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De feminino a feminista: transformação na escrita literária dos romances de Heloneida Studart

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Academic year: 2017

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FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS DOUTORADO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

DE FEMININO A FEMINISTA: A TRANSFORMAÇÃO NA ESCRITA LITERÁRIA DOS ROMANCES DE HELONEIDA STUDART

IONEIDE MARIA PIFFANO BRION DE SOUZA

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FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS DOUTORADO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

DE FEMININO A FEMINISTA: A TRANSFORMAÇÃO NA ESCRITA LITERÁRIA DOS ROMANCES DE HELONEIDA STUDART

APRESENTADA POR

IONEIDE MARIA PIFFANO BRION DE SOUZA

PROFESSOR ORIENTADOR: JOÃO MARCELO EHLERT MAIA

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS DOUTORADO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

PROFESSOR ORIENTADOR: JOÃO MARCELO EHLERT MAIA

IONEIDE MARIA PIFFANO BRION DE SOUZA

DE FEMININO A FEMINISTA: A TRANSFORMAÇÃO NA ESCRITA LITERÁRIA DOS ROMANCES DE HELONEIDA STUDART

Tese de Doutorado apresentada ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC como requisito parcial para a obtenção do grau de

Doutor em História, Política e Bens Culturais.

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Resumo

Esta tese pretende recuperar a incorporação da questão de gênero na trajetória intelectual de Heloneida Studart através de sua literatura de ficção, tendo por objeto a maneira como a questão de gênero foi tematizada nos romances da escritora durante os anos de 1952 a 1978. Portanto, foi almejado analisar a forma como Heloneida se inseriu nos debates sobre a mulher e as relações de gênero no período. Minhas preocupações foram menos buscar se a literata produziu ou reproduziu imagens estereotipadas das relações entre mulheres e homens e mais entender os recursos que lançou mão e os sentidos próprios que procurou imprimir ao construir tal imagem ajustada aos debates e categorias que norteavam seu projeto literário o qual foi se desenvolvendo a partir tanto de sua vivência subjetiva, quanto a partir dos contatos que travou, a saber: a casa de Juvenal Galeno, o Partido Comunista, o movimento feminista e o Centro da Mulher Brasileira. Deste enlace, vivência subjetiva e lugar social, teriam nascido formulações teóricas não só para seus romances, como também para sua posterior prática política em prol da mulher.

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Abstract

This thesis intents to recover the incorporation of the issue of gender in the intellectual trajectory of Heloneida Studart through her fictional literature, having as objective the way that the issue of gender was thematized in the novels of the writer during the years from 1952 to 1978. It was aimed to examine how Heloneida inserted herself in the debates about women and gender relations in the period. My concerns were less a search to see if literate produces or reproduces stereotypical images of relations between women and men and more to understand the features that Heloneida made use and the main senses that wew used to construct such image well ajusted to the debates and categories that shaped her literary project, which was developing from both her subjective experiences, and from contacts that were made, namely: the house of Juvenal Galeno, the Communist Party, the feminist movement and the Brazilian Women Center. From this connection, subjective experiences and social places, theoretical formulations were born not only for her novels but also for her subsequent practical politics in favor of women.

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À MEMÓRIA DE MEU PAI, ALBERTINO JOSÉ BRION, MAIOR INCENTIVADOR DESTA PESQUISA.

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AGRADECIMENTOS

Ao final de quatro anos de pesquisas e de estudos, muito tenho a agradecer a todos aqueles que, com seus sorrisos, provocações e discussões me conduziram até aqui.

Agradeço à equipe de pesquisadores e funcionários da Biblioteca Mozart Monteiro, da Casa de Juvenal Galeno, representados na figura de Alciene Ferreira, que foram meus olhos e mãos na pesquisa em Fortaleza. Obrigada pela boa vontade, pela generosidade, pelos incentivos e sugestões de material de pesquisa e escrita. Vocês são um exemplo do porquê trabalhamos tanto pela divulgação da informação e da cultura em nosso país.

Um agradecimento especial ao meu orientador, professor João Marcelo Ehlert Maia, pelo carinho, pela dedicação, pela paciência e pela confiança com que aceitou a mudança na temática da pesquisa. Obrigada pela disponibilidade, pela gentileza, pelo cuidado e pela preocupação de sempre. Foram anos muito difíceis para mim e por isso, posso dizer com toda certeza que tenho a sorte de contar com um orientador no sentido mais pleno que essa palavra pode assumir. Aprendi valiosas lições não só referentes à História e às Ciências Sociais, mas também lições de que um pesquisador/professor se constrói com valores que perpassam o mundo acadêmico. A pergunta que me foi feita quando lhe procurei para pedir que me orientasse, respondo: esse trabalho não seria realizado sem o seu entusiasmo e sem as suas provocações, não imagino outra pessoa que pudesse me acompanhar e me orientar nessa trajetória de maneira tão brilhante e com uma entrega total. Se quisesse, começaríamos tudo outra vez, mas sem os percalços passados.

Agradeço também aos professores Angela Maria de Castro Gomes, Bernardo Borges Buarque de Hollanda, Alzira Abreu, Christiane Jalles, João César de Castro Rocha e Valter Sinder que em momentos diferentes e de modos muito variados contribuíram enormemente para o desenvolvimento dessa pesquisa.

Muito obrigada aos porfessores Maria Alice Rezende de Carvalho, Antônio Herculano Lopes, Antonio Brasil Júnior e Dulce Chaves Pandolfi pela gentileza de compor a banca examinadora e pela atenção dedicada a este trabalho.

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Aos colegas do Programa de Pós-graduação em História, Política e Bens Culturais Liliane Côrrea, Rafaella Bettamio, Guilherme Mendes, Evelyn Morgan e Nayara Galeno agradeço pelo apoio não só acadêmico, mas sobretudo emocional que me forneceram ao longo desses quatro anos.

À Lucia Cristina, Mariana Mello e Hermenegildo Giovannonni, agradeço pela paciência em escutar, ler, corrigir e dar sugestões valiosas para o presente trabalho.

À minha mãe, Iêda, agradeço por não ter me deixado desistir nos vários momentos em que fomos arrastadas por vendavais que atingiram em cheio nossa família. Obrigada por me ensinar que sempre podemos recomeçar, apesar de tudo.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 13

História e História das Mulheres ... 14

Biografia, gênero e literatura ... 21

CAPÍTULO 1- A BUSCA DO EU FEMININO ... 30

1.1- A Casa de Juvenal Galeno ... 30

1.2- A Primeira Pedra: análise ... 40

CAPÍTULO 2 –A MULHER E A SOCIEDADE ... 62

2.1 – O Proletariado e o PCB ... 63

2.2- A Culpa: análise ... 73

CAPÍTULO 3 –A REVOLUÇÃO VIA FEMINISMO ... 92

3.1 – O CMB e o feminismo ... 93

3.2- A Deusa do Rádio e outros deuses: análise ... 103

CONCLUSÃO ... 131

ANEXOS ... 138

Anexo 1: Biografia Heloneida Studart ... 139

Anexo 2: Cronologia da Vida de Heloneida Studart ... 142

Anexo 3: Livros Publicados por Heloneida já no Rio de Janeiro ... 145

Anexo 4: A Casa Juvenal Galeno ... 146

Anexo 5: Hino da Ala Feminina da Casa de Juvenal Galeno ... 147

Anexo 6: Capa do Livro Publicado por Heloneida enquanto membro da Ala Feminina da Casa de Juvenal Galeno ... 148

Anexo 7: Contracapa do Livro Publicado por Heloneida enquanto membro da Ala Feminina da Casa de Juvenal Galeno ... 149

Anexo 8: Textos publicados por Heloneida no livro Naipes ... 150

Anexo 9: Capa do livro de 1950 – A Primeira Pedra ... 151

Anexo 10: A Primeira Pedra - dados sobre o livro ... 152

Anexo 11: Capa do Livro da década de 1960 – A Culpa ... 154

Anexo 12: A Culpa - dados sobre o livro ... 155

Anexo 13: Capa do Livro da década de 1970 – A Deusa do Rádio e outros Deuses ... 157

