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O gosto dominante como gosto tradicional: preferências e aversões estéticas das classes altas de São Paulo.

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Academic year: 2017

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De modo geral, estudos sobre a elite brasileira con-temporânea por um lado tendem a abordagens em termos das variáveis socioeconômicas que influenciam a mobilidade social, ocupacional e/ ou financeira1, e por outro acentuam aspectos ligados ao consumo vis-to de forma ampla2. Baseado em trinta entrevistas semidiretivas com membros das classes altas de São Paulo e em críticas culturais veicu-ladas pela imprensa paulistana contemporânea, este artigo discutirá algumas visões que banqueiros, colecionadores de arte, fazendeiros,

rentiers, embaixadores, filantropos, grandes empresários, industriais, altos executivos, construtores etc. constroem de si mesmos e dos ou-tros em suas preferências estéticas declaradas, as quais também con-tribuem para formar a “realidade” dessas elites.

O GOSTO DOMINANTE

COMO GOSTO TRADICIONAL

Carolina Pulici

RESUMO

Baseado em entrevistas semidiretivas com frações das classes altas de São Paulo e em críticas culturais veiculadas pela imprensa paulistana contemporânea, este artigo discute algu-mas visões que banqueiros, colecionadores de arte, embaixadores, fazendeiros, rentiers, filantropos, grandes empresá-rios, altos executivos, industriais etc. constroem de si mesmos e dos outros em suas preferências estéticas declaradas. A análise de seus juízos de gosto em matéria de arquitetura, cinema e artes plásticas aponta para o apego aos valores artísticos tradicionais.

PALAVRAS-CHAVE: gosto; classes altas; tradicionalismo estético; São Paulo.

ABSTRACT

Based on semi-directive interviews with wealthy people groups of São Paulo and on cultural critics from this city’s contemporary press, this article discusses some visions that bankers, art collectors, ambassadors, farmers, rentiers, philanthropists, entrepreneurs, powerful businessmen, industria-lists, etc. create of themselves and of the other groups through their manifest aesthetical preferences. The analysis of their preferences in architecture, cinema and paintings indicates a general lack of vanguard taste.

KEYWORDS: Taste; high classes; aesthetical traditionalism; São Paulo.

[*] Uma primeira versão deste texto foi exposta no colóquio Tren-te ans après “La Distinction”/ Thirty years after “Distinction”, ocorrido em 2010 em Paris sob os auspícios do Ministério da Cultura, Sciences Po/ cnrs e Paris 1-ehess-cnrs. Tanto a comunicação ao congresso quanto o artigo aqui apresentado consti-tuem resultados parciais da minha tese de doutorado centrada nos pro-cessos de distinção social pelo gosto com ocupantes das altas posições na hierarquia social da cidade de São Paulo. Pulici, Carolina Martins. O charme (in)discreto do gosto burguês paulista: estudo sociológico da

distin-Preferências e aversões estéticas

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ção social em São Paulo. São Paulo: tese de doutorado em Sociologia, usp, 2010.

[1] Ferreira, Marcelo Costa. “Per-meável, ma non troppo? A mobilidade social em setores de elite, Brasil — 1996”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 16, n. 47, 2001; Medeiros, Marcelo. O que faz os ricos ricos: o ou-tro lado da desigualdade brasileira. São Paulo: Hucitec/ Anpocs, 2005.

[2] Lima, Diana Nogueira de Oli-veira. “Ethos emergente: notas et-nográficas sobre o sucesso”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 22, n. 65, 2007.

[3] Conferir, a esse respeito, Bour-dieu, Pierre. La distinction: critique so-ciale du jugement. Paris: Minuit, 1979; Le Wita, Béatrix. Ni vue, ni connue. Approche ethnographique de la culture bourgeoise. Paris: Éditions de la Mai-son des sciences de l’homme, 1988; Pinçon, Michel e Pinçon-Charlot, Monique. Voyage en grande bourgeoi-sie. 2ª ed. Paris: Quadrige/ puf, 2005; Pulici, C. O charme (in)discreto do gosto burguês paulista, op. cit.

[4] Medeiros, M. O que faz os ricos ricos: o outro lado da desigualdade bra-sileira, op. cit.

[5] Mesmo que não se possa falar numa homologia inequívoca entre o sistema de posições sociais e o espa-ço geográfico da cidade de São Paulo, pode-se deduzir que lugares como Jar-dim América, JarJar-dim Europa, JarJar-dim Paulistano, Jardim Paulista, Cidade Jardim e Alto de Pinheiros concen-tram parte de uma “burguesia” mais antiga, da mesma forma que alguns residenciais de Alphaville constituem lugares emblemáticos de grupos que ascenderam economicamente de for-ma tardia. Em sua análise das singula-ridades da urbanização da metrópole paulista, Paulo Garcez Marins mostra como São Paulo sofreu experiências de segregação social bem mais mar-cantes do que outras grandes capi-tais brasileiras republicanas e como esse zoneamento social dos bairros foi radicalizado pela experiência dos bairros-jardins. Cf. Marins, Paulo Cé-sar Garcez. “Habitação e vizinhança: limites da privacidade no surgimento das metrópoles brasileiras”. In: Histó-ria da vida privada no Brasil, vol. 3. 5ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2002 [1998], p. 180. Como não seria possível descrever minuciosamente as condições

em que se desenvolveu o trabalho de campo com informantes abasta-dos que impõem sérias resistências ao contato e tendem a dominar a situação da entrevista3, me permito uma digressão a fim de esclarecer de forma sintética quais foram os parâmetros de seleção dos entrevis-tados, pois, feita a opção de análise de um único grupo social, a questão de como discernir os pontos precisos em que ele começa e termina se impõe inevitavelmente. Diante da impossibilidade prática de introdu-zir na investigação fatos de estrutura — como os rendimentos de ope-rações financeiras e valores de patrimônio4 —, formei uma “coleção de casos” através do critério bairro de residência5, sempre complementa-do pelos indicacomplementa-dores profissão, nível e características da escolaridade (instituições e natureza dos estudos), tempo de pertencimento à posi-ção atual (trajetória social dos bisavós e dos avós paternos e maternos, dos pais, do cônjuge e dos sogros) e montante aproximado do capital econômico. Ainda que os entrevistados dispusessem de renda familiar mensal superior a oitenta salários mínimos, a escolha foi feita caso a caso a fim de evitar a seleção de um hipotético indivíduo “classe A” pos-sivelmente afastado dos altos estratos sociais6. A imensa dificuldade de obtenção de informantes afortunados e sua precária delimitação empírica inviabilizaram o cumprimento das exigências operacionais de constituição de uma amostra, fazendo dessa “coleção de casos” ma-terial que dá suporte a uma análise exploratória que buscou formar al-gum conhecimento de uma classe praticamente invisível para as ciên-cias sociais brasileiras7.

