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Dependência química em mulheres :um estudo sobre o consumo de medicamentos ansiolíticos no serviço público de saúde de Natal/RN

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

DEPENDÊNCIA QUÍMICA EM MULHERES:

UM ESTUDO SOBRE O CONSUMO DE

MEDICAMENTOS ANSIOLÍTICOS NO

SERVIÇO PÚBLICO DE SAÚDE DE

NATAL/RN

Lúcia de Fátima Carvalho

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Lúcia de Fátima Carvalho

DEPENDÊNCIA QUÍMICA EM MULHERES: UM ESTUDO SOBRE

O CONSUMO DE MEDICAMENTOS ANSIOLÍTICOS NO

SERVIÇO PÚBLICO DE SAÚDE DE NATAL/RN

Dissertação elaborada sob orientação da Profª Drª Magda Diniz Bezerra Dimenstein e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia.

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

A dissertação “Dependência química em mulheres: um estudo sobre o consumo de medicamentos ansiolíticos no serviço público de saúde de Natal/RN”, elaborada por Lúcia de Fátima Carvalho, foi considerada aprovada por todos os membros da Banca Examinadora e aceita pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia, como requisito parcial à obtenção do título de MESTRE EM PSICOLOGIA.

Natal/RN, 13 de dezembro de 2001.

BANCA EXAMINADORA

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O corpo lhe serve para se representar naquilo que pensa ser e também naquilo que não está podendo ser.

Em cada sintoma, em cada queixa, mostra o que se partiu na imagem que lhe conferia um lugar,

uma maneira específica de estar.

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AGRADECIMENTOS

À minha “orientadoramiga” Magda Dimenstein, pela forma competente e paciente que acompanhou o meu percurso, o qual, apesar das angústias e ansiedades, foi permeado por momentos muito prazerosos dos quais jamais me esquecerei.

A Sidney Roos, pela ajuda e apoio dedicados, e pela paciência e compreensão nos momentos mais difíceis.

À minha mãe, pela força e pela torcida que sempre me passou e por compreender os meus momentos de ausência.

À querida amiga Lenyra Rique, pela preciosa e fundamental orientação para a elaboração do anteprojeto.

À professora Rosângela Francischini, pelo olhar atento e criterioso que dedicou ao trabalho.

À amiga Gilmara Siqueira, pela importante ajuda na organização final.

Aos professores e colegas do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRN, pela rica e prazerosa convivência nestes anos de estudo.

À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, por viabilizar o desenvolvimento dos meus estudos pós-graduados.

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SUMÁRIO

Lista de siglas...ix

Resumo...x

Abstract

...xi

Introdução...

12

CAPÍTULO 1: O lugar do medicamento no contexto atual da saúde...

18

1.1- O medicamento como mercadoria de saúde...21

1.2 – O medicamento como bem simbólico: o que ele representa para o consumidor?. 26 1.3 – Uma visão histórica dos ansiolíticos...29

1.3.1. - Indicações dos ansiolíticos na prática médica...33

CAPÍTULO 2: O modelo de atenção no sistema público de saúde e a

questão do uso dos medicamentos ansiolíticos ...42

2.1 –Tipo de atendimento dado à mulher...59

(8)

3.1 – A mulher como maior consumidora de ansiolíticos... 78

CAPÍTULO 4: A mulher, seu sofrimento e o consumo de ansiolíticos... 82

4.1- Considerações gerais sobre a pesquisa... 82

4.2 - Quem são essas mulheres, como vivem e de onde vieram... 86

4.3 – A utilização do serviço de saúde e sua relação com o uso do ansiolítico... 91

4.4 – Percepção da saúde pelas mulheres usuárias de ansiolíticos... 98

4.5 – Motivos e expectativas em relação ao uso do ansiolítico... 103

Considerações finais...

123

Anexo 1...

132

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LISTA DE SIGLAS

BDZ - Benzodiazepínicos

DEF – Dicionário de Especialidades Farmacêuticas DGA - Distúrbio Generalizado de Ansiedade

FMUSP - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

PAISM - Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher SMS - Secretaria Municipal de Saúde

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Carvalho, L. F. (2001). Dependência química em mulheres: Um estudo sobre o consumo de medicamentos ansiolíticos no serviço público de saúde de Natal/RN.

Dissertação de mestrado não publicada. Departamento de Psicologia. UFRN: Natal, RN.

RESUMO

Este trabalho investiga o significado atribuído ao medicamento ansiolítico pelas mulheres que utilizam o serviço público de saúde. Para tanto, toma como base a relação existente entre três eixos principais: a mulher, o medicamento e o próprio serviço público de saúde, no que se refere ao modelo assistencial hegemônico. Considera-se que as relações entre esses elementos contribuem para o uso e para a construção de um significado particular pela mulher usuária. O medicamento é analisado como mercadoria, tendo o seu consumo estimulado ao máximo, e como símbolo de saúde. Nesse sentido reflete uma visão “biologizada”, segundo a qual o medicamento ocupa a posição de solução dos problemas de saúde. Nessa perspectiva, destaca-se o uso dos ansiolíticos na indicação médica e as conseqüências da forma indiscriminada com que vêm sendo utilizados. Enfoca-se também a produção e utilização dos serviços de saúde pela população, ressaltando o tipo de atendimento dado à mulher e como essa assistência contribui para a sua medicalização. A questão de gênero é relacionada ao uso do ansiolítico, esclarecendo que o significado construído por essas mulheres tem uma ligação direta com a maneira com que as relações de gênero estão organizadas na sociedade, mas também se adequa em função da forma como elas se relacionam com o serviço de saúde. Assim, tenta-se compreender a dimensão que essas questões têm sobre a construção da subjetividade das usuárias e de como repercutem sobre o seu processo de saúde/doença. O estudo propõe uma compreensão mais ampla do uso de ansiolíticos, considerando as suas multideterminações, analisando-o não só como uma questão biológica, mas também cultural, o que foge de uma visão parcial do fenômeno. A população estudada foi composta de dezessete mulheres usuárias de ansiolíticos. O instrumento utilizado foi a entrevista semi-estruturada, com a técnica de análise das práticas discursivas.

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Carvalho, L. F. (2001). Chemical dependence in women: A study about consumption of anxiolytic drugs at public health service in Natal/RN. Dissertation for the degree of master in psychology, unpublished. Psychology Department. UFRN: Natal, RN.

ABSTRACT

This work was concerned to investigate the meaning attributed to anxiolytic drugs by women, in public health service. It proposes a joint analysis through a link between three dimensions: the woman, the drug, and public health service itself, in an hegemonic medical assistance model. It is observed that the relation between these elements has a great influence over the use and construction of a particular meaning, by the user. The medication is analysed as a consumption merchandise and as an health symbol. In this way, it reflects a “biologized” vision, which believes the drug as a solution for all health problems. It tries to analyse the generalized medical prescription for anxiolythics and it’s consequences. It focalizes also the production and utilization of public health services by patients, mainly women. The question related to the use of anxiolytics and the meaning construted by women is analysed focusing the way that relations of masculine/feminine gender are organized in our society. At this point of view, it tries to understand the dimension that these questions have in subjectivity production, and how it acts in the health/disease process. Finally, this work tries to understand, in a broad sense, the use of anxiolytics looking at the problem not only as a biological question, but also as a cultural matter. The research was done over seventeen women, all of them anxiolytic users. It was used, as research instrument, semi-structured interview associated with methodological analysis of user’s speeches.

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INTRODUÇÃO

O ponto de partida deste estudo é o interesse em analisar um fenômeno que vem sendo observado no cotidiano dos serviços públicos de saúde: o consumo excessivo de medicamentos psicotrópicos do tipo ansiolítico por mulheres na rede básica de saúde e o abuso de prescrição desse tipo de medicamento pelos profissionais. O desenvolvimento deste trabalho é uma seqüência de outro estudo, iniciado no Curso de Especialização em Psicologia no ano de 1998 na UFRN, do qual resultou a monografia intitulada “O uso indiscriminado de medicamentos psicotrópicos. Pretendemos, nessa seqüência, aprofundar os conhecimentos referentes à temática. Com esse propósito, foi realizada a presente pesquisa em um centro de saúde de Natal com o objetivo de investigar qual o significado atribuído ao medicamento ansiolítico entre mulheres que utilizam o serviço público de saúde em um bairro de periferia de Natal/RN.