Anexo 14: A Deusa do Rádio e outros Deuses - dados sobre o livro ... 158

Anexo 15: Carteira de trabalho assinada pelo SESI ... 160

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INTRODUÇÃO

Quando decidi que o tema de minha tese estaria relacionado a Heloenida Studart sempre me deparei com as mesmas perguntas: se eu ia trabalhar as legislaturas assumidas na Assembléia Estadual do Rio de Janeiro por Heloneida1, se ia analisar sua militância feminista, sua relação com o Centro da Mulher Brasileira ou se ia me dedicar aos seus anos junto ao PCB. A todas a estas perguntas respondia negativamente. O que causava estranheza na maioria dos ouvintes, os quais estavam acostumados a terem apenas essa Heloneida como personagem de estudos acadêmicos. Mas então, ao que esta tese se dedicou a pesquisar? Ela se dedicou a estudar a incorporação da questão de gênero na trajetória intelectual de Heloneida Studart através de sua literatura de ficção haja visto que foi percebido por mim que até o presente momento há uma ausência de trabalhos sobre a Heloneida escritora, não só de romances, como de crônicas para jornais e peças de teatro.

Partindo, então, desta ideia o objeto central que se delineou foram as particularidades com que a questão de gênero foi tematizada nos romances da autora durante os anos de 1952 a 1978. Cabe aqui ressaltar que as balizas temporais foram escolhidas porque no ano de 1952 a autora chegou na cidade do Rio de Janeiro onde publicou, no mesmo ano, sua primeira obra literária dando início, oficialmente, a seu trabalho como escritora. O marco final foi posto em 1978, por ser o ano no qual Heloneida ingressou na vida política ao se eleger deputada estadual para a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), iniciando a partir de então, a construção de uma identidade política que rompia com o estereótipo de um intelectual contemplativo que via a luta como transitória e capaz de ser superada por um ato reflexivo.

Uma vez definidas as balizas temporais se fez necessário selecionar, na vasta obra literária de Heloneida, em quais eu abordaria a maneira como a questão de gênero foi incorporada pela sua literatura de ficção. Para tanto selecionei três obras: A Primeira Pedra (1953), A Culpa (1964) e A Deusa do Rádio (1970). A escolha dos livros a serem analisados se deveu não só por estarem dentro dos marcos cronológicos estabelecidos, como também pela representatividade destes no projeto literário da autora. Como foi cogitado que este seu projeto literário teria sofrido mudanças significativas ao longo de sua trajetória intelectual em virtude dos locais sociais de onde ela defendia suas ideias, as obras foram escolhidas de

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14 acordo com o período e o local de onde a autora falava. Então, agrupar os romances em três décadas (1950, 1960 e 1970) foi uma tentativa de submeter a uma análise pormenorizada os diversos sentidos de mulher e de relações de gênero que a autora forjou em momentos distintos de sua trajetória literária e intelectual. Estes livros foram conseguidos em sua primeira edição na Biblioteca Mozart Monteiro da Casa de Juvenal Galeno no Ceará.

Assim, para a análise das fontes literárias centrei a pesquisa em torno de um tema aglutinador escolhido por ser, entre as temáticas trabalhadas nestas fontes, aquele que perpassou e deu consistência às demais: a desigualdade na relação entre gêneros e os resultados deste processo, machismo e feminismo, os quais seriam, para a autora, responsáveis pela construção do papel social da mulher. E a partir desse tema aglutinador fui buscando apresentar outros temas não menos importantes para Heloneida, mas que foram se somando, ao longo dos anos, a sua preocupação inicial. Como resultado, desta opção analítica me surgiu uma outra questão analítica que norteou a feitura da tese: a dinâmica entre feminino e feminismo dentro do projeto literário da escritora que, como veremos, ao longo dos anos foi mudando o foco de escrita de suas obras de uma escrita feminina para uma escrita feminista engajada.

História e História das Mulheres

Vários fatores concorreram para trazer à tona o objeto de estudo “mulheres”: o primeiro fator seria de que até a década de 70 predominavam as análises estruturalistas, apoiadas nos recortes macrossociais, nas explicações globalizantes, nas conjunturas econômicas e nas categorias sociais em sua busca pela compreensão do passado histórico. Nesse processo, o “indivíduo” e as questões referentes ao âmbito privado eram ignorados, o que trazia em seu bojo, consequentemente, a invisibilidade das mulheres na história. (COSTA, 2003: 188). Com a crise dos paradigmas, sobretudo do estruturalismo, a história procurou novos parceiros disciplinares para colocar em cena os distintos atores que compunham a trama social. Temos, por exemplo, a relação entre historiadores e antropólogos que favoreceu novas perspectivas ao enfatizar investigações sobre as “pessoas comuns”, os valores, o simbólico, os rituais, os comportamentos e as crenças. Nesse contexto de tentativa de aprimorar os instrumentos conceituais das análises, incluíram-se nas pesquisas as dimensões do privado e as relações entre homens e mulheres, trazendo o outro lado da

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15 Um segundo fator seria o sociológico, pois a partir dos anos setenta a presença feminina nas universidades é expressiva, isto é, com o fim da Segunda Guerra Mundial, as mulheres consolidariam a conquista do seu espaço na academia onde antes não eram bem aceitas. A mulher pode, talvez, incentivar uma visão pela sua trajetória na história. E, por último, os fatores políticos, que foram decisivos. Com eles o movimento pela libertação das mulheres teve ambições teóricas ao questionar valores universais masculinos. Mulheres intelectuais, leitoras de Simone de Beauvoir, que de inicio não tinham a pretensão de incluir o gênero nos estudos históricos manifestaram-se contribuindo com um novo olhar para o feminino na história. Nascia o desejo de outro relato, de uma outra história (PERROT, 2007: 20) que, integrada à tentativa de acompanhar as novas “indagações” que essa realidade trazia para a vida das mulheres questionando a clausura representada pela exclusão, pelo esquecimento e pelo privado, demonstrou que elas também faziam parte do processo histórico, apesar de serem vítimas da injustiça e da exploração (DEL PRIORE, 1998: 220).

Assim, as mulheres foram alçadas à categoria de protagonistas ao lado dos homens, o que fez com que, pouco a pouco, fossem reveladas tanto na esfera pública (motins, organizações políticas, mercado de trabalho...) como em aspectos privados até então relegados (família, maternidade, lar...). Surgiam enquanto “rebeldes” e “amotinadas”, “donas-de-casa” e “trabalhadoras”, intelectuais transformando e sendo transformadas nas mais

diversas redes de sociabilidade2. Vale ressaltar que “mulher”, nesse momento, significava

uma categoria homogênea e fixa, ou seja, “pessoas biologicamente femininas que se moviam dentro e fora de contextos e papéis diferentes, [..] mas cuja essência - enquanto mulher - não se alterava” (SCOTT, 1992: 82). Esse posicionamento solidificou a oposição homem/mulher, importantíssima para uma mobilização política feminista, porém as personagens subiram ao palco apenas quando tentavam desequilibrar o predomínio masculino ou quando eram inseridas nos estudos sobre as minorias. Tornavam-se necessárias novas interrogações que fossem além da divisão binária homem/mulher e que apresentassem o masculino e o feminino em suas interações sociais “buscando nas atitudes e sensibilidades coletivas, nos fatos e práticas cotidianas, os espaços onde se abrigava a relação homem-mulher” (DEL PRIORE, 1998: 224-5).

Neste ponto, os novos métodos e abordagens das últimas décadas, tanto da História Cultural quanto da Nova História Política, muito contribuíram na tentativa de encontrar

2 Para aprofundar esta questão sugiro a leitura dos trabalhos de PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992 e THOMPSON, Edward P.

