escolhidos talvez na base do que achava uma grande lealdade, inclusive ideológica, em relação a seus propósitos.29

Oriundos de diversas procedências regionais, profissionais e políticas – “Soares Pereira, Rômulo, haviam participado da luta em 1930; uma boa parte havia passado pela Frente Integralista, e outra pela Juventude Comunista”30 – os assessores se sentiram “refundidos” no governo Vargas. A “fusão” que os unia continha, além do saber técnico

27 Sobre a formação do chamado “Ministério da Experiência” (1951-53), ver Maria Celina D’Araújo, op. cit., Cap. 5.

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e da lealdade ao presidente, uma boa dose de “manejo político para fazer com que o ministro, às vezes, engolisse uma idéia que não estava na tendência (...) era preciso, na medida do possível, ganhar o ministro”.31 É manifestada, assim, no depoimento de Rômulo de Almeida a necessidade de serem estabelecidas pontes entre o Ministério e a Assessoria, preocupação que era partilhada, aliás, pelo próprio presidente, quando se dirigia a Oswaldo Aranha – que substituíra Lafer na reforma ministerial de 1953 – pedindo que deixasse “o rapaz [o assessor] falar” ou então cobrando dele a razão por que não havia recebido os “seus boêmios cívicos”. Essa negociação constante com os ministros, que implicou, muitas vezes, no abandono de “teses nacionalistas”, levou Ignácio Rangel a concluir que, embora Vargas “fosse nacionalista, eu não sei se teria um projeto nacional homogêneo com aquele ministério dividido que ele foi obrigado a constituir”.32

“Mesmo como tecnocrata, eu tenho que considerar que era condicionado pela conjuntura política”

Eu era uma coisa mista, porque eu tinha tido uma experiência político-partidária. Eu era do PTB. Tinha estado vinculado ao Getulio, com uma carga ideológica muito forte. A minha marca política era indelével. (Rômulo de Almeida)33

Sabemos que, desde a década de 1930, vinha sendo feito um forte investimento na invenção da tradição do “técnico” como detentor de um saber mais especializado e neutro, e, por isso mesmo, capaz de enfrentar os desafios da construção de uma nação desenvolvida por meio da ação intervencionista do Estado. Como costuma acontecer, essa tradição inventada tinha seu contraponto: eram os políticos, identificados como responsáveis pelos “males” que corroíam o país, já que combinavam um saber “bacharelesco” e “generalizante” com uma atuação comprometida com práticas “velhas” e “atrasadas”, incapazes, portanto, de favorecer o ingresso do Brasil no mundo desenvolvido.34

O fato de considerar a política como um obstáculo à implantação de “um projeto nacional homogêneo” não significava, no entanto, que os “técnicos” da Assessoria dela

30 Ignácio Rangel, op, cit., p. 6.

31 Rômulo de Almeida, Depoimento: 1980, op. cit., p. 11. 32 Cleantho Paiva Leite, op, cit., p. 140.

33 Rômulo de Almeida, Depoimento: 1988, op. cit., p. 52.

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estivessem apartados, pois cedo entenderam que deveriam possuir “manejo político” para “ganhar o ministro”. Como diz Rômulo de Almeida, em momento de lúcida conformação, “mesmo como tecnocrata, eu tenho que considerar que era condicionado pela conjuntura política”.35

Mas não era apenas a pressão da conjuntura política que “condicionava” a atuação do “tecnocrata”. A “lealdade ao presidente”, pessoal e ideológica, não apenas foi um dos critérios para a seleção dos assessores – ao contrário do que ocorreu com os ministros, cuja escolha teria decorrido, sobretudo, de critérios político-partidários –, como foi também um vetor importante na orientação que deram a seus projetos. Assim, se a expertise nas respectivas áreas de conhecimento lhes conferia o apanágio de

detentores de um “saber neutro” e de uma “racionalidade técnica”, os assessores deixam claro em seus depoimentos que a “neutralidade” e a “racionalidade”, como aliás costuma ser, estavam atravessadas por outros valores que não se restringiam àqueles tradicionalmente associados ao ethos da tecnoburocracia do Estado.

Só Rômulo de Almeida fez carreira política, mesmo porque, quando foi chamado para organizar a Assessoria, já era filiado ao PTB. Por isso reconhece: “eu era uma coisa mista”. Essa “mistura” o acompanhou pelo resto da vida. Eleito em 1954 para a Câmara dos Deputados pelo PTB da Bahia, acabou preferindo servir ao governador baiano, Antônio Balbino, como secretário da Fazenda. A partir de então, foi responsável, em seu estado, pela criação e organização de instituições de planejamento e de fomento. Convidado pelo presidente Jânio Quadros para integrar sua equipe, como “secretário” de planejamento, declinou do convite com o argumento de que, pelas vinculações que teve com Vargas, sua “marca política era indelével”. Mais do que uma experiência pessoal de Rômulo, essa tensão entre o risco de sacrificar uma carreira tecnocrática que se consolidava, e “a idéia de participar de uma atividade superior, que seria a atividade política”,36 marcou toda essa geração de “boêmios cívicos”, fiel, ao mesmo tempo, ao “saber técnico” e ao presidente Vargas.

Referências

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