A escolha por este tema se deu em decorrência de nossa experiência profissional em uma unidade de saúde do município de Natal, marcada pela percepção de um fato recorrente: o encaminhamento para atendimento psicológico, realizado pelo médico clínico geral, de mulheres que apresentavam um quadro de dependência de medicamentos psicotrópicos do tipo ansiolítico.

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pública, fazendo uma outra leitura sobre os aspectos relacionados a esse comportamento apresentado.1

Para um entendimento mais amplo do problema aqui abordado, tomamos como base a relação existente entre três eixos principais: o lugar do medicamento nas práticas de saúde, o modelo de atenção à saúde e as relações de gênero presentes na sociedade. Nesse sentido, examinamos atentamente essa relação, considerando que esses eixos se intercruzam e contribuem para a construção de um determinado significado do uso do ansiolítico no âmbito da saúde pública, ou seja, consideramos que as relações de gênero, o medicamento utilizado como principal recurso para tratar a saúde e o serviço de saúde, através de suas práticas baseadas no modelo assistencial hegemônico, favorecem o uso do ansiolítico e a construção de um significado particular atribuído pela mulher usuária a ele.

Com efeito, a literatura que aborda a relação entre gênero e dependência química aponta a mulher como a maior consumidora do medicamento em questão, fato que é reforçado pelas práticas ancoradas no paradigma clínico. Nessa direção, procuramos analisar nesta pesquisa, o medicamento ansiolítico dentro do contexto socioeconômico -cultural, no qual aparece tanto como uma mercadoria de consumo quanto como símbolo de saúde.

É sabido que no Brasil em pleno século XXI ainda não se conseguiu proporcionar uma qualidade de vida adequada para a maioria da população, que envolva um bem-estar físico, psíquico e social.

1 Pelo levantamento bibliográfico realizado, percebemos que a maior parte dos estudos que discutem essa

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Pelo contrário, assiste-se um agravamento das condições de vida, o que traz resultados muitas vezes terríveis, principalmente para as pessoas pertencentes as camadas populares. Essas questões evocam um debate constante sobre a relação entre saúde e sociedade, resultando em impasses decorrentes dos avanços técnicos e científicos da Medicina.

Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que ocorre um acelerado processo de especialização e tecnificação do saber médico, permanecem ou agravam-se velhos problemas crônicos de saúde, ou surgem novos, decorrentes do modo de vida atual que tem como pano de fundo um contexto socioeconômico bastante complexo. Por isso, ao analisarmos o uso excessivo de ansiolíticos por mulheres que utilizam o serviço público de saúde, devemos contextualizar essa problemática de maneira abrangente, uma vez que ela apresenta relações com os aspectos econômicos, sociais e culturais.

O referencial teórico utilizado neste trabalho considera a questão da medicalização da saúde a partir de uma análise mais geral, isto é, a partir de uma visão crítica sobre a ênfase mecanicista do modelo médico assistencial e da lógica capitalista do mercado, na qual todos os bens e serviços passaram a ser considerados mercadorias que devem gerar lucro.

Autores como Barros, M. B. (1983), Barros, J. A. C. (1995) e Lefèvre (1983; 1987; 1991) apontam o importante lugar ocupado pelo medicamento, bens e serviços de saúde no jogo de interesses do poder econômico dentro do complexo médico-industrial. Barros, J. A. C. (1995, p. 25) afirma que:

(15)

Este autor questiona tanto os fundamentos do modelo médico-mecanicista, que enfatizam o “biológico”, excluem os determinantes sociais e não conseguem dar respostas efetivas para o problema da saúde na sociedade, quanto os custos crescentes envolvidos no tipo de medicina associado a esse modelo, o qual é incongruente com a proposta de democratização dos serviços de saúde.

Lefèvre (1991) enfatiza a saúde como mercadoria, a qual se transformou em um produto à venda no mercado, passando, com isso, a ser um bem de consumo como outro qualquer. Ele também aponta o medicamento como mercadoria simbólica na medida em que, ao ser consumido, simboliza a saúde. Segundo este autor, “no momento simbólico do consumo de medicamento, o consumidor está, consciente ou inconscientemente, buscando uma materialização imediata equivalente à ‘saúde imediata’” (Lefèvre, 1991, p. 57). A saúde, no seu entender, é reduzida a um estado puramente orgânico, como realidade química, e o medicamento é uma coisa química como a saúde (reduzida à sua expressão química). Assim, o mesmo é usado como signo de saúde.

Paralelamente a esses construtos, preocupa-nos também discutir nosso objeto de estudo a partir do enfoque das relações de gênero na sociedade e o funcionamento dessas relações como determinantes no uso e abuso de medicamentos ansiolíticos pelas mulheres.

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medicamentos ansiolíticos, procurando analisar a literatura que discute o assunto, destacando o surgimento desse tipo de medicamento, suas indicações na prática médica atual e as conseqüências do seu uso indiscriminado, entre as quais está a grave questão da dependência. Nosso objetivo é esclarecer os problemas que permeiam o uso indiscriminado desse recurso terapêutico.

No segundo capítulo, analisamos o modelo de atenção à saúde, considerando a maneira como são produzidos e utilizados os serviços de saúde pela população, a partir das concepções que regem o modelo de assistência no serviço público de saúde. Também é enfocado, de forma crítica, o tipo de atendimento dado à mulher, no qual, a nosso ver, não estão sendo contempladas as suas reais necessidades.

No terceiro, demonstramos o estreito vínculo existente entre a questão de gênero e o uso do medicamento em questão, no sentido de tornar claro que a compreensão do significado construído por essas mulheres tem uma ligação direta com a maneira com que as relações de gênero estão organizadas na sociedade. Dessa forma, entendemos que o significado atribuído ao ansiolítico é construído a partir das relações e posições assumidas pela mulher na sociedade, em função de normas, valores e símbolos presentes no contexto social e, também, em função da forma como se relaciona com o serviço de saúde.

(17)

O estudo dessa questão possibilitará, entre outras coisas, uma compreensão mais ampla do problema, uma vez que o uso do medicamento ansiolítico deve ser analisado não só como uma questão biológica, mas também cultural. Assim, pode-se entender as multideterminações do consumo desse tipo medicamento, fugindo de uma visão parcial do fenômeno. Além disso, será proporcionada a abertura de uma discussão dentro das equipes de saúde, o que poderá subsidiar as políticas públicas relacionadas ao enfrentamento do problema. Por fim, a partir de mudanças no atendimento às mulheres usuárias, poderão ser criadas oportunidades para que elas construam e se apropriem de um novo significado que essa experiência representa nas suas vidas e possam se constituir atores sociais com capacidade de mudança.

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CAPÍTULO 1:

O LUGAR DO MEDICAMENTO NO CONTEXTO ATUAL DA

SAÚDE

Consideramos necessário mostrar, inicialmente, como se dá o uso de medicamentos no contexto da saúde, enfocando o fenômeno da medicalização e considerando os interesses econômicos que estão por trás desse fenômeno. O medicamento será analisado como uma mercadoria de saúde, cujo consumo é estimulado ao máximo devido ao objetivo de lucro proposto pela indústria farmacêutica, mas também como um símbolo de saúde, o que reflete uma visão “biologizada”, para a qual o medicamento ocupa a posição de solução dos problemas orgânicos, na medida em que é visto como contendo em si um estado orgânico, pedaços de vida orgânica. Ainda neste capítulo, mostramos os problemas que permeiam o uso dos medicamentos ansiolíticos, a partir de uma exposição histórica, considerando seu uso na indicação médica e as conseqüências da forma indiscriminada com que vêm sendo utilizados, fato que se tornou comum na atualidade.

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numa prescrição, decorrente de uma visão limitada da saúde, para a qual o medicamento tornou-se a principal ferramenta. De fato, a poderosa indústria farmacêutica, através de grandes investimentos, transforma seus produtos em algo essencial para a manutenção e recuperação da saúde. O resultado é a atribuição de funções e poderes aos medicamentos que vão além da sua ação propriamente dita.