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16 respostas para os questionamentos provenientes de outras problemáticas que passaram a instigar os pesquisadores. De um lado, a discussão ganhou força com o auxílio da interdisciplinaridade (literatura, antropologia, psicanálise...), que permitia entender o feminino em vários aspectos: no imaginário social, nas representações, na subjetividade e nas práticas. Por outro, o desenvolvimento da categoria gênero trouxe a dimensão analítica do sexo para as experiências sociais em detrimento do determinismo “biológico” e “natural” que supostamente regia as distinções e relações entre homens e mulheres (SOIHET, 1997: 276-9). Somado a isso, a reabilitação da biografia e da valorização dada ao indivíduo levou a busca pela compreensão de como o ser humano organizava, pensava e lia sua realidade, ou seja, houve também uma valorização do simbólico, da construção dos sentidos e das interpretações,

nas representações e na linguagem3.

À presente tese, interessa, sobretudo, os estudos que passaram a problematizar a quase total ausência de textos escritos por mulheres e a forma como encontraram uma voz própria, autônoma, para romper os discursos feitos sobre elas. Então, o ato de escrever textos, principalmente ficção, representou uma transgressão dos padrões culturais ou, simplesmente, dos padrões patriarcais. Conhecer a escrita significou problematizar o mundo criando as suas próprias representações na compreensão da sociedade. A “luta de representações” que se instaura permite o surgimento de pesquisas perpassadas de abordagens incitadas pela história cultural, a saber as relações de gênero com o discurso enquanto prática constituinte. Os estudos daí resultantes constataram que as mulheres ocupavam uma posição secundária e relativamente excluídas ou auto-excluídas (o que dá no mesmo, pois representa a forma cabal de internalização psicológica de uma exclusão social) dos espaços mais amplos de produção intelectual e cultural, marcadamente masculinos (PONTES, 1996: 3).

Isso porque, apesar da literatura ter sido a prática artística melhor indicada para as mulheres da burguesia, qualquer semelhança com a imagem do homem intelectual parecia impossível de conceber e aceitar. As mulheres eram toleradas enquanto ocupavam um lugar secundário na literatura, mas elas deviam ser desestimuladas a buscarem os lugares de prestígio e de poder (universidades, agremiações, academias...) onde se constituíam os novos discursos do saber (MARINI, 1991: 365-6) já que o papel esperado e cobrado delas pelos valores sociais vigentes era o de responsáveis pelo sólido ambiente familiar ao criar um lar acolhedor e filhos educados. Além disso, a esposa - como um importante capital simbólico -

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17 deveria contribuir para a mobilidade social de seu esposo ao se tornar uma exímia anfitriã e uma senhora de conduta irrepreensível (D’INCÃO, 2002: 229).

Verifiquei que as mulheres que pretendiam se dedicar à literatura e fazer dela um mecanismo de ação sobre o social teriam de passar por dois movimentos. O primeiro dizia respeito a uma construção interna de um eu feminino autônomo que permitiria a emergência de um segundo movimento, onde a mulher se conscientizaria de que a liberdade interna deveria ser refletida externamente através de uma independência financeira (LOBO, 2011: 3) que as permitiria a liberdade frente aos discursos que as representavam. No entanto, este processo de construção de um eu autônomo que permitiria a transformação em escritoras não foi um processo fácil, foi marcado por descrédito e ridicularizações. A intelectual era tratada como um péssimo exemplo, uma doença que devia ser controlada, se não erradicada (SOIHET, 2004: 15-6).

Mas mesmo com severas sanções e com uma instrução, se comparada à conferida ao sexo masculino, inferior, a mulher escrevia. Inicialmente associado à religião, sobretudo à

católica. Era grande o número de senhoras que assinavam artigos em periódicos católicos4.

Porém, na segunda metade do século XIX, com o surgimento de jornais elaborados por mulheres, a escrita destas pode se consolidar. Inúmeras são as publicações jornalísticas

femininas neste período, a saber: em Recife surgiram em 1850 A Esmeralda e O Jasmim, e

em 1875 Myosotis; no Rio de Janeiro surgiram em 1852 o Jornal das Senhoras, em 1862 O

Belo Sexo, em 1874 O Domingo e Jornal das Damas; em Campanha, Minas Gerais, surgiu O Sexo Feminino em 1873; em São Paulo surgiram em 1888 A Família e em 1897 A Mensageira (DUARTE, 1999: 424-6) 5. Os jornais foram os espaços onde as mulheres

4 Para ampliação desta discussão ver os artigos: MAUAD, Ana Maria; MUAZE, Mariana. A escrita da intimidade: história e memória no diário da viscondessa do Arcozelo, CASTRO, Celso. O diário de Bernardina, FERREIRA, Marieta de Moraes. Correspondência familiar e rede de sociabilidade, POSSAS, Lidia M Vianna. Vozes femininas na correspondência de Plínio Salgado (1932-38). Estes se encontram no livro GOMES, Ângela de Castro (org.) Escrita de si, escrita da história. Rio de janeiro: Editora FGV, 2004. Consultar também MIGNOT, Ana Chrystina Venancio; BASTOS, Maria Helena Camara, CUNHA, Maria Teresa Santos (orgs.). Refúgios do eu: educação, história, escrita autobiográfica. Florianópolis: Mulheres, 2004.

5 Para além destes jornais ainda podemos citar o levantamento feito pela pesquisadora Maria Arisnete realizou na Fundação Biblioteca Nacional de jornais literários e de periódicos direcionados ao público feminino entre os anos de 1850 e 1900. Nesse levantamento temos: Novo gabinete de Leitura (1850); Recreio do Belo Sexo

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18 puderam compartilhar suas idéias fornecendo tanto entretenimento quanto informação e instrução. (DUARTE, 1999: 427-9). As mulheres escreviam nos jornais, nas revistas e, principalmente, redigiam romances. E seria através do romance que as mulheres, tanto para o mundo quanto para o Brasil, ingressariam na literatura. No final do século XIX, as mulheres que escreviam folhetins eram relativamente numerosas, mas embora ganhassem a vida por meio das letras, elas ainda não detinham o título de “escritoras”. A discussão dos papéis de homens e mulheres, a reformulação das leis e as novas relações de trabalho, desencadeadas pelo pensamento burguês, alteravam aos poucos o status social das mulheres. As linhas de discussão sobre o papel do feminino e da sua escrita foram ficando cada vez mais tênues no final do século XIX e início do XX. Apesar de todas as dificuldades, as mulheres começavam a transpor a barreira das letras. Incentivadas pelos movimentos feministas, reivindicavam a igualdade de direitos civis e políticos, acesso à educação superior e melhores oportunidades de trabalho. Os movimento eram constituídos pelas mulheres de classes média e alta, identificadas com a burguesia e com o liberalismo econômico.

Se o século XIX deixou como herança uma escrita feminina que misturava uma proximidade com modelo masculino com nuances de certo ressentimento (marca inconfundível de autoras divididas entre escrever como os homens, mas do lugar da mulher que se sentia excluída da vida cultural), o século XX - com o feminismo- trouxe a oportunidade da mulher se expressar e se “auto-conhecer” como sujeito do discurso. Com isso, a escrita feminina, do início do século XX até o início dos anos 70 não só desafiava subverter a cultura dominante, como também fornecia voz à mulher para falar por si mesma. Os romances passaram a apresentar uma reavaliação da história através da ótica feminista tentando subverter o silêncio feminino (NAVARRO, 1995: 14-5). Neste sentido, é importante estudar as obras das escritoras no período, discutindo como elas romperam a regra do silêncio imposto à mulher e desafiaram, portanto, a construção tradicional do sujeito feminino e é essa a nossa pretensa.

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19 feminino se exprimiu na busca de si mesmo, como por exemplo: a paixão, morte e ressurreição que Heloneida irá mostrar em muitos de seus textos. As personagens femininas faziam uma travessia de si mesmas, como um novo espaço a explorar. Reintegrando a posse da memória através da escrita elas se inscreviam naquilo que escreviam (GOMES, 1999: 16).

