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O paradoxo da finitude:: sobre o sentido onto-antropológico da psicanálise Freudiana.

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CARLOS ROBERTO DRAWIN

O PARADOXO DA FINITUDE: SOBRE O SENTIDO

ONTO-ANTROPOLÓGICO DA PSICANÁLISE FREUDIANA

Doutorado em Filosofia

UFMG/2005

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O PARADOXO DA FINITUDE: SOBRE O SENTIDO

ONTO-ANTROPOLÓGICO DA PSICANÁLISE FREUDIANA

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FICHA CATOLOGRÁFICA

DRAWIN, Carlos Roberto

O paradoxo da finitude: sobre o sentido onto-antropológico

da psicanálise freudiana / Carlos Roberto Drawin - Belo Horizonte UFMG / FAFICH, 2005

p. 639 (Tese / Doutorado)

(4)

Resumo

O objetivo deste trabalho é tomar a psicanálise – especificamente a obra freudiana, considerada como obra fundacional do campo psicanalítico – como objeto da reflexão filosófica. No entanto, consideramos que esta tarefa não pode ser levada a bom termo se nos restringirmos ao domínio epistemológico, com o intuito de investigar o problema da cientificidade da psicanálise. Os critérios epistemológicos não são estáveis e, no último século, se deslocaram do empirismo lógico para abordagens que enfatizam aspectos sociais e históricos. Esta transformação da epistemologia, que está correlacionada com a ascensão das ciências humanas parece indicar uma profunda mudança do pensamento moderno que foi filosoficamente diagnosticada como crise do paradigma da subjetividade.

Ora, a psicanálise, qualquer que seja a avaliação acerca de sua cientificidade, foi um dos saberes que – por meio de suas teorias do inconsciente e da pulsão – contribuiu significativamente para a eclosão desta crise do paradigma da subjetividade, que interpretamos como sendo expressão de uma dialética intrínseca da modernidade. Deste modo, a reflexão filosófica sobre a psicanálise deve ultrapassar as fronteiras da epistemologia e se colocar no horizonte mais amplo da dialética da modernidade.

(5)

Abstract

The purpose of this paper is to present psychoanalysis – specially the freudian work considered as the foundational act of the psychoanalytical field – as an object of the philosophical reflection. However, we think that this task cannot reach a reasonable success if we confine ourselves in the epistemological domain with the aim of investigate the problem of the scientific character of the psychoanalytical theory.

Nevertheless the epistemological criteria are not stable and, during the last century, moved from logical empiricism to na approach emphasizing social and historical features. This change in epistemology which is related to the rising of human sciences seems to show a deep transformation in modern thinking, philosophically explained as a crisis of the paradigm of subjectivity.

Now, psychoanalysis, whatever may be the evaluation of its scientific character, was one of the knowledges contributing meaningfully to the eruption of this crisis of the paradigm of subjectivity by way its conceptions regarding unconscious and drive. This we interpret as being the expression of an intrinsical dialectic of modernity.

Thus, philosophical reflection on psychoanalysis ought to surpass the frontiers of the epistemology and attain the larger horizon of this dialectic of modernity.

With the perspective of this new approach, however, we meet a paradox: psychoanalysis is not only the object but also the subject of the dialectical process in which it is contained and contributed decisively to the change of the philosophical thinking which expresses this process.

So, taking as reference the heideggerian thinking we try to face this paradox using a more radical form of thought, the discourse of an anthropology of Knowledge and the hermeneutical ontology.

(6)

DEDICATÓRIA

Para Jacqueline, Matheus, Maria Clara e Ana Elisa que habitam o amor e são o horizonte e o sentido sem os quais tudo seria nada.

(7)

AGRADECIMENTOS

Poucos têm a sorte de conviver e aprender com um verdadeiro filósofo. Eu tive este privilégio. O de ser um discípulo menor do pensador maior que foi o Pe. Henrique Cláudio de Lima Vaz S.J.. Este humilde trabalho testemunha ao mestre incomparável e inesquecível a gratidão que nasce pectore ab imo.

Ao Prof. Dr. Ivan Domingues pela generosidade com que acolheu este projeto e com ele se comprometeu com o melhor dos compromissos, o do trabalho partilhado.