Acerca disso, Barros, J. A. C. (1995) expõe uma definição de medicalização que não se restringe ao consumo de medicamentos, mas também “à elevada dependência em relação à oferta de serviços ou bens de natureza médico-assistencial e seu consumo intensivo” (p.25). Dessa maneira, junto ao consumo desses bens de saúde há uma crença de que, se existe um problema, ele deve ser abolido da forma mais rápida e o medicamento ocupa o lugar da concretização dessa possibilidade, passando a estar

vinculado ao bem-estar, à saúde ou mesmo à felicidade. No que se refere à assistência à saúde das mulheres, é possível afirmar que a

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Barros, J. A. C. (1995) afirma ainda que o fenômeno da medicalização foi reforçado duplamente: pelo raciocínio mecanicista e pela lógica capitalista de mercado. Como conseqüência dessa lógica, todos os bens e serviços de saúde passaram a ser considerados mercadorias que devem gerar lucro. Segundo ele, uma das conseqüências mais significativas do incremento da medicalização é a intensificação da dependência:

As pessoas pretendem, cada vez com maior freqüência, resolver seus problemas – sejam ou não susceptíveis de serem classificados como “problemas médicos” – recorrendo aos serviços oferecidos pelo sistema de saúde. Isto não somente levou a uma hipervalorização do papel da Medicina e de seu instrumental tecnológico, mas provocou, igualmente, progressivo aumento da perda da capacidade das pessoas na conquista de alternativas para a resolução de problemas amiúde vinculados a fatores de ordem extramédica.

Birman (2001), na análise sobre a psicopatologia na pós-modernidade, afirma que em relação ao uso de medicamentos não se pretende mais a cura, no sentido clássico da medicina clínica, mas apenas a regulação do mal-estar. Nesse sentido, segundo ele, a forma de intervenção é centrada nos acontecimentos, os quais revelam os disfuncionamentos do psiquismo, levando a idéia de história de uma subjetividade, articulada com o eixo do tempo, ao silêncio e ao esquecimento. De acordo com essa perspectiva, ocorre uma leitura do mal-estar no sentido funcional e não etiológico, o que faz com que a história do doente e do tempo da doença seja transformada em questões secundárias diante desse investimento sobre o disfuncionamento do corpo.

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outras alternativas no enfrentamento das enfermidades, principalmente as relacionadas aos aspectos psicológicos e sociais da vida do indivíduo.

Desse quadro adverso, percebemos que, enquanto o medicamento for visto e utilizado como um produto de consumo (ou mercadoria), em vez de ser considerado um instrumento a serviço da saúde, sempre estarão presentes condições propícias para a existência de produtos inadequados às reais necessidades sanitárias.

Corroborando essa percepção, Barros, J. A. C. (1995) alerta para as estratégias promocionais da lógica do mercado, as quais desencadearam a presença de numerosas especialidades farmacêuticas idênticas, ou seja, medicamentos com a mesma substância ativa, aparecendo como novidades farmacológicas, mas que, na realidade, não representam nenhum avanço terapêutico efetivo. Assim, o fato de que a oferta seja dirigida pela lógica do mercado gerou uma demanda muito superior às necessidades. A visão desse autor é de que:

Este incremento do consumo, além dos motivos inerentes ao processo de medicalização, também se deve à utilização do medicamento como um substituto para a inexistência ou insuficiência dos programas de assistência sanitária, que vêm somar-se às deficiências que podem imputar-se ao próprio médico. (Barros, 1995, p.57).

Nesse sentido, o “culto” ao consumo abusivo de medicamentos reflete problemas relativos à capacitação dos profissionais de saúde, no sentido de não terem uma visão abrangente do processo saúde-doença e da própria prática profissional, assim como é resultado da falta de uma política pública de saúde comprometida com a humanização e a qualidade das práticas assistenciais.

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Como vimos, a saúde e a doença em nosso país vêm, cada vez mais, se constituindo em objeto de grande exploração mercantil, pois, como sabemos, a filosofia e a prática do modelo político-econômico-social pregnante em nossa realidade tem como estratégia básica de sua dinâmica o “consumismo”. A área de saúde é um alvo de ambições de lucro, na qual o medicamento desempenha um papel altamente relevante. Nela, há uma imposição ao consumo através de ações de saúde, ou mais restritamente na demanda de “atos médicos”.

Assim, o medicamento aparece como uma mercadoria, cujo consumo deve ser estimulado ao máximo, pois o que interessa aos setores de produção e comercialização de medicamentos é a ocorrência de um máximo de doenças, acompanhadas de um máximo de tratamento, em outras palavras, de “medicalização”. O medicamento aparece, pois, como uma mercadoria especial, respaldada pelo conhecimento científico, o qual é tomado como verdade absoluta. Em uma sociedade de consumo como a nossa, qualquer sofrimento, dor ou outro estado que fuja daquilo que é instituído como padrão de saúde torna-se insuportável para o indivíduo e o faz procurar a solução rápida (e mágica), que é o medicamento, o qual se encontra facilmente disponível.

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medida em que é o dispensador do medicamento e dono do saber. Além disso, também deve ser lembrada a posição desse profissional no esquema econômico, no qual a publicidade dos medicamentos é dirigida a ele, sendo, dessa forma, o intermediário das vendas entre a indústria farmacêutica e o consumidor (Carvalho, 1998).

À medida que o medicamento assume essa conotação de mercadoria, assume também, de acordo com Barros, M. B. (1983), um duplo papel ao satisfazer, ao mesmo tempo, os interesses do capital e do modelo de saúde hegemônico da categoria médica. A partir da idéia generalizada de solução, ele satisfaz, através da prescrição, as expectativas tanto do paciente como do profissional, momento este que se tornou a parte mais importante da consulta. Com efeito, o lugar de destaque dado ao medicamento permite ao médico uma racionalização do tempo gasto na consulta e/ou das horas diárias de trabalho; além disso, a prescrição adequada “dá prestígio e realça o seu poder sobre o paciente, para quem, igualmente, nada mais importante para caracterizar uma boa consulta que a prescrição, preferencialmente, da mais recente novidade farmacológica” (Barros, M. B, 1983, p. 378).

Além desses fatores, o profissional médico, através do seu discurso e das suas práticas, acaba muitas vezes introjetando a idéia reducionista de que o fenômeno do mal -estar é da ordem da psicopatologia, precisando apenas ser medicado para desaparecer.

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cada vez mais marcante nos cursos de formação médica. Assim, os medicamentos são apresentados aos profissionais como “cura em si mesmos”, o que se relaciona perfeitamente com a idéia hegemônica da sociedade de consumo: ter saúde é consumir saúde.

Além disso, sabemos que, na maioria das vezes, muitos profissionais assumem uma postura autoritária de não informar ao paciente os motivos da sua escolha por um ou outro procedimento, colocando-o numa posição de submissão em relação à sua autoridade. Em conseqüência de fatores como esses, o consumo dos BZD

(Benzodiazepínicos)2 assumiu uma proporção preocupante. Pesquisas como a de Soares, C. N., Soares, M. B. M., Asbahr, F. R., & Bernik, M. A. (1991), feita no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) com pacientes psiquiátricos e não psiquiátricos, e a de Rozemberg (1994), realizada na região serrana do Espírito Santo com lavradores, mostram um alto índice de uso desses medicamentos frente a transtornos emocionais: 88,4% e 88% respectivamente. No trabalho de Puebla, M. A. C., Morris, M. R., Peñalver, P. C., & Gonzalez, C. P. (1985), realizado no Hospital Docente “Dr Salvador Allende”, em Cuba, 70% dos 100 pacientes entrevistados usaram psicofármacos, entre os quais, 31% sem prescrição.

Barros, M. B. (1983) aponta a óbvia relação do médico com a indústria farmacêutica e a importância do seu papel na cadeia de eventos: consumo de medicamentos-medicalização-lucros. Um elemento importante para a concretização dessa cadeia é o papel exercido pelo “representante de laboratório”, que contribui de

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forma bastante eficaz na educação médica, ou seja, ele constitui uma das principais fontes de informação para o receituário médico.

Além dessa fonte, os jornais e revistas médicas formam outro veículo de propaganda intensamente usado pelos laboratórios farmacêuticos junto à classe médica ou pelo meio de comunicação de massa.