Em estudo sobre os gostos da elite gerencial britânica, Alan War-de e Tony Bennett salientaram o quanto o comprometimento com a causa da “Cultura” funcionava como meio de reconhecimento mútuo e facilitador de relações sociais no interior desse estrato8. Nessa linha de juízo, o patrocínio, gerenciamento e/ou participação em atividades culturais forneceriam uma oportunidade de aquisição e ostentação de capital social, o que implicaria reconhecer que a reprodução das classes dominantes continua se valendo dos itens simbólicos da cultura “le-gítima” para poder existir. A ocupação de altas posições na hierarquia social predisporia, assim, na visão dos autores, ao contato com a “alta cultura”. Do ponto de vista de pesquisas realizadas com os segmen-tos dominantes franceses, Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot também veem na promoção das artes um pretexto para cerimônias so-ciais que permitem a um público seleto afirmar seu pertencimento aos altos círculos, e parecem convencidos de que “a sociabilidade munda-na é uma forma eufemizada e denegada da mobilização da classe”9.

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artis-[6] As informações requeridas por minha pesquisa só poderiam ter sido obtidas através de entrevis-ta qualientrevis-tativa. Como mostrou uma investigação baseada em dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (pof), tais pesquisas amostrais não fornecem informações precisas sobre o gosto nem captam os muito ricos. Cf. Bertoncelo, Edison R. E. Classes sociais e estilos de vida na sociedade bra-sileira. São Paulo: tese de doutorado, fflch-usp, 2010.

[7] Em vista do espaço exíguo des-te artigo, opdes-tei por trabalhar majo-ritariamente com tais fontes empíri-cas de primeira mão, malgrado o fato de que a pesquisa completa cujos resultados parciais apresento aqui se baseou não apenas nessas entre-vistas, mas em manuais de etiqueta, crônicas da vida mundana, críticas culturais, estatísticas da dispersão social dos bens culturais, represen-tações do consumo encenadas no material da imprensa paulistana contemporânea e na própria socio-logia do gosto tomada como objeto de estudo.

[8] Warde, Alan e Bennett, Tony. “A culture in common: the cultural con-sumption of the UK managerial elite”.

In: Savage, Mike e Williams, Karel.

Remembering Elites. Oxford: Blackwell Publishing, 2008, p. 254.

[9] Pinçon, M. e Pinçon-Charlot, M. Les ghettos du gotha: comment la bourgeoisie défend ses espaces. Paris: Seuil, 2007, p. 56.

[10] Seguindo uma abordagem da estratificação social que atenta para a multidimensionalidade das formas de riqueza apreendidas sin-crônica e diacronicamente, a esco-lha de dois núcleos residenciais de elite (bairros-jardins que seguem o padrão da Companhia City x Alpha-ville) para a realização da pesquisa de campo fez aparecer disparidades associadas à estrutura e, sobretudo, à evolução no tempo do volume to-tal do capito-tal: no condomínio fecha-do e afastafecha-do das áreas centrais en-contrei não apenas os informantes menos dotados de capital cultural, social e simbólico, mas também os mais tardiamente chegados às altas classes paulistanas, o que sugere que origens sociais diferentes ge-ram estruturas patrimoniais igual-mente diversas.

tas consagrados, pertence ao conselho da Bienal, da Sala São Paulo, do Mozarteum Brasileiro, do MAM, do MASP, ao grupo de sócios do MOMA,

do Metropolitan, do Louvre etc., o que indica que tais atividades per-manecem insígnias das classes abastadas também no caso brasileiro. Tal conivência com o mundo da arte rende, entre outros dividendos, a expansão e a consolidação do montante de capital social, esse quinhão do patrimônio tão bem conservado nesses rituais da vida mundana que são os vernissages e os jantares para a arrecadação de fundos para instituições culturais. Apesar de não ter feito observação participan-te, repetidas vezes ao longo da realização dessa pesquisa me ocorreu abrir a coluna social da Folha e do Estado e encontrar vários dos meus informantes reunidos nos mesmos ritos integradores e distintivos do calendário mundano11.

Mas, se a participação nas organizações culturais sugere que essas elites são recompensadas por seu engajamento na promoção de ativi-dades artísticas, ela não necessariamente indica um padrão de gosto vanguardista. Pelo contrário, a análise das preferências e aversões esté-ticas da população estudada permite afirmar que “o gosto burguês ou mundano é fundamentalmente um gosto tradicional”12.

A análise dos partidos arquitetônicos acolhidos pelos bairros de elite testemunha esse desapego ao vanguardismo. O Jardim Améri-ca, por exemplo, reduto de eminentes representantes das altas clas-ses locais, rejeita os princípios modernos de Le Corbusieur e adota os estilos neogeorgianos, neocoloniais e um “clássico imponente e monumental”:

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[11] Não posso dar a referência des-sas fontes documentais, pois isso comprometeria o anonimato que ga-ranti a todos os informantes.

[12] Bourdieu, P. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo/ Porto Alegre: Edusp/ Zouk, 2008, p. 247. Gosto “tradicional” tem neste artigo a mesma acepção que Bourdieu atri-buiu ao termo, ou seja, diz respeito à preferência por valores culturais bem estabelecidos, em detrimento dos modernismos artísticos. Partilho também do sentido que Arno Mayer confere à expressão “tradicionalis-mo” quando afirma a persistência das culturas oficiais na Europa de 1848 à Grande Guerra, em detrimen-to das vanguardas. Cf. Mayer, Arno. “Culturas oficiais e vanguardas”. In:

A força da tradição: a persistência do antigo regime. São Paulo: Companhia das Letras, 1990 [1981].

[13] Wolff, Silvia Ferreira Santos.

Jardim América: o primeiro bairro- -jardim de São Paulo e sua arquitetura.

São Paulo: Edusp/ Fapesp/ Imprensa Oficial do Estado, 2001, pp. 190-1.

[14] Durand, José Carlos. Arte, pri-vilégio e distinção. Artes plásticas, ar-quitetura e classe dirigente no Brasil, 1855/1985. São Paulo: Perspectiva/ Edusp, 1989, p. 280. Para um estudo dos clientes e dos projetos das “ca-sas de arquiteto”, consultar Acayaba, Marlene Milan. Residências em São Paulo: 1947/1975. São Paulo: disser-tação de mestrado, fau-usp, 1983. 2 vols.