Ao Prof. Dr. Pe. João Batista Libânio S.J. que sempre soube unir a inteligência e o coração na disponibilidade de uma já longa amizade.

Ao Prof. Ricardo Fenati, polemista brilhante e amigo sempre presente nas sendas da vida e do pensamento.

Ao Prof. Dr. Eduardo Dias Gontijo e à Profa. Dra. Telma de Souza Birchal pela cordialidade com que me receberam e pela benevolência com que leram as muitas e tediosas páginas desta tese.

Aos queridos colegas do Departamento de Filosofia da UFMG onde, por tantos anos, encontrei um ambiente de dignidade no trabalho e de respeito na diferença.

Aos meus alunos e ex-alunos, já tão numerosos, que renovam sempre as interrogações e desafiam as respostas.

(8)

ÍNDICE

INTRODUÇÃO 13

PRIMEIRA PARTE: Demarcação de uma problemática filosófica 37 CAPÍTULO I: Psicanálise e epistemologia: A reciprocidade da crítica 37

I.1. Freud: entre a ciência e a filosofia 39

I.2. A psicanálise e os limites da epistemologia 88 CAPÍTULO II: Experiência e razão: O sentido onto-antropológico da psicanálise

108

II.1.Sobre o estatuto da psicanálise 108

II.2.O campo do humano 131

II. 3. A psicanálise na dialética da modernidade 175

II. 3.1. Parâmetros de leitura 175

II.3.2. Dialética da modernidade 182

CAPÍTULO III: A Viena plural: O laboratório da modernidade 211 III.1. A problemática da relação da psicanálise com a cultura vienense

211 III.2. Esquema dialético de gênese: uma proposição filosófica 252 III.3. Exposição dos momentos lógicos da gênese da psicanálise 265 III.3.1. O momento da particularidade contextual 269 III.3.2. O momento da universalidade intencional 293 III.3.3. O momento da singularidade conceptual 313 SEGUNDA PARTE: O movimento do pensamento freudiano 319 CAPÍTULO IV: Elementos para a reconstrução do argumento metapsicológico

320

IV.1. Consideração preliminar 320

IV.2. Pressupostos para a leitura da obra freudiana 338 IV.3. Periodização e movimento do pensamento freudiano 348

IV.3.1. Continuidade e periodização 348

IV.3.2. Articulação dialética estrutural 375

CAPÍTULO V: O primeiro movimento do pensamento freudiano 380

V.1. O enigma da clínica 380

V.2. A teoria da defesa 397

V.3. Considerações metapsicológicas 406

V.4. Considerações filosóficas 430

CAPÍTULO VI: O segundo movimento do pensamento freudiano 452

VI.1. Experiência e modelo transcendental 452

VI.2. Sexualidade e cultura 482

(9)

VII.1. Do narcisismo à pulsão de morte 528

VII.1.1. A realidade impossível 528

VII.1.2. O sujeito melancólico 543

VII.1.3. O insólito eu 553

VII.1.4. A alteridade absoluta 558

VII.2. O argumento metapsicológico: uma síntese 562

VII.3. O paradoxo da finitude 572

CONCLUSÃO 585

BIBLIOGRAFIA 598

(10)

Ao compreender o pensar como o que distingue o homem, estamos recordando uma pertinência recíproca, que diz respeito ao homem e ao ser (...) Evidentemente o homem é um ente. Enquanto tal ele pertence, como a pedra, a árvore, a águia, ao todo do ser. Pertencer significa ainda aqui: estar ordenado no ser. Porém, o que distingue o homem reside em que, enquanto essencialmente pensante, está aberto ao ser, está colocado diante dele, permanece relacionado com ele e, assim, a ele corresponde. O homem é propriamente esta relação de correspondência e somente isto. “Somente” não significa nenhuma limitação, mas um excesso. No homem reina uma pertinência ao ser que escuta o ser, porque ela se pôs a ser por ele apropriada. E o ser? Nós o pensamos em seu sentido originário como presença. O ser não se apresenta ao homem de modo ocasional ou excepcional. O ser somente é e dura na medida que chega ao homem por meio de sua interpelação.