Todavia, não podemos deixar de mencionar o papel exercido pela farmácia, a qual também constitui um importante elo no esquema de comercialização e consumo de remédios. Um dado que merece destaque é o fato de inúmeras pessoas utilizarem o balconista como substituto do médico, quando não trazem previamente os nomes dos produtos que desejam adquirir. Para facilitar as vendas, alguns mecanismos são utilizados, tais como: as bonificações, a dilatação dos prazos de pagamento, entre outros.

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esses bens, temos o medicamento industrializado predominando nas práticas terapêuticas atuais.

Em função dos estudos realizados pelos autores que citamos, fica claro que as leis que regem a cadeia da “indústria da saúde” se opõem a uma proposta que tenha em vista a minimização das doenças, ou tome a saúde como uma preocupação maior. Na verdade, o que ocorre é que os medicamentos estão servindo de paliativos para os problemas e para o sofrimento devido à sua relativa eficácia, o que nos impede de ter uma visão mais abrangente do processo saúde/doença. A maioria dos médicos, por sua vez, não se posiciona enquanto agentes de mudanças e de questionamento dos problemas de saúde, mas como representantes de um mercado farmacológico a cada dia mais promissor.

1.2– O MEDICAMENTO COMO BEM SIMBÓLICO: O QUE ELE

REPRESENTA PARA O CONSUMIDOR?

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verdadeiras sedes da saúde/doença, privilegiando como terreno de jogo o universo concreto e seguro do organismo e da biologia” (Lefèvre, 1983, p. 501).

A noção (reificada) de saúde, que geralmente está presente na ótica desse autor, é de um estado orgânico, e o medicamento contém em si esse estado orgânico. Segundo Lefèvre (1983, p.60), “os medicamentos são imitações da vida enquanto fato orgânico, pedaços de vida orgânica (sono, tranqüilidade, potência sexual, etc.) comprimidos num comprimido, ou numa gota, ou num xarope”. Concebida dessa forma, a saúde está à venda no mercado como uma mercadoria qualquer, por isso ela pode ser entendida em nossa sociedade como uma constelação de mercadorias produtoras de saúde. Essas mercadorias incorporam em si a saúde, passando a representá-la, a simbolizá-la.

Como símbolo, o medicamento representa a saúde, materializada no comprimido ou na gota consumidos, e a eficácia, haja vista ser capaz de cumprir o que promete, ou seja, diminuir ou eliminar os sintomas apresentados. Assim, faz a “economia”, poupa o trabalho para que se obtenha a saúde. Por outro lado, procura apagar a doença como indicador ou sintoma de problemas, tanto em nível pessoal como social. (Lefèvre, 1987).

Esse autor enfatiza a grande responsabilidade dos profissionais de saúde na tentativa de reversão desse quadro, não permitindo que os medicamentos ocupem o lugar de substitutos ou símbolos de saúde, “cuja função consistiria em inibir a intervenção das causas sociais e comportamentais das doenças” (Lefèvre, 1983, p. 502).

(28)

o mais imediatamente possível. Mudanças relacionadas às causas comportamentais implicam também trabalhos que demandam tempo e que levem a mudanças de hábitos ou de comportamentos, geralmente associados a processos terapêuticos longos e custosos. Tentativas para a resolução das causas sociais, entre as quais estão o desemprego, a má distribuição de renda, entre outras, que podem ao menos amenizar os problemas relacionados à saúde não interessam ao atual sistema de saúde, pois muitas delas iriam contra os interesses dos sistemas político e socioeconômico vigentes na nossa sociedade.

Outro estudo, realizado por Franco et al (1986/1987), sobre o consumo de medicamentos em um grupo populacional da área urbana de Salvador investigou a relação do consumo e da prescrição médica, como também o lugar que o medicamento passou a ocupar na vida de muitos indivíduos. Os resultados dessa pesquisa revelaram a existência de uma contínua aquisição e armazenamento de fármacos pela população em geral, a qual, segundo os autores, é resultante da precariedade do sistema de assistência à saúde, como também do modelo político-econômico da nossa sociedade, que tem como objetivo básico o consumismo.

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doença, aparece também como tendo uma importante função simbólica, na medida em que é visto como um meio quase mágico de obtenção de saúde. Em outras palavras, remédio é o “mediador entre o desejo da saúde e a sua obtenção, privilegiando a esfera concreta do organismo e da biologia, em detrimento dos fatores de natureza social e comportamental.” (Franco et al, 1986/1987, p.119).

Essa conotação de objeto mágico atribuída ao medicamento se dá na medida em que ele age e exerce domínio sobre algum desconforto, levando o usuário e prescritor à ilusão de controle sobre o corpo e sobre a vida. Assim, a sensação de segurança se manifesta, na medida em que podemos ter sempre à mão algo que nos traga de volta o nível de equilíbrio, sempre que nos sentimos ameaçados de perdê-lo.

Tendo em vista toda a problemática que envolve o uso de ansiolíticos em nosso meio, em que o comportamento de adição passou a ser considerado um risco para a saúde devido ao consumo exacerbado, mostraremos, nesse momento, uma visão geral a respeito desses medicamentos, no sentido de compreender o que são, como surgiram e a forma como são utilizados.

1.3 – UMA VISÃO HISTÓRICA DOS ANSIOLÍTICOS

(30)

muitas vezes em complicações pessoais e sociais graves. Sendo assim, faz-se necessária a análise de seus fatores determinantes.

A seguir, mostraremos aspectos mais gerais a respeito dos medicamentos ansiolíticos como forma de entendermos melhor que fatores contribuem para a utilização indiscriminada desse recurso terapêutico, que hoje, de acordo com diversos autores, os quais serão mencionados a seguir, constitui um risco para a população. A necessidade de investigar melhor tal problemática decorre da possibilidade de que uma significativa parcela da sociedade está sob influência desse tipo de medicamento, atualmente considerado um dos principais meios de enfrentamento dos problemas emocionais.

Os medicamentos ansiolíticos são os chamados calmantes, tranqüilizantes e sedativos, que agem sobre o sistema nervoso central, exercendo uma ação seletiva sobre a ansiedade. Eles são os mais utilizados entre as substâncias psicoativas, vindo depois do álcool e do tabaco. O uso dessas substâncias, na atualidade, ocorre geralmente de forma indiscriminada, sendo indicados e amplamente usados no combate à insônia.

Numa visão abrangente, Barros, M. B. (1983) afirma que esses medicamentos “fazem parte do arsenal terapêutico dirigido à “medicalização do mal-estar” e ao controle da tensão gerada, não raras vezes, nas relações sociais de produção e no processo de trabalho” (p. 94). Em outras palavras, as pessoas recorrem a calmantes, na esperança de escapar das pressões sociais, familiares ou do trabalho ou torná-las, ao menos, toleráveis.

(31)

diversas culturas. No entanto, o uso dessas drogas como agentes ansiolíticos resulta em muitos problemas devido à toxicidade a curto e a longo prazos, associada ao potencial para indução de dependência3 (Rocha, 1992). De acordo com Nicastri (1999), no grupo das substâncias depressoras do Sistema Nervoso Central (SNS), encontram-se aquelas com propriedades físicas e químicas que diminuem a atividade geral do cérebro, o que traz, como conseqüência, uma tendência à diminuição da atividade motora, da reação à dor e ansiedade. Estão situadas nesse grupo o álcool, as colas, os solventes, os aerozóis, os calmantes, os sedativos (barbitúricos), os tranqüilizantes, os ansiolíticos (benzodiazepínicos, opiácios e analgésicos narcóticos).

A introdução dos benzodiazepínicos (BZD) no mercado ocorreu no início da década de sessenta e coincidiu com o aumento das drogas psicoativas como um todo (Soares et al, 1991). Substituíram, nessa década, praticamente todas as drogas utilizadas no tratamento da ansiedade – barbitúricos, meprobamato, hidrato de cloral e outros – que provocavam sérios efeitos colaterais.

Mostraram-se muitos superiores a todos esses agentes ansiolíticos predecessores, vindo a substituí-los com amplas vantagens, pois se mostraram menos tóxicos, com menor potencialidade de provocar acidentes fatais e ainda com menor tendência para produzir tolerância farmacológica4 (Karniol et al, 1986). Foi exatamente essa segurança que criou uma certa irresponsabilidade generalizada no uso dos BDZ, tanto da parte dos médicos, como dos pacientes e dos laboratórios, a partir da década de setenta.