Percebe-se que a escrita feminina, se esta existe ou não, procurou ao longo do tempo firmar uma identidade. É no descrever dos sentimentos femininos, das suas visões de “verdades” políticas, sociais, culturais, etc, que as mulheres tentam se apresentar ao mundo como sujeitos aptos a criar e a desvendar um pouco do universo feminino. Partindo dessa ideia, a tese almejou discutir a escrita literária de Heloneida como uma conquista de espaço enquanto mulher produtora de discursos e de saberes, ou seja, como uma intelectual cuja experiência foi o resultado do processo através do qual o sujeito assimilou, na subjetividade, as posições de enunciação diferenciadas que delimitaram ou expandiram as realizações deste feminino.

Além disso, a escolha do tema de pesquisa a ser desenvolvido na presente tese também partiu da constatação de que, ao longo desses anos e até o presente momento, foi feito um levantamento bibliográfico apontando que, apesar de Heloneida Studart se dedicar à luta em prol do feminino e possuir uma vasta produção literária e jornalística na temática anterior a sua militância feminista e sua atividade política, são quase que inexistentes estudos sobre ela e sua escrita na literatura acadêmica. Os poucos nos quais ela figura estão interessados no debate sobre o feminismo no Brasil e/ou na relação deste com a atividade legislativa de algumas feministas.

É o caso do artigo apresentado por Lourdes Moreira e Hildete Araújo6 para o Simpósio sobre estudos de gênero e políticas públicas realizado no Paraná em 2010. No artigo, as autoras analisam a atividade legislativa das deputadas da bancada feminista da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro incluíndo Heloneida. Já o trabalho realizado por Cecília Mesquita e Flávia Esteves para a Revista Cantareiras7, bem como o de Joana Maria Pedro para a Revista Brasileira de História8, ao abordarem a implantação do

6 MOREIRA, Lourdes; ARAÚJO, Hildete Pereira de Melo Hermes de. Feminismo na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro: as deputadas feministas e a promoção de política para as mulheres. In: Anais do Simpósio sobre Estudos de Gênero e Políticas Públicas, 1, 2010, Londrina, Paraná, Anais Eletrônicos... Disponível em <http://www.uel.br/eventos/gpp/pages/arquivos/3.LourdesMo reira.pdf>

7 MESQUITA, Cecília Chagas de; ESTEVES, Flávia C. Duas trajetórias: a memória do movimento feminista no Brasil (fins da década de 1960 aos anos de 1980). Revista Cantareira, 7ª edição. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/cantareira/novacantareira/ artigos/edicao7/artigo_4.pdf>. Acesso em 7 mar 2010. 8 PEDRO, Joana Maria. Narrativas fundadoras do feminismo: poderes e conflitos (1970-1978). Revista

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20 feminismo no Brasil da década de 70 citam Heloneida, como uma militante do movimento feminista e não mencionam seus trabalhos literários.

A atividade literária de Heloneida é brevemente abordada, mas não diretamente, em dois artigos. O primeiro de autoria de Cecília Cunha9, publicado na Revista de Estudos Feministas, embora aborde aspectos de suas atividades literárias, está mais interessado em apresentar uma biografia cronológica da escritora. O segundo, escrito por Gabriel Jacomel10 e publicado nos Anais do XVIII Encontro Regional de História, analisa uma das peças de teatro escritas por Heloneida buscando evidenciar seu teor feminista.

Heloneida aparece mais como um nome entre outros tantos de mulheres que defenderam a bandeira feminista. Ora como militante, ora através de sua atuação legislativa. Sua vivência intelectual, até o presente momento, não foi objeto de análise. Então, na pesquisa que ora apresento, consciente de toda atividade legislativa e jornalística de Heloneida, optei por analisá-la a partir de seus romances, situando-a como uma intelectual assumidamente de seu tempo e cuja preocupação com o feminino antecedeu sua filiação política ou sua militância enquanto feminista.

Ainda que esta tese não tenha na trajetória individual (ou mesmo nas origens sociais) da romancista Heloneida Studart a sua personagem central, não seria possível me furtar de dialogar com sua trajetória já que muitos de seus livros, embora não tenham sido escritos para serem autobiográficos, trazem muito da trajetória da autora. Conhecer a biografia da escritora, mesmo sem nela se aprofundar ou, mesmo sem ainda para este momento atrelá-la a feitura de sua obra literária é fundamental porque se esse procedimento revela certa familiaridade com a autora, não deixa de demonstrar, também, a grande dificuldade em estabelecer fronteiras entre autor e obra. Como será notado ao longo da narrativa dessa tese, em muitos casos ambos se confundem, sendo que grande parte do esforço analítico aqui empreendido está justamente em conseguir, segundo Foucault, elaborar uma análise na qual a relação entre autor e obra avalie o modo como a segunda aponta para o autor, uma figura que, ao menos em aparência, lhe é exterior e anterior11.

9 CUNHA, Cecília. Uma escritora feminista: fragmentos de uma vida. Estudos feministas, Florianópolis, n.16, v. 1, 2008, p. 271-276.

10 JACOMEL, Gabriel Felipe. Leituras do feminismo brasileiro na peça Teatral Homem não Entra. Anais do XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu tempo. ANPUH/SP – UNESP/Assis, 24 a 28 de julho de 2006. Cd-rom;. Acesso em 27 out 2010.

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Biografia, gênero e literatura

Qual o lugar da mulher na história? O questionamento de Michelle Perrot reflete uma preocupação que há muitos anos vem atormentando aqueles que se dedicam a estudar as mulheres. Semelhante inquietação também pode ser sentida na opinião da escritora inglesa Virginia Woolf em seu livro A Romm Of One’s Owen (Um teto todo seu) de 1929, com o qual a escritora teceu críticas à prática historiográfica em relação às mulheres evidenciando que esta seguia uma postura parcial e insuficiente, deixando claro seu perfil eminentemente masculino e excludente (SCOTT, 1992: 75). Do lado francês, vinte anos depois, temos a

presença da filósofa Simone de Beauvoir que, em sua obra O Segundo Sexo, reafirmou

categoricamente a “incompletude” da história que, embora se pretendesse “Universal”, desconsiderava uma boa parcela da humanidade representada pelas mulheres (HUFTON, 1998: 243).

Vale notar que essas mulheres, de uma forma mais geral, estavam no bojo das críticas que incidiam sobre uma persistente tradição, de Aristóteles a Freud, passando pelos historiadores, que enfatizava a dicotomia homem/cultura e mulher/natureza marcada por estereótipos, preconceitos e uma hierarquia de valores. Essa bipolaridade era sustentada pela idéia da “desigualdade” entre os dois sexos, separando e opondo-os: o universo masculino relacionado à cultura, sinônimo de objetivo, de racional e de público, determinava a sua dita “superioridade” em relação ao universo feminino, enquadrado à natureza “reveladora” de sua suposta propensão ao emocional, ao subjetivo e ao privado. Fruto de mitos e medos próprios do gênero masculino ocidental, o feminino ficou restrito à esfera privada, vivendo por anos à sombra dos conceitos masculinos que foram atribuindo às mulheres vários papéis no decorrer da história. As relações entre gênero estabelecidas ora as faziam ficar esquecidas na história, ora as fixavam em estereótipos binários: santas ou pecadoras, Maria ou Eva, mãe ou intelectual, donas-de-casa ou prostitutas (GONÇALVES, 2006: 48-9).

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22 produtores e produtos de construções sociais. Ao se historicizar as identidades sexuais, o feminino passou a ser pensado como uma construção das relações sociais, das práticas disciplinadoras e dos saberes (discursos) instituintes, muito deles feitos pelo masculino (RAGO, 1995: 86-8).

Ao optar pelo uso do conceito de gênero na presente tese almejei analisar a maneira como a escritora se inseriu nos debates sobre a mulher e as relações de gênero no período. Minhas preocupações foram menos buscar se a literata produziu ou reproduziu imagens estereotipadas das relações entre mulheres e homens e mais entender os recursos de que lançou mão e os sentidos próprios que procurou imprimir ao construir tal imagem ajustada aos debates e categorias que norteavam seu projeto literário. Os romances de Heloneida Studart foram tomados como uma tentativa de compreender, a partir do estranhamento existente entre o narrador e a realidade, as mediações – sociais, políticas e artísticas – postas em um momento onde a “forma real é transformada em forma literária, isto é, em principio de construção de um mundo imaginário” (SCHWARZ, 1989: 142), sendo possível apreender, desse ponto de partida, o vínculo entre a dinâmica estética e a dinâmica social.