(11)

Introdução

A psicanálise pode ser considerada como uma disciplina independente, como um saber autônomo e que, como tal, pode ser abordado numa perspectiva estritamente internalista, isto é, ela pode ser examinada tanto em suas articulações conceituais intrínsecas quanto em relação ao campo fenomênico que pretende elucidar e no qual pretende intervir. Este tipo de abordagem configuraria um projeto de trabalho interno ao universo teórico e prático da psicanálise e seria, em princípio, estranho à intenção filosófica, sobretudo, se a abordagem se circunscrever a temas específicos da clínica e/ou da teoria. Devemos, não obstante, observar que a busca da elucidação das articulações teóricas internas de uma ciência particular acaba levando, quase sempre, à pergunta acerca de seus fundamentos, o que pode ter grande relevância filosófica

De qualquer modo não foi o que pretendi com este trabalho, que ora apresento como tese, visando a obtenção do doutorado em filosofia. O meu projeto foi bem outro, pois o que pretendi foi abordar a psicanálise a partir de uma estrita intenção filosófica. A minha pretensão não é abordar a psicanálise enquanto um saber que reivindica a sua legitimidade científica a partir de si mesmo, mas debruçar sobre ela como um objeto de reflexão filosófica, assim como outros objetos culturais – a literatura, as artes plásticas, as ciências da natureza, a política, etc. – também podem ser submetidos à uma perquirição rigorosamente filosófica. Tarefa que creio ser imprescindível para a filosofia que, como é óbvio, não se pode dar ao luxo de desconhecer os graves desafios e as estimulantes hipóteses provenientes da psicanálise. Creio, porém, que também a filosofia seja imprescindível para a psicanálise, que não pode se fechar às suas intuições e aportes conceituais, pois esta abertura é uma das formas essenciais para ela de se manter como um saber vivo e dinâmico. Pois, como observa o Prof. Zeferino Rocha

(12)

enriquecimento para a compreensão mais fecunda e eficaz de muitos dos seus conceitos metapsicológicos.1 Por esta citação se vê que a filosofia não é um adorno ou uma erudição que se acrescenta à psicanálise, uma vez que pode contribuir especificamente para o avanço de sua teorização como, aliás, o supracitado artigo ilustra, ao demonstrar a significativa importância das concepções heideggerianas de angústia e temporalidade para uma nova compreensão dos conceitos psicanalíticos de “angústia real” (Realangst) e transferência.

Considero, entretanto, este trabalho como uma abordagem da psicanálise que se coloca numa perspectiva primordialmente externalista. Com isso quero dizer que a minha abordagem inclui três aspectos: em primeiro lugar, não tenho a intenção de me ater à elucidação interna do texto freudiano e, muito menos, proceder à uma exegese, buscando esclarecer os conceitos e as passagens mais obscuras por meio de seu remetimento recíproco 2 ; em segundo lugar, procurei situar a psicanálise no contexto sociocultural do seu nascimento e desenvolvimento em dois níveis diferentes: no mais genérico, que designei como dialética da modernidade e no mais próximo, que é o da modernidade vienense; em terceiro lugar, procurei explicitar a minha intenção filosófica em diversos momentos, mostrando que a relevância da contextualização depende de algumas pressuposições. Gostaria de examinar, com um pouco mais de detalhe, estes dois últimos aspectos, a começar pela questão dos pressupostos. Antes, porém, farei algumas poucas considerações acerca de como compreendo a tarefa da filosofia.

Quando me propus abordar a psicanálise, não o fiz na perspectiva de uma história das idéias, com o intuito de levantar algumas correntes e/ou doutrinas filosóficas e científicas que pudessem ter influenciado

1

Cf. ROCHA, Zeferino. “Freud e a filosofia alemã na segunda metade do século XX”. Síntese,

v.31, n. 99 (2004) 45-64. Citação, p. 46.