3 A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a dependência de drogas, em substituição ao termo

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Na época em que surgiram, segundo Rozemberg (1994), os BDZ eram anunciados nas revistas médicas como auxiliares para o tratamento, o qual era predominantemente centrado na relação médico-paciente. Eram indicados para controlar os sintomas mais difíceis de manejar, livrando o paciente das crises e preparando-o para o tratamento, ou seja, era uma forma de fazê-lo enfrentar tal crise e de buscar soluções para o problema de forma mais tranqüila. Também era enfatizado o uso da psicoterapia, a qual estava centrada em um trabalho mais contextualizado, integrando a história de vida do indivíduo. No entanto, de acordo esse mesmo autor, com o passar do tempo, houve uma gradativa aceitação de tais medicamentos, que, junto com as propagandas, induziram o uso de psicotrópicos para um número cada vez mais abrangente de situações existenciais.

Apesar do exposto, mister se faz ressaltar que, indubitavelmente, houve diversos benefícios para o tratamento de certas patologias a partir da introdução dos BDZ, todavia, nossa preocupação ancora-se no uso indiscriminado, e cada vez maior, desses medicamentos em nosso meio, bem como as conseqüências que acarretam.

Tais drogas, que antes apareciam como coadjuvantes no tratamento, hoje assumem o papel central, com o status de cura em si mesmas. Essa cura, porém, representa apenas a eliminação de sintomas que afligem seus usuários. Atualmente, há inclusive uma grande competição de vários tipos de marcas, as quais anunciam suas vantagens cientificamente provadas e suas ações sobre os sintomas.

4 Esse fenômeno se caracteriza pela utilização de doses cada vez maiores do medicamento para obtenção

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No entendimento de Amaral (1986), o uso dos BDZ estendeu-se de tal forma que ultrapassou os limites da epidemiologia médica para ser considerado um fenômeno cultural de massas. Esse autor aponta três fatores como determinantes para este uso:

1) “A ansiedade é um fenômeno universal e habitualmente desagradável; 2) os BDZ são ansiolíticos muito efetivos;

3) os BDZ são substâncias muito seguras e que praticamente não acarretam diretamente acidentes fatais no seu uso clínico” (Amaral, 1986, p. 353).

O consumo exagerado de BZD tem causado inquietações em nível mundial. De acordo com Nappo e Carlini (1993), a Organização Mundial de Saúde tem promovido reuniões em vários países com o objetivo de discutir medidas controladoras no sentido de restringir o uso indiscriminado dos BZD. Infelizmente, segundo eles, contribuições de países do Terceiro Mundo com pesquisas sobre o consumo desses medicamentos têm sido muito escassas, o que resulta na falta de controle eficiente sobre tais drogas.

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1.3.1 – INDICAÇÕES DOS ANSIOLÍTICOS NA PRÁTICA MÉDICA

Há uma concordância geral de que os BDZ devem ser usados no tratamento da ansiedade em curto prazo, não devendo exceder de dois a quatro meses, exceto em casos muito especiais. No entanto, o que se vê na prática, é a continuidade de um uso que vai além de uma finalidade específica e com um tempo indeterminado, em que o medicamento passa a ocupar um lugar fundamental e imprescindível na vida de muitos indivíduos. Isso ocorre porque o medicamento, ao eliminar os sintomas da ansiedade, passa a ser visto como a maneira mais fácil e rápida de enfrentar os problemas do cotidiano.

Rocha (1992) faz uma análise crítica do emprego dos ansiolíticos no tratamento do Distúrbio Generalizado de Ansiedade (DGA) em termos de riscos e benefícios. Ele ressalta alguns pontos que consideramos importantes no que concerne à eficácia dos benzodiazepínicos no tratamento desse distúrbio e que, a nosso ver, também podem ocorrer em casos mais comuns da prática clínica:

1) Há o fato dessas substâncias terem uma ação eminentemente sintomática. 2) Há o problema do emprego desenfreado dessas substâncias como substituto de

uma boa relação médico-paciente, de um diagnóstico adequado e, conseqüentemente, de uma intervenção planejada, adequada e conveniente àquele determinado indivíduo.

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4) Não há evidências de que um benzodiazepínico seja mais eficaz que outro no tratamento de quadros ansiosos e mesmo na terapêutica da insônia.

5) Há a questão do desenvolvimento de tolerância, isto é, da perda gradual de eficácia dos benzodiazepínicos devido ao consumo prolongado (Rocha, 1992, p. 164).

Esse autor nos mostra aspectos importantes que geralmente não são lembrados ou evidenciados na prática médica cotidiana, o que leva ao emprego generalizado, muitas vezes desconsiderando a história do indivíduo e o contexto em que está inserido, com vistas à padronização de uma prática que, na maioria das vezes, está longe de ser adequada no que se refere ao enfrentamento dos problemas trazidos pelo paciente.

Outro estudo importante, realizado por Pepe, V. L. E., Rosenfeld, S, & Baesso, M. G. (1991) aponta também os problemas que perpassam o uso crescente dos BDZ. Esse trabalho tem como fonte de pesquisa o Dicionário de Especialidades Farmacêuticas (DEF), do qual faz uma análise crítica acerca de suas informações. Tal dicionário é uma publicação anual, elaborada com informações fornecidas pela indústria farmacêutica sobre os medicamentos por ela produzidos. Nessa análise, os autores mostram que grande parte dos medicamentos que contêm derivados benzodiazepínicos não são acompanhados, no bulário do DEF, de alguma referência quanto a importantes efeitos colaterais ou contra-indicações.

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A outra face desse mesmo problema, segundo os autores, consiste no fato do DEF exagerar as indicações terapêuticas das substâncias ao mesmo tempo em que suaviza os efeitos colaterais.

Podemos perceber que, ao ocultar ou minimizar as reações indesejáveis e, simultaneamente, valorizar as indicações terapêuticas, o medicamento passa a ser concebido de uma maneira distorcida, desenvolvendo, assim, um terreno propício para um uso desenfreado. Sob essa perspectiva, acreditamos que o DEF contribui para uma postura distorcida frente à questão do uso de medicamentos através da propaganda e do fornecimento de informações aos profissionais e à população em geral nem sempre fidedignas.

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Na concepção de Haajer (1982, apud Barros J. A. C. 1995), uma prescrição racionalacontecerá sempre quando o tratamento farmacológico for:

1) Adequado para os sintomas e ou, enfermidade apresentados pelo paciente e para os quais não se dispõe de uma melhor alternativa terapêutica;

2) eficaz para o tratamento dos sintomas e ou enfermidade;

3) seguro, isto é, apresentando o mínimo potencial de efeitos indesejáveis;

4) se utilize na dose e durante o tempo convenientes para uma indicação específica (p. 91).

Infelizmente, não é essa a forma em que são utilizados os ansiolíticos. Na verdade, o que há é uma prática irracional por parte do médico prescritor, a qual resulta em conseqüências graves para as pessoas que usam tais medicamentos, devido a seus efeitos indesejáveis. Da parte de quem utiliza, existe uma expectativa de viver melhor e a crença de que esses medicamentos poderão trazer-lhe a cura de um “mal”, desconsiderando que sua raiz está implantada numa rede complexa de fatores que estão longe de serem afastados, ou mesmo esquecidos, através do efeito de algum medicamento. Por isso, a concepção da prescrição na prática atual se apresenta bastante diferenciada do que aquela dita como “racional”. Dupuy & Karsenty (1980, apud Barros, J. A. C. 1995) ainda ressalta que a prescrição passou a constituir a essência da consulta médica:

1) O simples fato de existir uma prescrição leva o paciente a sentir-se satisfeito, crendo que seu problema mereceu a atenção que ele julgava pertinente;

2) com ela, o médico pensa haver realizado algo em favor do paciente mesmo que não tenha chegado a um diagnóstico (p.57).