Acompanhar parte da trajetória da escritora e a mudança de sua postura enquanto escritora em função dos lugares de onde ela falava tendo o gênero como instrumento analítico no período, serviu para que se pudesse observar as transformações na forma de abordar o tema mulher e relações de gênero vivenciadas pela escritora e espelhadas em seus livros. Com isso, a presente tese buscou provar que, ao longo de sua trajetória enquanto romancista, Heloneida foi desenvolvendo suas formulações teóricas sobre o lugar social da mulher a partir tanto de sua vivência subjetiva, quanto a partir dos contatos que travou, a saber: a Casa de Juvenal Galeno, A Ala Feminina da Casa de Juvenal Galeno, O SESI, o Partido Comunista, o movimento feminista e o Centro da Mulher Brasileira. Do enlace, vivência subjetiva e lugar social, teriam nascido formulações teóricas não só para seus romances como também para sua posterior prática política em prol da mulher.

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23 ao que era minoria e no que tangia à situação da mulher. Sobretudo a mulher apresentada no primeiro romance analisado como bicho doméstico, uma prenda da família que não tinha voz. E é buscando mostrar a necessidade do feminino romper com isso que os livros de Heloneida da década de 1950, ainda que de maneira muito polarizada e até maniqueista, buscaram questionar a necessidade da ampliação dos papéis, dos lugares sociais femininos e da assimilação por parte dessas mulheres da nova realidade que pressupunha a ruptura com aquilo que até então lhes fora introjetado, uma ruptura com uma determinada representação de ser mulher, representação esta muitas vezes, comprada e assumida pelas próprias mulheres.

Por isso, a busca das mulheres por seu próprio eu tenha sido tão enfática para a autora, uma busca que também é dela. É bom lembrar que nesse momento Heloneida chegou ao Rio de Janeiro e passou a escrever romances deixando para trás a criação da mulher preparada para o casamento, assumindo a postura de uma intelectual que nos romances desse primeiro período surge como aquela que, diferente de outras pessoas, conta não uma história qualquer, mas uma história que toque o leitor e o faça se apaixonar. Uma determinada história que abale e perturbe, uma história das mulheres –e aí incluo a própria autora- descobrindo-se donas de si e capazes de escreverem a História.

Uma vez assumida a conscientização, a mulher, no projeto literário de Heloneida Studart, teria capacidade de agir sobre a sociedade, modificando-a, tornando-a mais igualitária. Ideia que encontrei fortemente expressa nos romances da década de 60. A literatura de Heloneida assumiu a partir deste ponto um caráter mais proletário fruto da sua própria inserção no Partido Comunista. Em grande medida, sua escrita direcionou-se para personagens e enredos que destacavam nem tanto a ação dos “proletários” em si, mas principalmente a dos “comunistas” e dos seus simpatizantes, de qualquer origem ou condição de classe.

No entanto, é interessante mencionar que, para além dos romances intitulados pela autora de trilogia da tortura (O Pardal É Um Pássaro Azul, O Torturador Em Romaria e O Estandarte Da Agonia)12 não há menção à ditadura militar no romance analisado até porque

compreendo que o que ela procurou trabalhar foi a opressão mais geral e não uma opressão pontual. E isso refltiu na própria mudança de postura da escritora com relação ao feminino. Ela passou a compreender a opressão sofrida pela mulher como uma das muitas formas de opressão social. Mais que a luta homem versus mulher, ou a luta interna da própria mulher, o

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24 feminino tinha uma luta contra todo um discurso difuso e arraigado na sociedade, inclusive no próprio Partido Comunista.

Foi a percepção de que a hierarquia entre os sexos não era somente um problema externo mas também interno ao movimento socialista, que a meu ver, levou Heloneida à dupla militância, isto é, a militância em um movimento feminista autônomo concomitante com a militância no partido. Contudo, em pouco tempo as duas militâncias foram se fundindo e transformando em uma militâcia puramente feminista. Esta simbiose ficou nítida para mim na própria forma de escrever o romance. Se antes encontrei jargões regionalistas ou socialistas, se os personagens secundários possuiam papéis que encadeavam conflitos que rodeavam suas protagonistas; no romance da década de 70 tudo isso se perde. A linguagem é, na maioria das vezes, escrachada beirando ao deboche a tudo que está fora da pretensa “normalidade” na sociedade. Há uma maior liberdade de expressão da protagonista que passa a deter o predomínio da narrativa. São seus pensamentos, ações, sentimentos confusos que imperam não deixando espaço, como nas outras décadas, para os personagens secundários diluídos na narrativa. É, enfim, a voz da mulher que é ouvida. Uma voz que não tem que ser controlada. Livre para apresentar suas inconcretudes, suas indecisões, medos e receios.

A influência dos lugares de onde se fala também se fez sentir, muitas vezes, durante a leitura dos romances na voz narrativa empregadapor Heloneida que nos romances da década de 50 faz a voz da escritora emergir de vários personagens, sobretudo, daqueles mais intelectualizados que se colocam a analisar o contexto onde estão imersos com julgamentos carregados de posturas binárias, como certo ou errado, bom ou mal. No entanto, é a partir do período seguinte que vemos as protagonistas dos romances heloneidianos assumirem a feição do alter ego da autora. O que necessariamente não quer dizer que ao longo das décadas as protagonistas carreguem toda a vivência real da escritora, muitas vezes, como no caso das protagonistas da década de 70, que representem aquilo que a escritora gostaria de ter se tornado. Desta maneira, a observação da voz narrativa também contribuiu para que eu desse forma ao projeto literário da escritora e com isso, percebesse sua gradual mudança de uma escritora feminina para uma escritora feminista.

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25 que ao entorno da discussão sobre as relações de gênero, fossem aglutinando várias outras representações e condições sociais, permitindo à autora tecer críticas a outros problemas da sociedade.

Todas essas observações não podem perder de vista que a verossimilhança de um romance não depende da possibilidade de comparar o mundo do romance ao mundo real. Depende, antes, da organização estética do material ficcional. Dito de outro modo, o aspecto mais importante para o estudo do romance é o que resulta da análise de sua composição (e não de sua comparação com o mundo): “mesmo que a matéria narrada seja cópia fiel da realidade, ela só parecerá tal na medida em que for organizada numa estrutura coerente” (CÂNDIDO, 2004:35).

Empreender, desta maneira, um estudo sobre os romances de Heloneida como foi feito nessa tese nos pareceu relevante por poder trazer contribuições tanto para os estudos da relação de gênero, como também para a história da literatura feita por mulheres. Este objetivo se deveu porque coaduno com a afirmação da historiadora Michelle Perrot de que “da História, muitas vezes a mulher é excluída” (PERROT, 1988), sobretudo, no que diz respeito a sua escrita.

Como ponto de partida, para a análise dos romances foi fundamental estabelecer a relação da autora com o contexto político, social e institucional que a circundava. Tal argumento decorre do fato de se considerar que em cada exposição sobre a realidade social há não somente uma imagem dessa realidade, está presente, também, uma interpretação da mesma, um estilo de pensar a sociedade e seu jogo de forças. Como conseqüência, “ao descobrir as direções possíveis da realidade social, o pensamento também constitui essas direções. A realidade nunca permanece inocente do seu conceito” (IANNI, 1993: 42).

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26 A partir desta constatação, um trabalho - ainda que não se dedique diretamente a trajetória de um pessoa, mas que de alguma forma perpassa por essa como o presente - deve estar sempre atento aos seguintes problemas: a relação entre normas e práticas, entre indivíduo e grupo, entre determinismo e liberdade, ou ainda entre racionalidade absoluta e racionalidade limitada (LEVI, 2006:179).