[15] Discutindo “Estética de São Paulo”, de Roger Bastide, Gilda de Mello e Souza trata de uma arquite-tura reconciliada com nossa antiga ordem senhorial: “Para Roger Basti-de, o espaço de uma cidade como São Paulo — que naquele momento ini-ciava o surto vertiginoso de seu cres-cimento — é um espaço vertical. Ora, este espaço está em contradição com a sensibilidade horizontal, descrita por Gilberto Freyre e característica do complexo Casa-grande e senzala

ou Sobrados e mocambos. Como faz a cidade para acomodar às imposições novas da arquitetura a velha men-talidade? E quais as consequências dessa acomodação? Pois na Europa, o prédio de apartamentos corresponde ou traduz, na sua disposição interna, a sociedade estratificada de classes superpostas: no primeiro andar loca-Quando iniciei minha pesquisa com frações da elite paulistana

es-perava encontrar mais casas modernas, feitas por arquitetos importan-tes, mas o que pude apurar foi um pouco o contrário: os projetos de casa que seguiam os ditames da arquitetura modernista eram raros. Com poucas exceções (como uma informante que vivia numa residência projetada por Marcos Acayaba e outra residente num casarão projetado pelo escritório de Artigas), vários entrevistados reclamaram das “casas de arquiteto”, nas quais “a cozinha está dentro da sala”. Uma entrevis-tada já tinha mesmo vendido uma de suas casas projeentrevis-tadas por Ruy Ohtake no Pacaembu e outro havia demolido uma residência no Jardim Europa feita pelo chileno e professor de arquitetura Ernesto Bofil, que trabalhou com Oswaldo Bratke, pai de Roberto Bratke, outro importan-te arquiimportan-teto brasileiro moderno. Tais achados empíricos indicam que a atual configuração dos gostos e desgostos não difere tanto daquela encontrada por José Carlos Durand, que, tendo investigado o campo da arquitetura brasileira desde a inauguração de Brasília até o começo dos anos 1980, mostrou o quanto “a arquitetura dos arquitetos” dirigiu-se a um segmento bastante exíguo da burguesia cultivada14.

Em meio a meus informantes, a resistência à planta livre que suaviza a separação entre o “setor de serviços” e o “setor social” de uma casa (“a cozinha está dentro da sala!”) e, ainda, as observações de que a cozinha é um lugar da casa em que não se entra, posto que “é o espaço das empregadas”, dão a ver a dificuldade em aceitar uma arquitetura que não reproduza nossas arraigadas formas hierár-quicas de sociabilidade social. Um alto executivo e proprietário de gigantesca construtora brasileira de obras civis (casado com uma filantropa e colecionadora de obras de arte e de móveis do século

xix) manifestou reiteradas vezes um sentimento de amor-próprio

com a memória dos antepassados através de seu gosto pelas casas coloniais deixadas por seus ancestrais fazendeiros de café e que hoje são restauradas por iniciativa sua: “Eu gosto dos arquitetos que fazem casas mais tradicionais, mais coloniais. […] Não gosto do moderno, eu não gosto de casa moderna, essa casa toda clean, toda branca, sem nenhuma parede”. A revivescência dos estilos an-tigos tradicionais, em matéria de arquitetura como alhures, revigo-ra trevigo-raços do estilo de vida dos segmentos dominantes brevigo-rasileiros, privilegiando hábitos de comportamento historicamente associa-dos às elites escravocratas do país15.

Não surpreende, assim, que na opinião de Carlos Lemos, grande especialista das formas de morar brasileiras, a arquitetura do território dos bairros-jardins seja:

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liza-se a burguesia rica, nos andares intermediários a classe média e nos sótãos os empregados. A estrutura arquitetônica repete, por conseguin-te, a estrutura da sociedade: separa os grupos, mostrando que as relações entre a família do patrão e a do empre-gado são profissionais; e que este é in-dependente, ama a liberdade, é cioso de suas prerrogativas e está compro-metido com a luta de classes. Mas em São Paulo, ao contrário, o prédio de apartamentos repete a organização

horizontal da casa-grande: distribui no mesmo andar os cômodos desti-nados a patrões e empregados; situa as acomodações dos domésticos ao lado da cozinha, fazendo-os ocupar um espaço próximo e dependente. O arranha-céu é, assim, uma espécie de grande monstro anacrônico, que ins-creve na paisagem dinâmica a velha e retrógrada estrutura patriarcal”. Cf. Souza, Gilda de Mello e. “A estética rica e a estética pobre dos professores franceses”. Discurso. São Paulo: De-partamento de Filosofia da fflch--usp, n. 9, 1979 [1973], pp. 17-8.

[16] Lemos, Carlos. “O mis e os ri-cos”. Apud Paula, Zuleide Casagran-de Casagran-de. A cidade e os Jardins: Jardim América, de projeto urbano a monumen-to patrimonial (1915-1986). São Paulo: Editora Unesp, 2008, p. 204.

20, onde predominavam os estilos “missões” especialmente mexicanas, o neocolonial, o art déco e outras soluções estilísticas exóticas. É certo que essa miscelânea de gostos e soluções arquitetônicas também representa um está-gio cultural de nossa classe conservadora que habita o local e, portanto, deve ser considerada como documento alusivo a uma época e a uma sociedade. E há, também de permeio, obras importantes de arquitetos de renome. Alguns exemplares podem mesmo ser considerados verdadeiros bens culturais. Mas a grande massa de edificações é vulgar. Seria interessante a preservação de exemplares mais representativos, de conjuntos residenciais dignos de preser-vação com fins documentais16.

A arquitetura que se reconcilia com uma antiga ordem social tam-bém seduziu a emergente elite libanesa. A respeito da casa de seus pais, imigrantes enriquecidos, uma ex-diretora de museu e esposa de um importante arquiteto brasileiro afirmou o seguinte:

A minha família, quando fez a casa importante da minha família, de um dos lados era um palacete, copiavam o palacete, a arquitetura muçul-mana, mesquita. Sabe, quando o cara tem dinheiro, ele precisa mostrar o que é que era a melhor coisa da cultura dele. Era a mesquita, ele vai lá e copia a mesquita.

Um economista (antigo diretor de vigorosa empresa brasileira) e ex-ministro se desfez de sua casa moderna e investiu numa residência “mais térmica”. Os poucos informantes que habitavam “casas de quiteto” referiram-se à necessidade de se impor ao profissional da ar-quitetura. Nas narrativas sobre as atuações do arquiteto, engenheiro, paisagista e decorador, o primeiro é tido como um profissional idios-sincrático e alheio ao gosto da clientela:

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[17] Utilizo a noção de “gosto bur-guês” empregada por Bourdieu em La distinction, obra que opõe tal sistema de preferências simultaneamente ao “gosto intelectual” associado às fra-ções dominadas das elites, ao “gosto médio” tendente a ser encontrado entre as classes médias e, por fim, ao “gosto popular”.

que tinha esse problema [de claridade de manhã], que era a casa da minha ex-sogra. […] Era linda, só que eu fui dormir lá porque o nosso aparta-mento estava sendo dedetizado, seis horas da manhã puf! Não tinha vene-ziana e para mim casa que não tem venevene-ziana não serve […] Aquele espaço todo, todo mundo fazendo bagunça, eu não gosto, ai. […] cozinha dentro da sala! (Psicanalista, senhora da sociedade e mulher de um importante empresário brasileiro)

Tendo reformado sua casa (assinada por um artista importante e tombada pelo patrimônio histórico) situada numa cidade de veraneio cara às elites brasileiras a fim de que ela ficasse “menos pobrezinha”, essa entrevistada compõe o perfil típico do “gosto burguês”17 que “não aguenta” o ascetismo eletivo dos arquitetos mais energicamente modernos. Afastando-se, também no que tange ao paisagismo, dos preceitos modernistas que no Brasil primam pelo uso abundante de plantas tropicais, essa informante optou por um jardim toscano para acompanhar a arquitetura dessa sua residência secundária. Filiado aos princípios arquitetônicos neoclássicos, seu domicílio no bairro paulistano do Jardim Europa é, portanto, em tudo coerente com esse sistema mais amplo de preferências.