2

Este seria um trabalho de grande relevância, como podemos ver nas preciosas notas

inseridas por James Strachey em sua tradução de Freud para o inglês (Ver o apêndice contido

na bibliografia). Não obstante, um trabalho deste tipo – em se tratando de psicanálise e não de

(13)

tangencialmente o pensamento freudiano e também, de alguma forma, a teoria psicanalítica. Ao contrário, acredito, como ressaltei no segundo capítulo, na relevância intrínseca do contexto, uma vez que a psicanálise está intimamente inserida do dinamismo espiritual ou ideo-histórico da cultura ocidental moderna. O uso da expressão “ideo-história” (Geistesgeschichte) já traz em si um pressuposto: o de que as idéias, ou recorrendo a um termo hegeliano, o espírito (Geist), não é uma superestrutura e, muito menos, um epifenômeno produzido pelos processos socioeconômicos de base, mas penetra no conjunto do tecido sociocultural e possui uma certa densidade ontológica. As idéias não são meras fantasmagorias, pois elas são reais e a sua interação na totalidade da vida sociocultural pode ser estudada no domínio conceptual da filosofia da cultura.

Talvez isso possa parecer um tanto vago, mas eu gostaria de enfatizar o paradoxo que atravessa esse domínio conceptual que, de certa forma, se projeta no conjunto do empreendimento filosófico. Segundo Henrique Vaz, este paradoxo pode ser formulado da seguinte maneira: sendo um produto da cultura, um objeto cultural dentre outros, a filosofia – considerada em sua intenção crítica universal e em sua radical reflexividade – distancia-se da cultura em que se enraíza e adquire um caráter atópico. Este paradoxo não significa, entretanto, que haja uma contradição insanável entre as duas dimensões da filosofia: o seu estatuto atópico de origem e a condição hermenêutica de sua realização, pois a sua inteligibilidade não é abstrata, não se circunscreve às condições estruturais do sujeito epistêmico, mas provém da reflexividade intrínseca da cultura.

Este paradoxo traz consigo uma interrogação que atravessa toda a história da filosofia: não se inscrevendo no mesmo plano dos outros objetos culturais a filosofia é permanentemente impelida a perguntar por si mesma, a interrogar o que a define em sua singularidade. Toda obra filosófica acaba, portanto, refletindo sobre a sua própria significação filosófica e produzindo os critérios que a permitam definir-se enquanto tal. 3

3

Ao discorrer sobre a relação paradoxal entre filosofia e cultura e sobre a imposição

metafilosófica de um filosofar sobre a filosofia, Henrique Vaz conclui: “Eis aí, com efeito, o

(14)

Por conseguinte, a filosofia só constrói a sua identidade por meio da polarização de seu movimento pendular: brota de condições históricas específicas para delas se distanciar criticamente, porém após este refluxo reflexivo, ela sai de si mesma e intenciona o mundo que, de certa forma, a engloba. Esta volta para o mundo significa, porém, um dobrar-se sobre si mesma, numa leitura paciente e reiterada de sua própria tradição. Embora para outras ciências esta autofagia possa parecer absurda, nada há de estranho nisso se nos lembrarmos do caráter atópico da filosofia, que lhe impõe sempre um olhar retrospectivo, um olhar que recolhe a efetividade das coisas para interrogá-las em seu sentido. Afinal, esta é a sua vocação maior, pois ao interrogar a si mesma a filosofia não se põe apenas como um objeto cultural particular, mas sustenta a sua posição privilegiada, a de ser intérprete do mundo. É claro, porém, que esta volta sobre si mesma é um retorno ao discurso originário que já estava presente no universo simbólico da cultura e, por conseguinte, fazer filosofia da filosofia não só é inevitável, como não é o mesmo que enclausurar-se num ocioso jogo de espelhos. Nesse sentido, a filosofia não é um conjunto de doutrinas que se superpõem à efetividade da história que, indiferente, segue o seu curso, mas é um ingente esforço de captação dessa história mesma. Pois, e aqui permaneço fiel à intuição hegeliana, a história não é um amontoado heteróclito de acontecimentos ou o simples fluir inexorável e insensato do tempo, mas nos dá algo a pensar. Desse modo, a separação entre o conceito acadêmico de filosofia (Schulbegriff), empenhada na elucidação crítica de seu discurso e de sua efetivação histórica, e de um conceito mundano de filosofia (Weltbegriff), interessada nos grandes problemas sociais e humanos, poderia ser superada, já que não haveria um abismo entre a razão e a história. 4

interrogação sobre o seu próprio ser, a necessidade de justificar-se como pensamento do uno

na multiplicidade dos discursos e dos seus objetos”. Cf. VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de

Filosofia III: Filosofia e Cultura. São Paulo, Loyola, 1997. p. 12.