Na pesquisa realizada por Oliveira (2000), a respeito do uso do medicamento Diazepam5 por mulheres na cidade de Sobral/CE, também foram analisados os discursos dos médicos prescritores, os quais indicaram que existe uma tendência nos serviços

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públicos a se prescrever ansiolíticos para sintomas apresentados no momento da consulta, sem haver uma investigação das conseqüências da prescrição. Aliado a isso está o fato de o médico dedicar cada vez menos tempo à conversa e ao exame clínico, privilegiando a prescrição e os exames de laboratório. Dessa forma, podemos perceber que a prescrição desses medicamentos tornou-se algo corriqueiro e natural, numa prática mecanizada e sem questionamento de ambas as partes (prescritor e usuário), o que certamente prejudica gravemente toda a cadeia terapêutica.

O conhecimento adquirido ao longo do tempo a respeito das propriedades farmacológicas dessas substâncias mostrou que elas não são tão inócuas, do ponto de vista de reações adversas e de dependência, como se pensava. A literatura é unânime em afirmar que o uso de BDZ inadequado é capaz de trazer mais malefícios do que benefícios à saúde, por conter substâncias que apresentam também muitos efeitos indesejáveis.

Hetem (1994) traz uma definição de iatrogenia,que nos parece importante citar, no sentido de compreendermos melhor em que o uso de BDZ resulta. Segundo ele, a definição mais completa para iatrogenia é: “alteração patológica provocada no paciente por procedimento médico de qualquer tipo, seja diagnóstico ou terapêutico” (p. 11). Os BDZ podem ser considerados medicamentos iatrogênicos quando utilizados inadequadamente, pois causam diversos efeitos colaterais, mesmo independente de sua intensidade ou gravidade.

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dificuldade de memória e comprometimento intelectual. Isso faz com que o desempenho de certas tarefas que exigem maior habilidade, vigilância e reflexos rápidos seja comprometido. Rocha esclarece que uma única dose de 10 mg de Diazepam causa significativas repercussões na capacidade de dirigir, por várias horas, e que o risco de envolvimento em um acidente sério é aumentado cinco vezes nos motoristas em uso de BDZ. Outros efeitos mais raros incluem explosões de agressividade, excitação, confusão e desmascaramento de quadros depressivos com tendência suicida.

Hetem (1994) afirma que, nos dias de hoje, a principal classe de medicamentos com potencial para ocasionar dependência6 é a dos BDZ. O estudo realizado por Karniol et al (1986) evidencia que o uso dos BDZ deve ser cercado de certos cuidados pela possibilidade de ocasionarem certo grau de dependência, quando utilizados por períodos prolongados (mais de seis meses), mesmo em doses terapêuticas (baixas doses do medicamento).

Através de levantamentos realizados com pacientes de diversos serviços de saúde do Estado de São Paulo, entre os anos de 1981 e 1985, foi constatado por Karniol et al (1986) que:

1) Em nosso meio é bastante freqüente a prescrição dessas drogas, quer por psiquiatras, quer por não psiquiatras;

2) regras básicas, como o não-uso por tempo prolongado são amiúde desconsideradas;

3) aparentemente um grande contingente dos pacientes em um ambulatório de saúde mental que recebe unicamente benzodiazepínicos como tratamento estão dependentes dessas substâncias;

4) entre pacientes farmacodependentes internados numa clínica especializada, 20% utilizaram benzodiazepinas entre outras drogas;

5) a possibilidade de dependência a benzodiazepinas não é convenientemente abordada nos cursos médicos (p. 30).

6 Esse fenômeno é classicamente definido como o uso continuado da medicação, mesmo após a resolução

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Com efeito, podemos perceber que a dependência a esses medicamentos, resultante do uso indiscriminado, está presente em vários estudos; entretanto, na prática médica diária, a devida consideração a essa questão não tem sido observada. Em função disso, tais autores recomendam uma campanha educativa entre os médicos, inclusive psiquiatras, que possibilite um uso mais racional dos BDZ.

Sougey, E. B., Cunha, M. C. V., Barreto, J. A. V., & Acioli, M. D. (1987) afirmam que a dependência aos BDZ está associada a dois principais fatores: longa duração e altas doses do produto 7. De acordo com esses autores, o uso prolongado de

BDZ pode desenvolver um comportamento de constante procura do efeito ansiolítico, pois os usuários freqüentemente se recusam a suspender o produto por acreditar na sua permanente eficácia. Estabelecem-se, desse modo, o abuso e a dependência psicológica, os quais representam um problema de difícil abordagem prática. Essa visão mostra-se mais realista.

No entanto, a nosso ver, ainda é limitada, pois eles atribuem o agravamento do problema somente às más condições de assistência médica, as quais têm perpetuado uma prática caracterizada pela prescrição sistemática e muitas vezes desnecessária de tranqüilizantes benzodiazepínicos. Imaginamos, porém, ser esta apenas uma faceta do problema.

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que se percebe é o uso muito mais baseado em sinais sintomáticos, uma vez que o fator etiológico é pouco investigado ou compreendido, ou seja, o que geralmente se pretende é uma solução imediatista, objetivando a eliminação do incômodo provocado pelos sintomas.

Oliveira (2000) discute mais profundamente o conceito de dependência, ampliando o seu olhar para a dimensão social desse fenômeno. Segundo essa autora, “a dependência deve ser vista dentro da perspectiva cultural e socialmente determinada, que envolve uma variedade de significados e funções, independentes das seqüelas fisiológicas que muitas definições apresentam” (p. 72). A sua pesquisa com mulheres usuárias de Diazepam aponta para a necessidade delas em relação a algo ou alguém: ... “é um grupo que precisa de muitas coisas: emprego, educação, moradia, salário justo, respeito, acolhimento, reconhecimento e solidariedade” (p.72). Nessa perspectiva, afirma que essas mulheres vivem em um estado de dependência psicológica e social que é bem mais grave do que o estado de dependência aos tranqüilizantes.

Outra questão importante relacionada ao uso de BDZ diz respeito à síndrome de retirada ou síndrome de abstinência, um desconforto gerado pela sua retirada abrupta. De acordo com Pepe et al (1991), tal reação aparece de dois a três dias após a suspensão do BDZ, podendo persistir por três semanas ou mais. Nela, são desencadeados distúrbios fisiológicos cujo sentido é, em geral, oposto aos seus efeitos farmacológicos. Os sintomas incluem, entre outros: agitação, agorafobia, pânico, distúrbios gastrintestinais, dores musculares, parestesia, perda de peso, hipersensibilidade a estímulos visuais e, mais raramente, crises convulsivas do tipo grande mal e

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alucinações. Isso ocorre mais comumente se o uso do BDZ for por longo período (quatro meses ou mais); se altas doses tiverem sido usadas; se houver suspensão abrupta da substância. Conforme Pepe et al (1991), a síndrome de abstinência é importante, pois caracteriza a dependência farmacológica ao BDZ. Para evitar tal desconforto, é necessário que a sua retirada seja gradativa, principalmente após o uso por período mais prolongado.

Outro fenômeno decorrente do abuso de BDZ é o da tolerância, caracterizado pelo aumento progressivo das doses para a obtenção da intensidade dos efeitos anteriormente alcançados. Segundo os autores acima citados, o desenvolvimento da tolerância reflete o comprometimento orgânico da necessidade do produto e a incapacidade de reduzir ou parar de consumi-lo, sob pena de ser acometido por sintomas de abstinência, como: náuseas e vômito, mal-estar ou fadiga, distúrbios neurovegetativos (por exemplo: taquicardia, suores, tensão arterial elevada), ansiedade, humor depressivo ou irritabilidade, hipotensão ortostática, tremores evidentes das mãos, língua e pálpebras.

Rocha (1992) afirma que a tolerância à sedação usualmente tem início após uma semana de uso, quando o efeito ansiolítico do BDZ torna-se mais proeminente. Soares et al (1991) confirmam tais problemas, apontando as conseqüências sérias que podem ocorrer após o uso continuado de BZD:

1) Os sinais de abstinência parecem ser mais graves à proporção em que se aumenta a dose ingerida;

2) mesmo em doses terapêuticas, pode-se desenvolver dependência após longo tempo de uso; acredita-se que a duração mínima necessária seja de três a quatro meses;

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4) o uso concomitante, ou prévio, de barbitúricos ou álcool pode aumentar a possibilidade de desenvolvimento de dependência de benzodiazepínicos.” (p. 192)

Nos resultados da pesquisa de Rozemberg (1994), sobre o consumo de calmantes entre lavradores em 25 comunidades rurais da região serrana do estado do Espírito Santo, referências ao uso diário estão presentes em 68% dos relatos, nos quais a dependência e/ou o sofrimento da abstinência foram espontaneamente referidos em 47% deles.