A capital federal, Brasília, é, para um empresário, rentier e filantro-po, a expressão de como o Brasil “está cheio de coisa de mau gosto”. Apesar de apreciar as residências de Artigas e Niemeyer, ele precisa em seguida que não viveria nesse tipo de habitação: “Maravilhosas, tem obras fantásticas. Mas não que eu queira morar lá”.

Engenheiro da Politécnica, proprietário de construtora e herdei-ro de outra construtora de condomínios de luxo, um informante de Alphaville saiu em defesa das fachadas monumentais ornamentadas por colunas e pórticos das mansões do condomínio, afirmando não ser possível dizer, como faz em peso a classe dos arquitetos, que o neoclássico seja um estilo arquitetônico criticável, posto que o fato de agradar a tanta gente atesta, de maneira irrefutável, sua legitimi-dade social. Em sua opinião, o profissional de arquitetura “tem a responsabilidade de não induzir o cliente a fazer o que ele acha que ele tem de fazer”.

Consulesa de um país europeu, jornalista da imprensa oficial e es-posa de um empresário do setor exportador, cônsul e antigo juiz de di-reito, uma informante descreve negativamente sua experiência como moradora de uma casa modernista:

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[18] Bourdieu, P. A distinção,op. cit., p. 456.

[19] Naves, Rodrigo. O vento e o moi-nho: ensaios sobre arte moderna e con-temporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 19.

[20] Arantes, Silvana. “Mercado discute queda de público”. Folha de S. Paulo, 11/07/2007, p. E4.

[21] Idem, ibidem.

Banespa, lembra? E a casa era aquela casa de concreto toda, e eu mudei tudo. Ele quase morreu […] Aquela sala era toda aberta, não é assim, por exemplo, como essa daqui toda quebrada. Não, uma sala só, porta de vidro enorme, só que eu não moro na sala. Sabe, então de repente, eu tinha cinco suítes em cima, nenhuma tinha conforto. Eram todas muito pequenas, era bem agência do Banespa, né, tudo de concreto aparente, quer dizer, uma coisa triste. O teto muito baixo. Detesto. Eu mandei pintar tudo. Tira todo esse concreto. Mandei iluminar tudo, mudei toda a casa. Mas eu vivia tendo problema de vazamentos, porque a casa tem aquelas claraboias que ele faz… Dentro do concreto só pode ter aquilo para dar iluminação. E aquelas claraboias são ótimas para viverem dando problema. Então cho-via […] dentro da casa… Por isso que nós saímos de lá.

Quando o que se tem em vista são as lutas para impor os princí-pios dominantes de hierarquização dos bens e das visões artísticas, pode-se dizer que, contrariamente à “falta de interesse pela existên-cia ou pela não existênexistên-cia da coisa representada”18, apregoada pelas leituras “puras” das obras de arte, a recusa da insignificância do tema revelou-se, no universo estudado, em matéria de cinema. Por mais incisivas que sejam as investidas de críticos e historiadores da arte em prol de “uma aguda noção de forma”19, as críticas culturais refe-rentes ao gosto cinematográfico brasileiro veiculadas na mídia im-pressa e eletrônica paulista entre 2007 e 2009 também apontaram a incapacidade bastante generalizada de se ater primordialmente às singularidades do estilo (e não do conteúdo) característico de uma obra de arte.

Em meio à discussão sobre as causas da queda do público dos longas nacionais em 2007 — não obstante a produção cada vez mais volumosa de filmes brasileiros —, o produtor Diler Trindade avaliou que “o dado objetivo é que o dinheiro está curto para quem gosta do cinema nacional — as classes populares”20. Para o presidente da rede Cinemark Internacional, Valmir Fernandes, o descompasso en-tre a oferta e o consumo do filme brasileiro no mercado interno — a queda do público no primeiro semestre de 2007 foi de 14,7% em comparação com o mesmo período do ano anterior, ao passo que o número de estreias, no mesmo intervalo de tempo, aumentou 39% — também se deveu, em alguma medida, à falta de “condições para uma política de preços adequada às camadas populares”21. A crítica cultural de Cássio Starling Carlos intitulada “‘Linha de passe’ chega, por fim, ao ‘povo’” também denuncia a lógica socialmente perni-ciosa do acesso à cultura no Brasil, comprazendo-se com a chegada em DVD desse terceiro filme concebido pela parceria Walter Salles e

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[22] Carlos, Cássio Starling. “‘Linha de passe’ chega, por fim, ao ‘povo’”.

Folha de S.Paulo, 03/05/2009, p. E4.

[23] Cruz, Leonardo. “Público de cinema rejeita pobreza”. Folha de S.Paulo, 12/03/2007, p. E3.

[24] Idem, ibidem.

[25] Idem, ibidem.

No espaço doméstico,“Linha de passe” talvez renove a oportunidade de ser percebido por uma plateia que não atingiu no trajeto pelas salas, estabe-lecendo nexos com um público que o filme teve como ambição projetar, hoje isolado dos cinemas devido aos custos das entradas, uma evidência do nosso “apartheid” cultural22.

Mas o fato de o preço dos ingressos ser ainda proibitivo para os se-tores populares estaria longe de ser a única explicação plausível para a diminuição da audiência de filmes nacionais em 2007. As explicações acerca das causas do baixo público do filme Antônia (2007), de Tata Amaral, introduziram um argumento importante ao apontar o dado de que a classe média alta, que poderia pagar entre 15 e 20 reais pela entrada, não estaria disposta a ver “drama de pobre no cinema”23. Depois de apresentar esse argumento no blog Ilustrada no Cinema, o crítico Leonardo Cruz recebeu 266 mensagens, que, a seu ver, podem ser con-densadas na seguinte opinião:

Os críticos se esquecem de que, tirando eles próprios, as pessoas vão ao cinema para seu entretenimento e não para ver denúncia social, ou como so-mos feios, sujos e malvados no Brasil. Para ver o mundo das favelas, pobreza, injustiças sociais, basta abrir a janela do apartamento ou olhar pelas ruas do país ou assistir aos telejornais, e não ir ao cinema24.