4

Evocamos aqui a célebre definição hegeliana de filosofia como “seu tempo captado no

conceito”. Hegel critica a alternativa entre a limitação da razão que caracteriza a filosofia

acadêmica e a satisfação nas crenças que é a tendência da filosofia popular. Pouco antes de

(15)

Por outro lado, a história não é, certamente, um encadeamento transparente de razões que, com alguma astúcia, ruma para a realização do absoluto e se aproxima de uma perfeita transparência que já estaria previamente assegurada. A filosofia persiste em meio a todas as contingências e dramas históricos, mas não se pode esquecer, conforme nos relembra a severa advertência de Adorno, que se ela pensa o faz após Auschwitz e os muitos horrores do século que findou não lhe podem ser indiferentes. Por outro lado, entregar-se ao desespero do sentido e mergulhar, não sem algum gozo, numa vida que não seria mais do que sound and fury é o mesmo que se render diante da cega violência e confessar que nada pode ser feito quanto aos horrores futuros que certamente virão. É preciso não retroceder, mas também não parar na constatação da tragédia, porque fazer a travessia de Auschwitz implica em não ceder diante da brutalidade dos fatos, mas em considerá-los sub specie redentionis pois, como conclui Adorno em suas concisas reflexões

morais, não resta à filosofia senão “considerar todas as coisas tais como elas se apresentariam a partir de si mesmas do ponto de vista da redenção”.5 A filosofia não pode se furtar à sua responsabilidade histórica e esta consiste em responder a este “algo a pensar” que a história nos oferece e nos impõe. O pensamento seria, no entanto, inteiramente impotente se fosse acrescentado de fora sobre as coisas, ou seja, se não for concebido como uma perquirição dos fragmentos de inteligibilidade que habitam as próprias coisas. Reencontramos aqui o cerne da intuição hegeliana, porém fazendo uma suspensão de juízo quanto ao absoluto, prefiro falar apenas em fragmentos, porque a pobre e curta inteligência humana não tem acesso senão a eles e não lhe é dado aceder à plenitude do sentido. E este é o outro lado desta expressão composta e polarizada que é a “ideo-história”, o de aceitar que a idéia refletida não apreende a totalidade da história, que não é como uma

no contexto brasileiro, desta separação entre o acadêmico e o popular na origem uspiana da

profissionalização da filosofia. Cf. ARANTES, Paulo Eduardo. “Um depoimento sobre o Padre

Vaz”. Síntese. v. XXXII, n.102 (jan.-ab. 2005) 5-24.

5

Cf. ADORNO, Theodor W.. Minima Moralia. Reflexões a partir da vida danificada. São Paulo,

(16)

substância, que subjaz e permanece no transcurso dos acontecimentos, mas está carregada de significações que não são e, talvez, jamais serão, tematizadas e traduzidas pela razão. A palavra, porém, que aqui cabe não é de desespero ou de revolta e tampouco de indiferença niilista, mas a de um engajamento distanciado no mundo, isto é, a atenção e o cuidado para com as coisas sem se deixar consumir e arrastar por elas, se reservando diante da turbulência insensata de uma época que gira loucamente em torno de seu vazio se comprazendo na vã expectativa de ocultá-lo. Heidegger chamou esta manutenção simultânea do sim e do não frente ao mundo técnico como “a serenidade para com as coisas” (die Gelassenheit zu den Dingen) e “a abertura para o mistério” (die Offenheit für das Geheimnis) , que ele circunscreve da seguinte forma:

A serenidade para com as coisas e a abertura ao mistério nos dá a perspectiva de um novo enraizamento. Este poderia ser conveniente, algum dia, para evocar, numa nova configuração, o antigo enraizamento, agora em rápido desvanecimento. 6

A filosofia não pode, portanto, recuar desse entrecruzamento paradoxal de comprometimento e serenidade, de proximidade e distanciamento, cujo nexo consiste na perseverança com que garimpa o sentido no meio das coisas e dos acontecimentos. Uma das formas com que o fazer filosófico nega a si mesmo em sua responsabilidade, é o do mimetismo metodológico, em que ele imita a especialização das ciências positivas e se recolhe na incessante decifração de seus textos. Embora seja esta uma tarefa necessária, ela não se confunde com aquele refluxo reflexivo que faz parte do movimento pendular do pensamento.