Diante de um quadro tão sério de reações, que podem comprometer gravemente a saúde de quem utiliza esse tipo de medicamento, indagamo-nos se alguma coisa está sendo feita para evitar o mau uso dessas drogas. Não podemos negar que, quando bem utilizadas, elas constituem um recurso importante na terapêutica médica moderna. No entanto, infelizmente, não é dessa forma que o seu uso se apresenta no âmbito da saúde em nosso país.

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CAPÍTULO 2:

O MODELO DE ATENÇÃO

8

NO SISTEMA PÚBLICO DE SAÚDE

9

E A QUESTÃO DO USO DOS MEDICAMENTOS ANSIOLÍTICOS

Procuramos anteriormente apontar os aspectos importantes do contexto socioeconômico que estão relacionados com o uso dos medicamentos aqui analisados. Também mostramos uma visão histórica dos mesmos e como surgiram, enfocando as situações em que o seu uso é indicado, como também as conseqüências resultantes da forma inadequada de utilização.

É importante, dentro da análise da problemática que vimos desenvolvendo, reportarmo-nos, nesse momento, para a maneira como são produzidos e utilizados os serviços de saúde pela população. Devemos considerar alguns fatores da organização desses serviços, como, por exemplo, o trabalho dos profissionais, verificando o modelo em que é baseada a sua prática e a condição socioeconômica das pessoas que freqüentam o serviço, para que possamos ter um entendimento mais ampliado da prática

8 De acordo com Bordignon (1996), modelo assistencial é definido como “a forma que o Estado e a

sociedade concebem e organizam as práticas e as políticas de atenção à saúde, o instrumental técnico e as tecnologias que correspondem ao sanitário, buscando sua eficiência e sua eficácia. Portanto, o modelo assistencial traduz uma determinada forma de pensar e agir, através do seu conteúdo institucional, ideológico, político e técnico” (p.33).

9 Segundo Rocha (2000), o Sistema Único de Saúde (SUS) é um modelo público de prestação de serviços

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No Brasil, especificamente no serviço público de saúde, deparamo-nos com um modelo de atendimento que se mostra cada vez mais ineficaz, perpetuando situações que estão longe de proporcionar uma melhor saúde para quem necessita dos seus benefícios. Por isso, parece importante incluir, nesta discussão, uma análise a respeito do modelo pelo qual a saúde é guiada e fundamentada.

O modelo biomédico hegemônico, que fundamenta práticas, na maioria das vezes, inadequadas para tratar as necessidades de saúde da população, alimenta o sistema vigente na medida em que reforça a dicotomia saúde/doença, o que implica uma restrita atuação voltada exclusivamente para a doença.

Esse modelo constitui o alicerce conceitual da moderna medicina científica, guiando e fundamentando as práticas referentes à saúde. Ele é basicamente condicionado pelo paradigma cartesiano, que criou uma imagem inflexível dos organismos vivos como sistemas. Essa rígida estrutura conceitual considera o corpo como uma máquina, a qual pode ser completamente entendida em termos da organização e do funcionamento de suas peças. Conseqüentemente, isso levou a uma abordagem técnica de saúde, na qual a doença é reduzida a uma avaria mecânica, e a terapia médica, à manipulação técnica.

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externa, como a do médico, que pode ser física – através de cirurgia ou radiação –, ou química – através de medicamentos (Capra, 1982). Essa visão não contempla o potencial curativo do paciente, nem o seu processo homeostático.

Nesse modelo de prática médica, é atribuído muito poder aos profissionais, os quais são colocados numa posição em que somente eles sabem o que é importante para a saúde dos indivíduos e só eles podem fazer qualquer coisa a esse respeito. “Nossa sociedade conferiu aos mesmos o direito exclusivo de determinarem o que constitui a doença, quem está doente e quem não está, e os procedimentos com relação ao indivíduo enfermo” (Capra 1982, p.151).

Assim, a intervenção médica é efetuada com o objetivo de corrigir um mecanismo biológico específico numa determinada porção do corpo, com partes diferentes tratadas por especialistas diferentes. A saúde é um fenômeno que, segundo Capra (1982), não pode ser entendido em termos reducionistas devido a envolver uma complexa interação entre os aspectos físicos, psicológicos, sociais e ambientais da condição humana.

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perceber que a abordagem não satisfaz. Os pacientes não se contentam enquanto não saem do consultório com uma receita na mão.

No entanto, apesar de todas as conseqüências decorrentes das práticas baseadas nesse modelo, é notório que ele já adquiriu o status de um dogma e está totalmente vinculado ao sistema comum de crenças culturais. As deficiências do nosso atual sistema de assistência à saúde, no que se refere à eficácia e à satisfação das necessidades humanas, estão cada vez mais acentuadas e mais reconhecidas como decorrentes da natureza restritiva do modelo conceitual em que se baseia. Contudo, essa abordagem não deixa de ser útil em certos casos, desde que suas limitações sejam reconhecidas, pois a análise reducionista do corpo-máquina não pode fornecer aos médicos uma compreensão profunda e completa acerca dos problemas referentes ao ser humano.

Levando em conta todos esses aspectos apontados por Capra (1982), que fundamentam o modelo vigente de atenção, podemos afirmar que a assistência à saúde em nosso país também se mostra fragmentada, haja vista não adotar uma abordagem holística, não priorizar a integralidade do indivíduo, como também não o considerar inserido numa realidade que é dinâmica e cheia de contradições.

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A construção da assistência à saúde no Brasil foi alicerçada sobre bases que negam um compromisso com o indivíduo, não considerando aspectos que são essenciais à atenção em saúde. Assim, o que se presencia é uma assistência à saúde ineficaz e com pouca resolutividade. Aos que têm um melhor poder aquisitivo a assistência transformou-se numa mercadoria paga, imputando à saúde um valor de mercado, pela qual quem pode paga e quem não pode permanece sem uma assistência adequada. Segundo Oliveira (2000), uma das conseqüências desse modelo excludente é a dependência das pessoas, que passam a crer que a solução dos seus problemas de saúde está diretamente vinculada ao consumo do arsenal médico-industrial, disponível no mercado.

Tendo em vista a realidade de que as políticas de saúde no nosso país não consideram em sua prática assistencial, as condições de vida e carências dos seus usuários, sejam elas educacional, nutricional, habitacional ou econômica, as práticas referentes à saúde restringem-se à execução de recursos de assistência médica. O resultado desse tipo de atuação é que a saúde da população atendida é limitada ao momento da consulta, ou seja, ao momento da necessidade da abolição da doença.

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que estão permeando a doença, contribui para o aumento da demanda aos serviços públicos.

É importante termos sempre em vista que os fenômenos da saúde e doença possuem uma dimensão socioeconômica, cultural, coletiva e que também está interligada a outra que é psicológica, biológica, individual. O modelo a que estamos submetidos aborda, de forma muito restrita, os aspectos relacionados à saúde, tais como: a prevenção e a promoção da saúde a partir de uma visão mais abrangente dos seus fatores determinantes, gastando-se muito com tecnologias sofisticadas e padronizadas. Enquanto isso, os problemas mais básicos: moradia, educação, melhor distribuição de renda, dentre outros, permanecem, o que resulta em condições miseráveis de vida da população e na péssima qualidade de vida de um modo geral.

Tal modelo de assistência à saúde está relacionado com a forma neoliberal de produção dos serviços de saúde no nosso país. É necessário entender essa forma de assistência, levando em conta os interesses econômicos das esferas envolvidas no funcionamento dos serviços e nas práticas desenvolvidas no contexto da saúde. Segundo Mendes (1999b), o sistema de saúde brasileiro transitou do sanitarismo campanhista para o modelo médico-assitencial privatista, até chegar nos anos 80, ao projeto neo-liberal, o qual se tornou hegemônico frente à proposta da Reforma Sanitária Brasileira10.