Tendo discutido o mesmo assunto em sua coluna Olha Só, no site No Mínimo, o crítico de cinema e documentarista Ricardo Calil regis-tra uma reação parecida por parte do público, como dá a ver o comen-tário de um leitor: “Os filmes nacionais fracassam porque são ruins. É simples assim. Alguém ainda aguenta assistir a histórias de periferia, travestis e violência?”25. Em crítica ao filme Linha de passe (2008), o editor Marcos Augusto Gonçalves, da Ilustrada da Folha de S.Paulo, ex-põe seu desagrado devido a questões que ultrapassam a mera reinci-dência temática. No seu modo de ver, os filmes brasileiros que tratam das favelas, da violência e das grandes cidades construiriam visões di-cotômicas tendentes a apresentar sempre os pobres como vítimas e os ricos como algozes:

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[26] Gonçalves, Marcos Augusto. “A ficção da realidade: politicamente correto, ‘Linha de passe’ frustra como cinema e ensaio sociológico”. Folha de S.Paulo, 21/09/2008, p. E5.

[27] Piza, Daniel. “Quase lá”. O Esta-do de S. Paulo, 21/09/2008, p. D3.

[28] Arantes, S. “Espectador prefe-re filme dublado”. Folha de S.Paulo, 29/08/2008, p. E4. A tematização da violência urbana no cinema nacional não é fato do século xxi, já que esteve presente, de forma precursora, entre os autores do chamado Cinema Mar-ginal. Sem se contrapor radicalmente a seus antecessores do Cinema Novo, filmes como O bandido da luz vermelha

(Rogério Sganzerla, 1968) e Matou a família e foi ao cinema (Júlio Bressa-ne, 1969) exploraram personagens ligados às práticas criminosas nas cidades. Após um período de “rela-tiva invisibilidade que encobriu a pobreza e a violência nos anos 1970 e 1980, anos de consolidação da in-dústria de tv e do mercado de consu-mo no Brasil”, o final dos anos 1990 e, sobretudo, início de 2000 foram marcados por uma “explosão” da te-mática da violência urbana nos filmes nacionais. Cf. Hamburger, Esther. “Violência e pobreza no cinema bra-sileiro recente: reflexões sobre a ideia do espetáculo”. Novos Estudos Cebrap, n. 78, 2007, pp. 113-28.

[29] Coelho, Marcelo. “Filmar po-bre não é pecado”. Folha de S.Paulo, 24/09/2008, p. E12. Visto que a coleta das fontes empíricas e docu-mentais desta pesquisa (finalizada em 2010) se deu entre 2006 e 2009, o sucesso de Tropa de elite 2, filme de José Padilha que em 2010 ultrapas-sou o recorde de 1 milhão de especta-dores,ficou de fora do escopo do meu trabalho, que, como qualquer outro, tem sua historicidade.

anos e não creio que precise ir ao shopping, comprar um saco de pipoca e entrar num cinema para ter uma revelação sobre a pobreza que testemu-nho diariamente26.

Na mesma linha de juízo, Daniel Piza considera, em crítica veicula-da pelo jornal O Estado de S. Paulo, que o filme incorreria numa “redução ideológica” devido ao contraste esquemático entre os ricos e os pobres, que desvaloriza de antemão os primeiros:

Toda vez que aparece alguém de classe alta ou média no filme é para simbolizar o que há de ruim na sociedade brasileira. A juventude de condomínios droga o rapaz pobre e bate nele por jogar futebol melhor; os motoristas de importados atropelam os motoboys e apenas sentem medo deles, incapazes de olhá-los como pessoas; a intelectual não registra a empregada em carteira; o dono do posto de gasolina divide o mundo em bandido e “dotô”. Todas essas situações são reais, até recorrentes no dia a dia? Individualmente, sim. Mas por que a esse bloco de personagens não é reservada semelhante variedade? Por que nenhum recebe nem meia dose de compreensão?27

No bojo da discussão (ocorrida entre 2007 e 2008) sobre a queda de público do filme nacional, o Sindicato dos Distribuidores do Rio de Janeiro encomendou uma pesquisa ao Datafolha que, aplicada a 2.120 pessoas de dez cidades brasileiras, apurou que o tema dos filmes brasi-leiros desagrada 80% dos frequentadores de cinema que afirmam não gostar da produção nacional28. Em crítica dedicada ao mesmo Linha

de passe, Marcelo Coelho notou que o público estaria a “dar mostras de cansaço diante de tanta gente pobre no cinema brasileiro”29.

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Acho que há bons filmes nacionais atualmente. Entretanto, provavel-mente para obter sucesso lá fora, abusa-se da filmagem da miséria, da pobre-za. O estrangeiro gosta do exótico, da miséria, das favelas. Há companhias de turismo hoje em dia levando estrangeiros para fazer um tour pelas favelas do Rio de Janeiro. Provavelmente o último filme Quem quer ser um milio-nário, do diretor inglês Daniel Boyle, ganhou o Oscar neste ano influenciado por essa razão. O filme se passa na Índia. É um filme que abusa da filmagem da miséria da vida de crianças pobres órfãs. Vi a declaração de um intelectual indiano — infelizmente não me lembro quem — que declarava que este filme nem mesmo corresponde à realidade na Índia. (Psicanalista e esposa de um economista e ex-ministro)

Convencido de que a produção cinematográfica brasileira “tem um prazer especial em pegar as chagas da nossa sociedade”, um banqueiro (ex-presidente e diretor de bancos públicos e privados) e filantropo disse ir ao cinema para se distrair, e não para sair angustiado:

O final feliz é simpático, né? […] Não, não precisa, não necessariamente. Mas, enfim, se você vai assistir um… Em outras palavras, se eu vou assistir para me distrair, ou para vivenciar um drama e sair de lá angustiado, eu prefiro ver uma coisa mais leve, mais… Porque no fim das contas o cinema é um prazer, não é um estudo científico que eu estou fazendo. Se eu estou tendo que estudar um caso aí é diferente. Eu posso ter… Agora, se eu for por prazer, o que é que me dá prazer? O que dá prazer são as coisas bonitas da vida, as coisas gostosas, as coisas que vão bem.

Para o teatro é o mesmo gosto “la vie en rose”, a próxima peça que veria era Sassaricando: “Me contaram que era divertido e eu… Isso é uma coisa que eu gosto. Coisa leve, alegre”. O mesmo vale para suas preferências literárias: Equador, de Miguel Sousa Tavares, um romance que o marcou, é considerado “um livro leve, não é?”, indi-cando como alguns membros da classe alta esperam uma arte com-prometida com a alegria e a “leveza”. Sobre a filha artista plástica e filantropa que retratou as favelas num dado momento de sua obra disse, com bom humor: “É a burguesia enfeitando as suas casas com fotografias da favela […] há uma certa contradição, né?”. Quando in-dagado sobre se atribuía mais importância ao conteúdo ou à forma de uma tela, o informante invocou São Tomás de Aquino para dizer que o belo é quod visum placet, como ele disse, “que visto, agrada […] O que é o belo? É aquilo que visto agrada”.