Nesse sentido, o método biográfico, referenciado por Bourdieu, não pode ser qualificado como “ilusório” tendo em vista a força limite dos laços normativos, dos mecanismos sociais sobre as iniciativas individuais. Da mesma forma, a história de vida –ou a parte dela tomada pela trajetória- não pode ser “reconstituída” a partir de um “relato coerente de uma seqüência de acontecimentos, com significado e direção” (BOURDIEU, 2006:185), mas sim tendo por base exatamente aquilo que Pierre Bourdieu percebeu ser feito no romance moderno: o imprevisto, fora de propósito, o aleatório o que resulta em personagens históricos, que como nós, não são modelos de coerência, de continuidade e de racionalidade. Também como nós, as tensões entre o vivido e o que foi imaginado/desejado são fundamentais em suas vidas. Portanto, estamos diante da crítica à “ilusão biográfica” de Pierre Bourdieu, para quem (BOURDIEU, 1996: 184) o enredo de uma vida não é uma trajetória retilínea em direção a um fim determinado manifestado desde os momentos mais remotos da infância do personagem.

A trajetória de um sujeito, longe de ser detentora de uma constância verdadeiramente inatingível, é fracionada, múltipla e comporta vários “eus” (MALATIAN, 2011: 26). Cabe ao pesquisador a tarefa de tentar recuperar o drama da liberdade neste sujeito que - como em qualquer pessoa - provocou incertezas, oscilações e incoerências. Parodiando Thompson, é necessário expressar o “fazer-se” do personagem ao longo de sua existência (Thompson, 1987) e é isso que pretendi ao não biografar Heloneida Studart, mas sim, seguir sua trajetória intelectual a partir da produção literária.

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27 necessário discutir a especificidade da escrita feminina. A tese visou elaborar uma trajetória da escritora que – segundo Helenice Silva (2002: 22) - circunscrevesse a narração de uma vida no interior de um espaço social preciso e/ou de um contexto histórico determinado, procurando salientar a trajetória estético-política da autora por intermédio dos cruzamentos entre gênero e biografia.

A pesquisa acerca das obras literárias de Heloneida ao passar por essa noção de trajetória quis atrelar o indivíduo ao seu contexto, sem no entanto, isolá-lo. O contexto não apenas se refere ao geral, mas também a suas relações pessoais, profissionais, sociais, etc. Se levaramos em consideração tais relações, entramos na discussão indivíduo versus sociedade, tão bem trabalhada pelo sociólogo Norbert Elias que nos indaga sobre o conceito de sociedade, chamando a atenção para uma sociedade dos indivíduos (ELIAS, 1994). Essa relação indivíduo-sociedade pode ser pensada e apropriada de inúmeras maneiras. Outro ponto que esta relação acarreta é àquela do indivíduo e o contexto vivido por ele. Todos esses elementos se tornam importantes para que não se caia em uma busca por uma linearidade quando tratamos da vida de um ser. Pretendo demonstrar, portanto, como conceber essas várias vertentes traduzidas pela trajetória não linear através da noção de cultura política, apropriada pela História Política Renovada.

A noção de trajetória desenvolvida por autores como Giovani Levi, Pierre Bourdieu e Jaques Le Goff, e as idéias de micro e macro utilizadas pelo sociólogo Daniel Cefai, de certa forma se encontram (CEFAI, 2001). Acredita-se que o micro, representado pelo próprio ator e o macro pelo contexto o qual ele pertence são indissociáveis, e que pensados separadamente não fazem sentido. Ainda segundo Daniel Cefai, é possível pensar o micro, não apenas como uma redução de escala, e que é plausível fazer o estudo sobre este indivíduo. Tal estudo, ajuda na compreensão de como os atores se relacionam, colaboram, expressam ou solucionam seus problemas. O indivíduo, nessa perspectiva não deve, contudo, ser isolado. É um estudo do micro, que permite perceber o ambiente em que o ator esteve envolvido mas que, ao mesmo tempo, nos dá uma noção estrutural.

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28 condicionantes sociais e culturais mais amplos e marcado por constrangimentos de várias ordens: jogos de poder, lutas classificatórias, disputas quanto ao modo legítimo de produzir conhecimento, relações de gênero assimétricas, polêmicas públicas que ressoam em dimensões inesperadas da vida pessoal dos intelectuais que as promovem, padrões distintos de carreira e de sociabilidade (PONTES, 1996: 11). Essas dimensões, como em outros universos sociais, tendem a situar-se fora da consciência dos agentes empíricos, no caso os intelectuais, envolvidos e modelados por elas. No caso específico de Heloneida podemos pensar no “amadrinhamento” de suas obras por Rachel de Queiroz e Alceu Amoroso Lima e na sua associação ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), além de sua tortuosa relação com seu pai e sua mãe, duas figuras centrais na sua produção literária. Partindo do pressuposto de que idéias e obras estão ancoradas em processos sociais concretos e contextos intelectuais precisos, analisei a escrita de Heloneida sobre o ser mulher a partir da recuperação de sua experiência cultural, social, intelectual.

Portanto, como fruto dessa opção teórica a tese foi divida em três capítulos cada qual analisando uma obra da escritora dentro da década correspondente e do lugar social a partir do qual ela fala. O primeiro capítulo intitulado A busca do eu feminino analisou a primeira obra escrita por Heloneida Studart, A Primeira Pedra, buscando destacar sua busca por uma construção do eu feminino ainda sob influência de sua passagem pela Casa de Juvenal Galeno. Buscou-se também trabalhar com a ideia de que há nesta obra, o que Roger Bastide

disse acerca das obras de Jorge Amado13, uma continuidade descontinuada com a corrente

regionalista do Nordeste (em função de uma linguagem crua, no modo de narrar, no repertório temático) que a possibilitou criar uma identidade feminina ao mostrar as relações de gênero predominantes na sociedade nordestina através da porta que é a sociedade cearense. Para a feitura deste capítulo lancei mão não só do romance já mencionado e de uma vasta bibliografia, como também das entrevistas concedidas a Roselane Neckel e ao Núcleo Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense. Somado a este material obtive Atas, Cartas, Livros publicados pela Ala feminina da Casa de Juvenal Galeno bem como o material referente ao Barão de Stuart (Biografia, autobiografias, participação no Intituto Histórico Geográfico do Ceará e Cartas trocadas com Capistrano de Abreu) oriundos do acervo do

Arquivo Público do Estado do Ceará14.

13 BASTIDE, Roger. Sobre o romancista Jorge Amado. In: Vários autores: Jorge Amado povo e terra: 40 anos de literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1972.

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29 No capítulo seguinte, A mulher e a sociedade, partindo da análise do livro A Culpa, busquei relacionar a obra em questão com a atividade mais intensa da autora no Partido Comunista destacando a predominância de uma visão da mulher sobre a sociedade. Pretendi pensar sobre as inferências da opção político-partidária em sua obra onde as personagens são investidas de realizar uma transformação social que criaria um substrato para uma visão mais igualitária nas relações de gênero. Entrelacei os dados desse período presente nas entrevistas

com o livro analisado e um ensaio Mulher Brinquedo do Homem escrito pela autora no

mesmo período.

Se no capítulo anterior as mulheres teriam como missão uma revolução social após a década de 70 e o contato da autora com as teorias feministas via participação tanto no movimento feminista quanto no Centro da Mulher Brasileira, a transformação que se daria seria da própria mulher que, então, poderia vir a revolucionar e a transformar seu entorno.

Partindo dessa ideia, no terceiro capítulo, A Revolução via feminismo, analisando a obra A

Deusa Do Rádio E Outros Deuses, procurei demonstrar também que nessa longa trajetória a escrita da autora não só apontou para a transformação da postura da mulher frente a sociedade como a própria autora se revolucionou a sair de uma escrita feminina para uma escrita feminista. O capítulo foi redigido lançando mão do livro analisado conjugado com dois

ensaios publicados pela autora no período: Mulher Objeto De Cama E Mesa e o artigo

Pequena História do Feminismo no ano internacional da mulher pertencente ao Livro de

Cabeceira da Mulher. Além disso, também encontramos diluídas na escrita do capítulo as informações oriundas das entrevistas dadas por Heloneida.