Acredito, é claro, que possamos ler, por exemplo, um texto kantiano, recorrendo em nossa leitura ao melhor aparato filológico disponível, mas sempre tendo em mente que o objeto de nossa exegese não é um texto auto-suficiente e sim a expressão de uma visada sobre o mundo, seja sobre os desafios postos pela nova ciência ou sobre as razões da moralidade, que se

6

Cf. HEIDEGGER, Martin. Gelassenheit (Serenidade). Pfullingen, Verlag Günther Neske, 1959.

(17)

empenhou numa tarefa que lhe parecia imprescindível numa época em que a teologia e a moral cristãs estavam sob intenso questionamento e pareciam não mais se adequar às injunções da modernização européia. Estudar a obra de Kant é buscar compreender a estrutura interna de sua resposta a tais desafios, mas é também examinar a sua pertinência a eles e – por que temer a palavra? – interrogá-la no horizonte da verdade.

E este é o aspecto que eu gostaria de enfatizar, o de que a tarefa primacial da filosofia não é a de se constituir numa escolástica, mas de ser fiel à sua vocação mundana. Interrogar a si mesma e voltar-se para o mundo não são duas vocações que se opõem, porque são duas intenções que se interpenetram e se colocam sob a égide do ideal regulativo da verdade.

É compreensível que num mundo em que os saberes são muitos e que a filosofia parece ter perdido a hegemonia acadêmica e cultural que antes gozava, os filósofos tendam a se encolher defensivamente em seus guetos de erudição. Contudo, também é bom não nos esquecermos, ao menos esta é a minha opinião, que levar esta atitude às suas últimas conseqüências não significa um avanço no rigor do pensar, pois muitas vezes o pretenso rigor filológico acaba desaguando numa demissão do pensamento, numa lastimável concessão ao mais crasso dos positivismos e no reconhecimento da irrelevância da filosofia numa época que se submeteu ao império da racionalidade científica. O culto desmesurado à erudição é o avesso dissimulado do positivismo triunfante, aquele que nos interdita de pensar e proclama que talvez tenhamos algo a dizer sobre os nossos textos, porque devemos nos calar diante do mundo.

Logo no início de sua magnífica obra sobre a responsabilidade da filosofia, Vittorio Hösle, que desponta como um dos mais eminentes filósofos contemporâneos, após observar que o distanciamento crítico em relação a todos os subsistemas culturais deve levar a filosofia a questionar a si mesma e à sua rotina enrijecida, afirma sem rodeios que

(18)

tempo, se está obrigado a constatar, com tristeza, que os estudantes mais inteligentes e providos dos melhores dons filosóficos, não podem se decidir a abraçar uma carreira universitária de filósofo, não se pode deixar de pensar, e por boas razões, que a filosofia atual não está mais à altura da idéia de filosofia. (Itálico do autor) 7

Acredito, portanto, que hoje, mais do que nunca, a filosofia deva assumir a sua vocação mundana e ousar pensar, ainda que com prudência e humildade, os rumos desafiantes do nosso tempo e não temer questionar as ciências, por maiores que sejam as barreiras impostas pela especialização. Assim, podemos e devemos fazer filosofia não apenas retomando a tradição filosófica, mas também refletindo sobre a física quântica ou sobre as artes plásticas e também, como nos propomos, sobre a psicanálise pois, independentemente do modo como a avaliemos, enquanto ciência e prática terapêutica, ela é, inegavelmente, um objeto fascinante, seja pela originalidade de sua proposta teórica, seja por sua extensão cultural ou por sua duração e influência históricas e, por tudo isso, não podemos excluí-la da intencionalidade filosófica.8

Tais considerações querem, antes de tudo, enfatizar a legitimidade e a relevância de tomar a psicanálise como objeto da reflexão filosófica porém, além disso, indicar a direção filosófica com a qual me comprometi e antecipar a dificuldade metódica que dela decorre, o que inclui uma breve exposição de meus pressupostos. Como vimos, a própria cultura é portadora de alguma inteligibilidade que deve ser, na medida do possível, tematizada reflexivamente

7

Cf. HÖSLE, Vittorio. Die Krise der Gegenwart und die Verantwortung der Philosophie.