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“pé de valsa”, e que dançava “fora tango tudo, porque tango eu acho uma música muito triste, muito bonita, mas triste, e eu sou um cara alegre”. Seus gostos em matéria de música parecem homólogos a suas preferências cinematográficas, já que aí também se inclina aos bens culturais que celebram a alegria de viver e induzem a um olhar otimista sobre o mundo. Depois de dizer, do cinema nacional que tematiza a violência e os pobres, que “a gente só vê filme falando mal do Brasil”, afirmou preferir o cinema americano ao europeu pois este se caracterizaria por fazer um filme “muito parado, muito drama […] é muito drama, e eu não gosto de drama”.

Um empresário, rentier e filantropo destaca que, em matéria de tea tro, “eu não gosto de tragédia, eu só gosto de peças cômicas, então o final feliz é imperativo”. Sem se opor frontalmente ao cinema brasileiro que tematiza a violência e a pobreza, um chef da alta gastronomia reconheceu, contudo, que se regala com happy end: “[…] saio contente assim […] prefiro sempre. Gosto de final feliz”. O mesmo para uma psicanalista, colecionadora de arte e ex-mulher de um industrial que, entusiasta dos filmes brasileiros — malgrado a “temática terrível da violência”—, é também amadora do final feliz: “Ai que delícia! […] Sou romântica, quando você me pergunta se sou apenas surrealista ou […] bergmaniana com as tragédias totais, não é? [Você também gosta de um final feliz?] Evidentemente”.

Sem reagir energicamente aos temas diletos da produção cinema-tográfica nacional, um jornalista e ocupante de altos postos em impor-tantes instituições culturais do país também reprovou uma espécie de obsessão pela pobreza nas várias modalidades artísticas brasileiras:

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[30] Arantes, S. “Bateu!”. Folha de S.Paulo, 04/03/2009, p. E1.

[31] Bourdieu, P. A distinção,op. cit., p. 251.

[32] Trata-se do filme O escafandro e a borboleta, de Julian Schnabel, de 2007.

Mesmo tendo dito não se incomodar com o cinema brasileiro que retrata a violência e a pobreza, um economista e ex-ministro lamenta não ter ido assistir à comédia romântica Se eu fosse você, com Glória Pires e Tony Ramos, um dos maiores sucessos da bilhete-ria nacional nos últimos anos30. E também manifestou traços do “incurável otimismo das elites”31 ao me dizer, num outro momen-to da entrevista, que “se você administrar bem a sua vida, você será bem-sucedido, senão, não”.

A rejeição do pessimismo na arte também apareceu nas preferências cinematográficas de um colecionador de arte, médico proprietário de clínica e filho de médico dono de hospital, que não escapa à supremacia temática quando deixa de assistir a um filme francês por tratar “de um cara na cadeira de rodas”32. A recusa da insignificância do tema e a opo-sição à arte que retrata a indigesta realidade também são bastante claras nas opções culturais de um músico, escritor e herdeiro de uma família de banqueiros e políticos do Nordeste. Certo de que o tema, mais do que os atores ou o diretor, é o que mais conta na escolha de um filme, ele assume gostar de longas “fáceis, humorados e felizes” e valorizar o “final feliz”, pois, nas suas palavras, “a sociedade em si já é muito desanimadora”.

Uma informante que, um pouco mais acima neste texto, afirmou ter vendido sua casa modernista por considerá-la dotada de uma arquitetu-ra “triste” exprime um gosto cinematográfico homólogo ao assumir seu desgosto pelo filme nacional que encena a violência urbana e os pobres:

Ninguém quer ir ao cinema para ver isso. Você pode ir assistir um do-cumentário, um filme com um tema desses, mas você não pode ir toda hora ao cinema assistir favelado matando, favelado pobreza, e sem roupa e, sabe, com um palavreado muito chulo. Ninguém aguenta isso. Olha, isso não é nem pobre, nem médio, nem rico. Isso é o ser humano em si, ele não consegue conviver com isso muito tempo […] por isso que todo mundo se distanciou do filme nacional. Falava que era filme nacional “Não, estou fora”.

Uma de suas vizinhas, dona de casa e esposa de um industrial, afir-mou preferir o cinema feito nos Estados Unidos devido ao fato de que as produções europeias seriam muito sérias e melodramáticas e as na-cionais incorreriam no erro de mostrar apenas “um Brasil”:

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[33] A mulher desse informante, por exemplo, coleciona obras de arte e móveis do século xix e integra o con-selho de uma associação caritativa internacional, enquanto o instituto criado por ele empreende, além de projetos sociais, atividades de preser-vação ambiental, histórica e cultural.

[34] Longman, Gabriela. “Expo-si ção e livro reveem trajetória de Paulo Pasta”. Folha de S.Paulo, 18/08/2006, p. E8.

tamanho maior e vende para o pessoal, pelo menos morar numa casinha bem feitinha”. Não, eles pegam aquelas madeiras, cruza de um lado e de outro, aí depois ele vai fazer a casinha do cachorro direitinho, você já reparou?

Um banqueiro e ex-presidente e diretor de bancos públicos e pri-vados e um empresário de imensa construtora brasileira de obras civis, dois dos mais enérgicos opositores do cinema nacional que tematiza a violência e os pobres, são comprometidos com o mecenato e sobretudo com a filantropia: praticamente toda a família de ambos está engajada em “causas nobres” e ao longo das entrevistas são constantes as referên-cias aos projetos sociais de que são mantenedores: “O meu maior pra-zer é ver um jovem se desenvolvendo”33. Essa “positividade” advinda do financiamento de atividades de inserção de jovens carentes talvez torne difícil, se não insuportável, deglutir a realidade nua e crua da violência no Brasil encenada na produção cinematográfica nacional. Dando a ver um país um pouco sem saída, “que não tem mais jeito”, filmes como

Linha de passe e documentários como Notícias de uma guerra particular ou

Ônibus 174 não são obras propriamente edificantes e confortadoras das boas intenções e dignidades morais. Atuando como agentes privados em projetos filantrópicos delimitados, precisamente financiados e com resultados (tanto quanto possível) controláveis, eles se situam na re-jeição do pessimismo na arte e, também, na maneira de ver o país, suas preferências estéticas sendo, a um só tempo, escolhas éticas:

O brasileiro é um povo espetacular. Não tem isso. E eu posso te provar hoje que nós estamos fazendo um estaleiro em Recife, vamos formar 5 mil crianças, meninos de dezoito anos que nós estamos tirando da cana. E muitas meninas eu tenho conversado […] qual é o, o que é que ela vê como mulher, o que é que ela vê… Então ela vem de uma quase escravatura, de uma coisa, e uma oportunidade que nós demos espetacular, e você vê aquela mulher se transformando numa mulher com um ideal, com não sei o quê.