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CAPÍTULO 1- A BUSCA DO EU FEMININO

Como enunciado na introdução do trabalho, este capítulo tem por objetivo trazer à

discussão a primeira das três obras da autora a serem estudadas. Ainda que minha análise

tome a cronologia dos romances como uma referência da organização da tese, procurei privilegiar um caminho que fizesse com que as três obras se encontrassem, esquadrinhando-as internamente, mas também levando em conta as especificidades do meu objetivo de pesquisa. Feita esta consideração inicial, partamos para a análise do primeiro romance de Heloneida Studart, o qual foi publicado em 1953 pela editora paulistana Saraiva e intitulava-se A Primeira Pedra. Este livro foi escrito ainda quando a autora intitulava-se encontrava em Fortaleza (CE). Neste sentido, guardava fortes influências dos escritos produzidos por ela enquanto

membro da Ala Feminina da Casa de Juvenal Galeno15.

1.1- A Casa de Juvenal Galeno

A Casa de Juvenal Galeno foi criada em 27 de setembro de 1919 por Henriqueta Galeno, filha de Juvenal Galeno, como homenagem dos familiares ao patriarca da família. Inicialmente, a casa pretendia seguir os padrões dos salões literários franceses, constituindo-se em um palco de recitais, palestras, conferências, números de canto, audições ao piano, concertos de violões e danças. Tais eventos se realizavam a propósito de qualquer ocasião: despedidas, homenagens, aniversário de membros do círculo, lançamento de livros e recepção a visitantes ou intelectuais que tornavam à capital cearense, depois de longa ausência. Tudo era motivo para as sessões literárias. No entanto, a partir de meados da década de 1920 a Casa passou a abrigar os poetas que ainda não tinham nome conhecido nos meios cearenses e, sobretudo, a abrigar aqueles que desejassem desenvolver uma representação de Brasil e de cultura Nordestina. A Casa, como era chamada pelos membros mais assíduos nas reuniões, foi

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31 frequentada –ao longo dos anos- por nomes como Mário da Silveira, Dolor Barreira, Filgueiras Lima, Euclides da Cunha, Patativa do Assaré, Rachel de Queiroz, Demócrito Rocha e Quintino Cunha (Livro de Atas das Reuniões da Casa de Juvenal Galeno, 1925-1940, Casa de Juvenal Galeno, Foraleza, p. 4, 8-17).

Heloneida Studart aproximou-se da Casa de Juvenal Galeno nos fins da década de 1930 e início da de 1940, quando passou a participar da agremiação, primeiro como ouvinte das palestras e sarais (1936), e depois como membro da Ala Feminina (1942). A Ala foi criada por Henriqueta Galeno em 1936 com o objetivo de congregar a cultura da mulher cearense, que tinha na própria Henriqueta, um de seus nomes mais representativos. A maioria das mulheres membros da agremiação provinha de famílias abastadas e tradicionais da região e já possuia alguma ligação com as letras. Pode-se tomar como exemplo a própria Heloneida que embora, na maioria de suas entrevistas negue a família materna e atribua seus dotes literários à família do pai, era sobrinha neta do Barão de Studart um dos nomes da historiografia cearense e uma das vias de acesso à impressão de livros em meados de 1890 já

que o mesmo mantinha uma tipografia que levava seu nome (AMARAL, 2002)16.

Até 1942, o grupo se reunia apenas em ocasiões especiais, a partir de novembro desse mesmo ano, o grupo passou a se reunir todos os domingos com objetivo de discutir a situação da mulher cearense. Entre os nomes das primeiras participantes estão Henriqueta Galeno, Júlia Galeno, Cândida Maria Santiago Galeno (Nenzinha Galeno), Vanda Rita Othon Sidou, Eurídice de Sales Pereira, Aglaeda Facó, Lireda Facó, Maria Stela Correia Barbosa, Olívia Sampaio Xavier Rodrigues, Augusta Campos; Suzana Amaral, Geraldina Amaral; Maria de Lourdes Gondim; Fernanda Brito e Heloneida Studart. Em 1949 as sócias da Ala feminina lançaram a revista “Jangada”, que circulou até setembro de 1954, servindo como meio de divulgação, não só das atividades da Ala, como de todos os empreendimentos da

16 É interessante observar em Heloneida Studart a necessidade de se afirmar escritora por si própria e uma escritora voltada para o povo, para os excluídos e para o subversivo. Disto infiro vir seu discurso de reprovação da família materna vista por ela como “aristocrática”, “presa a pequenas questões” e seu constante atrelamento a família do pai os Bezerra de Menezes cujo nome está em sintonia com as causas abolicionistas, mas que também –vale ressaltar- faziam parte de uma aristocracia nordestina. Contudo, essa construção de si fica ainda mais interessante e aponta para um projeto literário e, senão, de vida, quando observamos que mesmo casada Heloneida continua assinando Studart. Segundo a escritora, em entrevista para o Núcleo de Memória Fluminense, teria –em função de sua origem- sido posta em uma espécie de encruzilhada- que a meu ver foi bem aproveitada pela escritora que soube manejar seu capital simbólico com maestria. Para mais ver: STUDART, Heloneida. Heloneida Studart (depoimento, 1999). Rio de Janeiro, CPDOC/ALERJ, 2003 e STUDART, Heloneida. Entra menino, Xô galinha e sim senhor! (depoimento, 2005). Núcleo de pesquisa Revolução do gênero: apropriações e identificações com o feminismo (1964–1985). Revista Estudos Feministas, 2008.

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instituição. Além disso, a revista tinha por objetivo divulgar o nome e os trabalhos das

escritoras cearenses, mesmo das que não participavam do grupo (Livro da Ala. Fortaleza: Casa de Juvenal Galeno,1972).

O que motivava estes escritores, e mesmo Heloneida, era a visão de que a literatura ocupava um lugar privilegiado na compreensão do desenvolvimento e da diferenciação da vida intelectual brasileira. Desta maneira, a representação do Brasil na literatura que se buscava discutir e construir na Casa transitava, grosso modo, da tentativa de autonomização de um todo (um país, uma nação) composto de diferentes regiões e suas peculiaridades, para a exaltação particular de cada uma de suas partes, como maneira mais obstinada de se afirmar o que era ser genuinamente brasileiro (NUNES,1998).

Assim, o que Heloneida presenciava nos saraus e reuniões literárias da década de 30 era uma discussão produzida por uma geração de romancistas ideologicamente semelhantes e

voltados para os problemas sociais e econômicos do Norte17. Estes autores, seguindo uma

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33 tendência que vinha desde o Movimento Regionalista e Tradicionalista, organizado por Gilberto Freyre que quando retornou do exterior, promoveu o Congresso Regionalista, em

fevereiro de 1926, do qual resultou o decantado Manifesto Regionalista18, impuseram uma

nova maneira de pensar a descontinuidade regional do Brasil, pondo em foco os grandes problemas sociais que perturbavam, não só sua região, mas o sistema político brasileiro (MEDEIROS, 2010:4).

Nesse sentido, o Regionalismo é compreendido e analisado como uma discussão

estética, política e social que, embora date dos anos de 192019, apenas conseguiu ganhar

estava em debate e em construção. A invenção da categoria Nordeste iniciada pelo movimento proposto por Gilberto Freyre decantou do processo de consagração, na década de 1940, da roda de intelectuais formada a partir da Livararia e Editora José Olympio. A partir de então, o Nordeste como categoria catalisadora do reconhecimento das obras “autenticamente brasileiras” seria retroalimentado por movimentos políticos e sociais, como o liderado por Celso Furtado por meio da Sudene (HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque. O descobrimento do futebol: modernismo, regionalismo e paixão esportiva em José Lins do Rego. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: PUC, Departamento de História, 2003, p. 14-16).