10 A Reforma Sanitária pode ser conceituada como “um processo modernizador e democratizante de

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Na visão desse autor, o que caracteriza o projeto neo-liberal, proposta conservadora de reciclagem do modelo assistencial-privatista, são três opções fundamentais:

1. A privatização dos serviços de saúde geralmente com subsídio estatal, direto ou indireto, o que constitui uma apropriação privada do Estado e sua regulação pelos mecanismos de mercado;

2. diminuição da capacidade de regulação e arbitragem do poder público (Estado mínimo) impedindo os desequilíbrios resultantes do mercado;

3. os gastos sociais públicos chegam em pequenas proporções aos setores pobres da sociedade, que em função da pouca força política e insensibilidade dos políticos, não conseguem reverter essa relação.

De acordo com Campos (1992), o funcionamento desse modelo reproduz a forma mecanicista da prática, a qual sobrevive articulando interesses empresariais com os de amplas parcelas de profissionais de saúde, principalmente as dos médicos e dentistas. Assentada nos moldes das concepções do modelo neoliberal, a prática de atendimentos na saúde pública é voltada para assistência individual. Como exemplo disso, temos o incentivo ao aspecto quantitativo: a produtividade traduzida em números de procedimentos realizados11.

Os centros e postos de saúde geralmente adotam a modalidade de pronto atendimento e são direcionados à demanda espontânea da comunidade. Desenvolvem ações padronizadas de atendimento, tais como: vacinação, puericultura, pré-natal, etc.

11 Dimenstein (1998b), tratando especificamente dos psicólogos na saúde pública, aponta para o fato de

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Apesar do crescimento do número de unidades de atenção básica, ainda não se conseguiu concretizar um atendimento mais integral à saúde da população, através de ações voltadas ao mesmo tempo para o indivíduo e para a comunidade, para a promoção, prevenção e tratamento12 na perspectiva de superar os limites da prática clínica. No entanto, o que persiste é uma atenção predominantemente curativa, com ações de atendimentos individuais.

Campos (1992) afirma existir uma resistência por parte dos médicos às novas diretrizes organizacionais do SUS, as quais se manifestam de duas formas: a primeira, que é a expressão de posturas profissionais neoliberais conservadoras, também na área pública, submete os profissionais da saúde a algum grau de assalariamento, controle, avaliação e trabalho em equipe. A explicação dessa resistência dos médicos assumirem a condição de assalariados, com as obrigações que ela impõe, de acordo com o autor citado, deve-se ao fato de que a maioria dos médicos também está envolvida com o serviço privado. O resultado disso é o não cumprimento do horário completo para o qual são contratados, obrigando os dirigentes a aceitar muitas formas negociadas de acordo, como por exemplo: cumprimento parcial do tempo estipulado, definição de produtividade mínima, o que os levariam a estar liberados do compromisso do horário, etc. Dessa maneira, os médicos tendem a encarar o trabalho no serviço público como um complemento do realizado no setor privado, descomprometendo-os de buscar

aqueles ligados à assistência indireta como as visitas domiciliares, aos equipamentos sociais das comunidades” (p.88).

12 Promoção refere-se ao conjunto amplo de ações não específicas que visam aumentar o nível de

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alguma resolução para os problemas de saúde. A realidade é que não há jornada fixa para os médicos, o que inviabiliza qualquer tentativa de um trabalho mais sério, voltado para as reais possibilidades de mudança na assistência à saúde da população.

A segunda linha é contra o objetivo estratégico da integração sanitária, resultante da resistência da cultura clínica a qualquer reformulação da prática profissional que objetive incorporar as dimensões psicológicas, sociais e da saúde pública ao cotidiano dos serviços. Em outras palavras, o quadro que se apresenta é de profissionais com falta de iniciativa e de criatividade, cumprindo apenas o que está previsto nas normas burocráticas do serviço. A justificativa para essa postura profissional se dá pela alegação da baixa remuneração e das precárias condições de trabalho das unidades públicas.

Campos (1992) afirma que tal postura de resistência por parte dos médicos permanece mesmo em instituições em que as remunerações são superiores àquelas do setor privado e, no que se refere às condições de trabalho, o argumento não é tão sólido e convincente, porque a referida precariedade também existe em inúmeros serviços privados: “... essa postura é muito mais uma decorrência da projeção da cultura neoliberal nos corações e mentes da maioria dos médicos.” (p. 123). Essa postura é traduzida, na prática desses profissionais, em um permanente estado de descompromisso com a coisa pública, como se os atos médicos fossem diferentes pelo fato de ocorrerem em instituições públicas ou privadas.

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sociais, entre outros, renovou um pouco as práticas de atendimento, tornando-as mais ampliadas, no sentido de contemplarem mais a complexidade humana, através de atendimentos psicológicos, trabalhos em grupo, educação em saúde, reabilitação13 e outros. Apesar desse fato ter possibilitado uma certa superação dos limites de atenção individual curativa, essas atividades não foram suficientes para a ocorrência de mudanças efetivas, como esclarece Campos (1992, p.124): “Não conseguiram, enquanto atores políticos, criar uma dinâmica política capaz de superar a privatização e a burocratização do SUS, prevalecendo, mesmo entre esses funcionários, uma situação de progressiva adaptação a pasmaceira do sistema público.” A realidade que se mostra é de um quadro de permanente insatisfação com o poder público, delegando a ele toda a obrigação por alguma alteração, o que cria uma cultura de isenção de qualquer responsabilidade por parte dos servidores pelo mau funcionamento do sistema. Isso implica que os profissionais da saúde assumem a postura de comodismo e adaptação às situações, mesmo sendo elas muitas vezes absurdas.

O psicólogo, como parte dessa equipe, está submetido a esse modelo de trabalho. Os que estão atuando no serviço público de saúde apresentam dificuldades de oferecer alternativas de atuação mais ampliadas, restringindo-se àquelas aprendidas durante a sua formação acadêmica, que são baseadas, predominantemente, em um modelo clínico e individual. Sua formação profissional não o preparou para atender na saúde pública, pois o ensino dentro da psicologia sempre priorizou o modelo clínico psicoterápico. Trata-se de um tipo de prática que historicamente sempre foi voltada para os padrões de classe média e que, atualmente, é utilizada de forma padronizada no atendimento à

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população mais carente. Consideramos, porém, que a atuação do psicólogo é descontextualizada nas instituições de saúde pública, pois além de desconsiderar aspectos importantes relacionados com a condição socioeconômica e cultural das camadas populares, impede a integração de ações relacionadas à saúde.

Esse modelo de atuação em clínica vem sendo retroalimentado pelas graduações de Psicologia, realçando ainda mais a imagem social do psicólogo como um clínico especializado. No entanto, a descontextualização dessa prática fica mais evidente no serviço público de saúde, pois tratam-se de ações que acabam não respondendo aos objetivos propostos de uma atenção mais voltada para a produção social da saúde.

Assim, a priorização das ações individuais acabam substituindo ações junto às equipes e junto aos programas já implementados pelas instituições de saúde. Por trás dessa supervalorização dos procedimentos técnicos, independentemente da instituição, do seu tipo de demanda e das características da população nela atendida, está uma concepção abstrata e a-histórica de sujeito, com a utilização de métodos e técnicas em geral importados de outras realidades, pautados em valores completamente diferentes dos da população que procura as instituições públicas brasileiras de saúde. Tal realidade faz com que justificativas sejam criadas a respeito dos insucessos e impossibilidades para com a clientela, sem que haja um questionamento do modelo adotado.

Diante dessa situação, percebemos que existem problemas muito graves no que tange à formação do psicólogo.14 Podemos afirmar que modificações profundas se

psíquicas e sociais, lesadas após processo de adoecimento, (fisioterapia, por exemplo). (Bodstein, op.cit).

14 Trata-se de

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fazem necessárias para que um novo perfil profissional seja desenvolvido na área da psicologia. Deseja-se que essa categoria tenha, entre outras coisas, uma função social e que a sua prática seja condizente com a realidade da população assistida, desenvolvendo uma postura crítica em relação aos pressupostos teóricos, os quais, como foi dito, na sua maioria, priorizam uma assistência individual e não concebem o ser humano na sua totalidade, mas abstraído do seu contexto social.

Enfim, devemos superar o modelo que predomina na psicologia, haja vista mostrar-se inadequado para a realidade presente no serviço público; é necessário construir um outro modelo que possibilite uma prática socialmente articulada dentro das instituições de saúde.

Referências

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