Você vê que churrascarias estão pegando o mundo hoje. O Brasil está se internacionalizando como um todo. Você vê a capacidade do povo brasileiro. Não são só as grandes empresas. Você vê os futebolistas, você vê o pessoal de… As modelos […]!

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[35] Bourdieu, P. A distinção, op. cit., p. 273.

[36] Mayer, A. “Culturas oficiais e vanguardas”, op. cit., pp. 220-1. Tais são também algumas evidências de como a contestação

sim-bólica da realidade social intentada por alguns artistas colide com as expectativas do “gosto burguês”, que prefere sempre e invariavel-mente la vie en rose à la vie en noir, rejeita o pessimismo antiburguês de gente com problemas para acolher o otimismo social de gente sem problemas esperando, em suma, que a arte não seja senão um instrumento de obscurecimento — e não de crítica — da realidade social. Diferentemente das frações mais intelectualizadas das clas-ses dominantes, “o ‘burguês’ espera que seus artistas, escritores e críticos — assim como seus costureiros, joalheiros ou decoradores — mostrem emblemas de distinção que, ao mesmo tempo, sejam instrumentos de denegação da realidade social”35. A resistência à arte que tematiza a miséria do mundo não parece ser específica de um único país quando os grupos sociais enfocados são as classes altas. Quando discute o tradicionalismo da cultura do Segundo Im-pério Germânico, Arno Mayer lembra que:

Segundo a concepção do Kaiser, a alta cultura tinha como única grande tarefa a de educar o público, em especial as classes baixas, retratando obrigato-riamente a virtude, a beleza e a honra. Enquanto projetar esses sublimes ideais clássicos era elevar moral e espiritualmente o povo germânico, pintar e exagerar a miséria humana era “pecar contra ele” […] Embora muitíssimo homenage-ado no exterior, Gerhart Hauptmann era sistematicamente rejeithomenage-ado por seu tratamento naturalista da miséria dos tecelões da Silésia em Die Weber e sua ridicularização das tendências autoritárias da Prússia em Der Biberpelz36.

Hostil aos modernismos artísticos e afeito aos valores culturais já bem estabelecidos, esse gosto tradicional revelou-se, finalmente, na apreciação das obras de artes plásticas. Um indicador nesse sentido é a dificuldade em admitir a arte contemporânea:

Eu não sei se ela é incompreensível. Não me diz tanto, eu acho que tem de-terminadas instalações, dede-terminadas coisas nas artes conceituais que o artista tem que voltar lá todo ano pra trocar assim o fio. Incrível isso […] eu fui ver um, tinha uma exposição dele [de José Rezende] compreensível, mas, tem que gostar, uma coisa assim quase idiota de tão boba. Tartarugas no chão, umas sabonetei-ras, C-A-R-Í-S-S-I-M-A-S. Em três horas estava tudo vendido. Muito caras. E muito feias […] Eu me lembro de uma inglesa que veio aqui, que estava lá na OCA há um tempo, há uns quatro, cinco anos. Um copo d’água. Com água. Um pouco de água […] Eu não vou dizer como o Monteiro Lobato falou da Anita Malfatti, mas, realmente, não me diz nada. (Banqueiro, Jardim Europa)

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“Eu achei bizarra essa Bienal, não tem um quadro nessa Bienal, um quadro sequer” (Restauradora de obras de arte acadêmica, Jardim América). Mesmo uma proprietária de importante coleção de arte moderna julga que a produção contemporânea apresentada, por exemplo, nas Bienais, não passaria de um “blefe”: “[…] nem dou bola para isso. Isso eu acho que não tem cabimento”. Proprietário de duas obras de Iberê Camargo, um pianista, maestro e compositor avalia que, apesar de frequentar as Bienais, “eu acabo curtindo 10% do que está lá, que é uma coisa que me bate”. À pergunta sobre o gosto por pintura, um empresário, rentier e filantropo responde, de pronto: “Os clássicos, especialmente os clássicos […] Eu demorei para aceitar Picasso, demorei para aceitar Picasso!”. Autor de foto-grafias que buscam apenas o registro de paisagens e de momentos felizes, um músico e escritor herdeiro de uma família de banqueiros e políticos avalia que “as novas instalações são em geral facilmente compreensíveis, tolas em sua grande maioria”. Uma artista plástica e herdeira de um importante publicitário brasileiro testemunha que “instalações, por exemplo, eu tenho uma certa dificuldade”.

A arte abstrata também não granjeia o interesse da maioria dos en-trevistados: “Eu gosto da arte figurativa moderna mais do que a abstra-ta. E gosto de alguns abstratos, mas não é o meu… Hoje não é a arte que eu compraria” (jornalista e ocupante de altos cargos em importantes instituições culturais brasileiras); “há raros exemplos de bons traba-lhos abstratos, que não sejam por preguiça de pintar algo mais difícil” (músico, escritor e herdeiro de uma família de banqueiros e políticos); “às vezes fico bravo com a arte abstrata, mas tenho um monte de arte abstrata em casa […] É porque às vezes fica muito… Muito vazia, né, se você quiser, de conteúdo […] de qualquer forma acho que os gran-des, grandes autores não foram abstratos (economista, ex-ministro do país e antigo diretor de vigorosa empresa brasileira).

Herdeira de obras de arte que seu avô adquiriu na Europa, uma dona de casa oriunda de antigas famílias de São Paulo (e viúva de um advogado de fábrica familiar e assessor político da prefeitura da cidade) exprime da seguinte maneira suas preferências em matéria de pintura:

Eu sou mais do estilo romântico, o mais suave, não vou dizer que o meu predileto fosse o Van Gogh, de jeito nenhum, mas admiro, acho bonito, mas não é o que eu mais gostaria de ficar visitando, por exemplo, quando estou viajando. Principalmente na Europa, né? Mas eu gosto, eu gosto do Cézanne, eu gosto de… Aquele maluquinho de umas formas compridas, engraçadinho […] Modigliani.

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indus-[37] Pinto, Louis. “L’émoi, le mot, le moi: le discours sur l’art dans le ‘mu-sée égoïste’ du Nouvel Observateur”.

Actes de la recherche em sciences sociales, n. 88, 1991, p. 85.

[38] Mayer, A. “Culturas oficiais e vanguardas”, op. cit., p. 226.