18 O Manifesto Regionalista proposto por Gilberto Freyre tinha uma visão de que não havia “região no Brasil que excedesse o Nordeste em riqueza de tradições ilustres e em nitidez de caráter. Vários dos seus valores regionais tornaram-se nacionais depois de impostos aos outros brasileiros menos pela superioridade econômica que o açúcar deu ao Nordeste por mais de um século do que pela sedução moral e pela fascinação estética dos mesmos valores”. A solução proposta pelos regionalistas nordestinos estaria, segundo Freyre, na articulação inter-regional, “pois de regiões é que o Brasil, sociologicamente, é feito, desde os seus primeiros dias. Regiões naturais a que se sobrepuseram regiões sociais”, desse modo, as ações dos governos central e estaduais devem ser pensadas inter-regionalmente porque “somos um conjunto de regiões antes de sermos uma coleção arbitrária de ‘Estados’”, logo é regionalmente que o Brasil deve ser administrado sob uma só bandeira e um só governo, pois Regionalismo não quer dizer separatismo [...] Regionalmente deve ser estudada, sem sacrifício de sua unidade, a cultura brasileira, do mesmo modo que a natureza; o homem do mesmo modo que a paisagem. Regionalmente devem ser considerados os problemas de economia nacional e os de trabalho. Em síntese, formula-se uma proposta que justifique a coesão regional, a qual, por sua vez, possui no aspecto homogeneizador da região seu mais forte argumento funcional. Desse modo, a partir da identidade espacial e sob o predomínio do Nordeste açucareiro é que foi construída a defesa das Regiões (FREYRE, Gilberto.

Manifesto Regionalista, 1976, p. 57).

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34 expressão nacional na década seguinte em razão, especialmente, das consequências políticas da Revolução de 30 a qual buscou dar visibilidade à diversidade existente no país. Isto é, a partir de então, elites regionais (que não as de São Paulo, nem as de Minas Gerais) se fazem ver e insistirão, principalmente por meio da literatura, na diversidade regional como modo de realizar uma operação pela unidade nacional (e para a compreensão desta). Importante notar que alguns dos impasses e das disputas colocados ao longo dos anos 20 serão sintetizados a partir de 30, momento no qual os regionalistas tentam operar uma síntese entre as tensões políticas, econômicas e culturais vividas no período anterior e fortemente influenciadas pelos acontecimentos da Revolução de 1930. Tal síntese se faz necessária diante da aceleração do processo de industrialização e urbanização nacional (fruto da política do governo de Getúlio Vargas a qual também formula uma nova concepção do rural e de seu papel na formação nacional) e da progressiva decadência econômica do Nordeste (ARRUDA, 2012: 193-196) .

As tensões vividas nos anos de 1930 derivam, em larga escala, da crise do pacto oligárquico vivida desde o final dos anos de 1920 e intensificada depois de 1929 com a grande crise do café. Este período também assiste ao acirramento do embate entre a centralização ou a descentralização da República (debate no interior do qual os regionalistas se inserem com veemência). Neste contexto, explode o movimento político - militar conhecido com Revolução de 30. No Nordeste, a Revolução de 30 teve como foco inicial o estado da Paraíba. O confronto entre os paraibanos e o governo federal vinha desde a época da campanha da Aliança Liberal para a presidência da República, quando João Pessoa, então presidente do estado, concorreu como candidato a vice na chapa encabeçada por Getúlio Vargas (CÂNDIDO, 1987) que teve como resultado político - administrativo a centralização do poder.

Nesse sentido, os anos 30 correspondem a um momento de reordenação dos muitos elementos da vida política e econômica do País, bem como à continuidade de alguns outros. Levantamos a hipótese de ser este o contexto que atribui sentido à recuperação do passado patriarcal pela literatura, sobretudo, por autores fora do eixo Rio-São Paulo, no caso da presente tese de autores cearenses que reagindo a favor ou contra as reformas urbanas empreendidas no Recife, criaram uma reflexão que permitiu abrir a consciência sobre um

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35 espaço em crise, sobre uma realidade social na qual a presença cada vez mais perceptível do componente urbano passou a conviver com os traços da sociedade patriarcal nordestina. Temos, enfim, a tradição cultural do Nordeste agrário permeando o espaço urbano.

Sérgio Miceli, em Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil (1920-1945), atribui à

crise de hegemonia das oligarquias (para a análise dele principalmente a de São Paulo, na figura do Partido Republicano Paulista) o elemento propulsor de expansão do trabalho intelectual no início do XX. A pulverização do poder oligárquico teria permitido a “livre” circulação de outras doutrinas políticas, a constituição de partidos, facções e agremiações que necessitavam de intelectuais para a legitimação de seus propósitos. Ao mesmo tempo, e com o mesmo objetivo, as publicações se diversificavam e as instituições culturais se ampliavam, abrindo mais campo para a ação da intelectualidade do período (MICELI, 1979). Desta maneira, os intelectuais oriundos da própria oligarquia em conflito é que atuavam nestes novos espaços culturais e políticos o que, guardada as devidas proporções, ocorreu no Nordeste, e no caso específico em análise com os frequentadores e membros da Casa de Juvenal Galeno.

Assim, os membros da Casa, ao denunciarem situações típicas de caráter social de uma região, contribuíram, com as suas obras, para uma literatura social neorealista e neonaturalista que se afirmou nacionalmente e que registrava não só a crise do capitalismo, como também era dotada de caráter antifascista. Conscientes de uma criação literária a partir da complexidade social brasileira, os intelectuais que participavam da Casa na década de 1930 revelavam a decadência da civilização rural do Nordeste, da economia da cana-de-açúcar e do cacau (MEDEIROS, 2010:3), contexto inclusive presente na obra a ser analisada neste capítulo.

As obras lá produzidas expressavam uma nova maneira de encarar a realidade humana e social ao aproximar a literatura da sociologia. Almejavam um retrato mais eficaz da realidade. Colocavam o homem e as relações humanas em foco instaurando um

questionamento social que alcançava importância não só documental como também estética20,

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36 na qual a aproximação com a linguagem oral e a construção de um narrador popular, pretende, pois, não criar uma língua brasileira, mas sim trazer à tona o escrever próximo à tradição oral (BASTOS, 2009: 289-290).

Ao formular um projeto estético baseado nesta tradição, os regionalistas dão o passo seguinte, qual seja, propor a recuperação das tradições brasileiras em suas inúmeras manifestações na dança, na música, na culinária, etc., trata-se de conduzir o que até então se considerava folclore para o nível explicativo da formação nacional. Tradição e região seriam, enfim, a síntese do projeto ideológico do Regionalismo nordestino. A partir desses dois elementos o Brasil deveria ser analisado, percebido e administrado. Nota-se que a recuperação da tradição nordestina possui o duplo intuito de valorizar a região como a parte mais autêntica do Brasil, bem como o de reivindicar para o Nordeste uma tradição e, portanto, uma história outra que aquela da decadência vivida pela região. Ou seja, a modernidade nordestina não estaria em elementos como a urbanização e a industrialização, mas sim na plasticidade de suas tradições e de seus valores.

Assumindo uma feição de testemunho e denúncia social, de protesto e luta contra as injustiças, os escritores deste grupo abordaram o problema das secas que obrigavam milhares de retirantes a morrer pelos caminhos que conduziam a regiões mais férteis; o dos engenhos na produção da cana-de-açúcar e do cacau; do cangaço com crimes atrás de crimes; do fanatismo religioso provocado pela ignorância, doença e fome do homem que vira vidente ou profeta; do esmagamento dos latifúndios; dos grandes coronéis; da exploração do homem pelo homem. O escritor não era visto como intelectual pura e simplesmente. Mais do que isso, era alguém capaz de compreender o discurso da opressão e plasmá-lo na forma de conhecimento (MEDEIROS, 2010: 4-5).

Desta maneira, os membros da Casa de Juvenal Galeno se aproximaram muito do

romance de 3021, o que se impôs no panorama literário brasileiro não só como renovador da

engenhos que, agora, “profiteuirs venturosos administram de longe, por trás de firmas comerciais” (FREYRE, Gilberto. Manifesto Regionalista. In: O Manifesto Regionalista. Recife, 1976.p.76.p.277)

Referências

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