[39] Mesmo que não seja possível desenvolver o argumento no espaço deste artigo, cabe ao menos enunciar que a ausência de escolhas culturais audaciosas se mostrou também no domínio dos hábitos indumentá-rios, especialmente na preferência da maioria dos homens e das mulhe-res entrevistados pelos cortes clás-sicos e pelas cores sóbrias. Segue-se assim a tendência que, na visão de Gilberto Freyre, dataria do reinado de d. Pedro ii e se caracterizaria pelo trial brasileiro foi das poucas a se dizer interessada na arte

contempo-rânea apresentada nas Bienais, tendo inclusive julgado que tal modali-dade artística só é incompreensível para aqueles que não se informam, pois para entender o que o artista contemporâneo quis dizer “você tem às vezes que ler um livro”. No entanto, contrariamente ao que artistas e críticos de arte julgariam apropriado, a informante assume que, ao depa-rar com um quadro, presta primeiramente atenção à legenda e, depois, à representação pictórica proposta: “Leio primeiro a legenda, sou muito do livro”. Na mesma linha de juízo, diz se apegar mais ao conteú do da tela, ao objeto representado, do que às técnicas propriamente formais empregadas pelo artista. Apesar de declarar ir ao cinema três vezes por semana, assume que não frequenta as melhores salas, ou, ao menos, as salas “onde tem gente mais educada”, por questões de segurança, distân-cia e conforto. Acaba indo bastante às salas do shopping Iguatemi, que têm lugar marcado, excelente projeção, ciente de que nelas “a frequência é de gente que come pipoca e fala, né?”. Ou seja, o que temos aqui não é tanto o “amor puro” pela arte, pronto a quaisquer sacrifícios: na escolha de um cinema, a existência de estacionamento conta mais do que uma plateia com maior disposição estética.

Assim, quando se tem em vista o repertório das artes plásticas sele-cionadas, pode-se dizer que os grandes artistas do Quattrocento (como Piero de la Francesca, Leonardo da Vinci, Van Eyck, Fra Angélico), os pintores holandeses do xvii (como Rembrandt e Vermeer) e os

im-pressionistas (Renoir, Monet, Manet e Degas), a partir do xix,

figu-ram, junto com a arte moderna brasileira do século xx (Anita Malfatti

e Volpi), em boa parte do conjunto das preferências dos entrevistados. Tomando emprestada uma análise do gosto artístico empreendida por Louis Pinto na França, ninguém “se aventura nas regiões raras, audaciosas ou marginais: nem a arte contemporânea nem a arte não ocidental são objeto de suas escolhas”37. Para além do gosto pela re-alidade idílica e “dócil” dos expoentes do movimento impressionista (13/30), o apreço pela obra de Matisse (6/30), considerada de “tramas ornamentais, decorativas e superficiais”38, é mais um indício de como as elites em pauta são pouco subversivas culturalmente39.

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desaparecimento dos orientalismos na moda brasileira, em prol de vesti-mentas que carregassem a marca do europeísmo. Assim, se por um lado o trajar mais e mais casual, descontraí-do, que se afirma na contemporanei-dade (“Hoje em dia a tendência toda é você não se arrumar”) é um indício de enfraquecimento das aparências “graves” e “solenes” importadas da Europa, a quase absoluta rejeição do que consideram cores “berrantes” indica, por outro lado, que a reeuro-peização na moda foi um gosto que se prolongou além da vigência da sociedade brasileira do século xix: “Então o meu gosto é gosto euro-peu. Para ser mais exato, francês [...] Nas cores têm que ser cores discre-tas entendeu?” (empresário, rentier

e filantropo); “Eu compro muita roupa fora. Então, eu gosto muito de blazer, de tailleurzinho [...] Eu sou superclássica [...] Nos cortes e nas cores, então, se você abrir o meu guarda-roupa ele começa no preto, passa pelo azul-marinho, vai para o uva e algumas coisas em bege e alguma coisa em branco [...] Eu não uso nada estampado [...]” (dona de casa e mulher de um industrial). Cf. Freyre, Gilberto. Modos de homem & modas de mulher. 2ª ed. São Paulo: Global, 2009, pp. 213-4.

[40] Bourdieu, P. La distinction,op. cit., pp. 306 e 321-2.

[41] Coulangeon, Philippe. “Classes sociales, pratiques culturelles et sty-le de vie: sty-le modèsty-le de la distinction est-il (vraiment) obsolète?”, vol. 36, 2004, p. 60.

[42] Pinçon, M. e Pinçon-Charlot, M. Voyage en grande bourgeoisie, op. cit.

[43] Bellavance, Guy, Ratté, Michel e Valex, Myrtille. “Le goût des autres: une analyse des répertoires culturels de nouvelles élites omnivores”. So-ciologie et sociétés, vol. xxxvi, 2004.

teatro de bulevar, music halls, espetáculos de televisão e filmes de suces-so comercial40. No domínio das predileções e aversões estéticas, por-tanto, não haveria uma nítida especificidade no modo como operam as frações de classe alta brasileira estudadas.

Do ponto de vista dos confrontos que atravessam atualmente a socio-logia do gosto na Europa e na América do Norte, a pesquisa cujos resulta-dos parciais apresentei aqui autorizaria a questionar o diagnóstico segun-do o qual o autor de A distinção teria concebido a “visão de uma cultura dominante unificada pela veneração das obras da cultura erudita”41. Dada a estrutura frequentemente em quiasma do capital possuído, a “fração dominante da classe dominante” se situa na recusa sistemática das pre-tensões vanguardistas, opondo-se ao gosto dos intelectuais e dos artistas.

As escolhas culturais pouco arriscadas das elites com estrutura pa-trimonial de dominância econômica também sugerem que a compa-tibilidade das várias espécies de capital não é necessariamente típica dos “grandes burgueses”, diferentemente do que apuraram estudos contemporâneos sobre as classes altas francesas42. Meus resultados de pesquisa com as classes altas paulistanas sugerem que a aquisição material de obras de arte (o capital cultural em seu estado objetiva-do) não pode ser diretamente assimilada à apropriação simbólica dos bens artísticos (que conforma o capital cultural incorporado).

Por fim — e ainda que, como explicitado no início deste texto, eu não tenha trabalhado com casos estatisticamente representativos —, minha análise das elites paulistas poderia fornecer uma última contribuição a alguns dos debates mais candentes na sociologia do gosto contempo-rânea: contrariamente a uma pesquisa canadense sobre os “repertórios culturais das novas elites onívoras”43, que destacou as diferenças profun-das entre indivíduos pertencentes a uma mesma classe social, é possível dizer que, com exceção do polo mais intelectualizado de minha coleção de casos (formado por uma historiadora da arquitetura casada com um importante arquiteto brasileiro, por uma artista plástica viúva de um industrial e por uma psicanalista e fazendeira residente numa casa mo-dernista), os outros informantes dos altos estratos estiveram de acordo a respeito de certos gostos que davam a ver claras representações deles mesmos e dos outros. Como procurei indicar no espaço deste artigo, a preferência pelos bens culturais “estabelecidos” e que não evocam uma visão pessimista do mundo foi recorrentemente acolhida, sendo portan-to ainda cabível propor, como hipótese de pesquisas futuras, a existência de uma comunidade social de gosto e, no caso em pauta, de uma certa coesão das elites (especialmente as de estrutura patrimonial de domi-nância econômica) a partir das preferências estéticas.

Carolina Pulici é doutora em Sociologia pela fflch-usp e bolsista Fapesp de pós-doutorado

no Museu Paulista da usp.

Rece bido para publi ca ção em 26 de junho de 2011.

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