Ttranszendentalpragmatik, Letzbegründung, Ethik. München, Verlag Beck, 1997.p. 13.

8

Sobre o caráter “inclusivo” e não “exclusivo” da filosofia enquanto “re-flexão”, enquanto

“retorno” ao mundo ou “retorno” dos objetos ao sujeito que os constitui como “mundo”, pode-se

endossar a observação de Vialatoux, segundo a qual “não é somente o domínio da percepção

e da ciência do mundo, mas todos os domínios da atividade humana – notadamente aqueles

da arte , da moral, do direito, da política – que oferecem ao pensamento reflexivo da filosofia as

ocasiões do retorno ao sujeito espiritual. Neste sentido, nos é permitido dizer, com Husserl,

que não importa de onde a filosofia pode partir, pois tudo lhe é dado à reflexão”. Cf.:

(19)

pela filosofia. Não obstante, a cultura da modernidade é constituída por tamanha pluralidade e atingiu um patamar tão alto de complexidade, que passou a exigir diversas instâncias de mediação reflexiva. Podemos encontrá-las no direito, na literatura, na teologia e em muitos outros saberes não especificamente filosóficos. E é dentre eles que situo a psicanálise que, por sua singularidade, me proponho definir como um saber que, como a filosofia, padece de uma certa atopia ou, ao menos, ocupa um lugar indeterminado no globus intellectualis. Não se confunde, no entanto, com a filosofia, porque está

voltado de modo primacial para a clínica e, por isso mesmo, por seu estatuto simultaneamente reflexivo e práxico, requer necessariamente uma elucidação especificamente filosófica. E esta é a razão pela qual a psicanálise, por mais que alguns se esforcem, jamais pode evitar a proximidade da filosofia.

Posso agora formular sucintamente a tese que pretendo desenvolver neste trabalho. Em primeiro lugar, acredito que a elucidação filosófica, que visa explicitar o significado ou a inteligibilidade da psicanálise, não pode se dar num nível exclusivamente epistemológico, mas exige a passagem para o âmbito de uma antropologia do conhecimento ou, de modo ainda mais radical, implica numa interrogação acerca do sentido onto-antropológico da psicanálise.

Em segundo lugar a minha abordagem, de acordo com a idéia acima desenvolvida de filosofia da cultura, toma como ponto de partida a relevância intrínseca do contexto sociocultural. Acredito que a psicanálise, embora padecendo de enormes dificuldades epistemológicas para se definir como ciência, responde a certas condições que emergem do que designamos como dialética da modernidade, ou seja, ela incorpora, no interior mesmo de sua teorização, elementos ideo-históricos que estariam presentes em sua gênese. Assim, a ilustração e o romantismo não são simplesmente correntes que influenciaram a formação intelectual de Freud, mas são momentos da dialética da modernidade que estão inscritos nas malhas de seu pensamento e de sua construção metapsicológica.

(20)

Isto posto, uma vez estabelecido o objetivo do nosso trabalho, que é pensar filosoficamente a cultura contemporânea elegendo a psicanálise como objeto privilegiado e mediador deste pensar, seria preciso ainda delimitar a sua natureza, precisar o seu método e apresentar o plano de sua realização.

1. A natureza do trabalho

(21)

na segunda metade do século XX. Entretanto, é preciso fazer duas ressalvas: a primeira, é que a psicanálise francesa é riquíssima e não se reduz a Lacan e nem ao lacanismo, sobretudo ao da estrita observância milleriana, e a segunda, é que a obra lacaniana é vastíssima, muito maior em extensão do que a de Freud e, como a do seu mestre vienense, não é um corpo doutrinário inteiramente logicizado e consistente, que nos cai sobre a cabeça como um pesado cofre. À medida que a sua obra vai sendo abordada sine ira et studio, por pesquisadores não mais temerosos da razzia dos militantes fanáticos e do discipulado dogmático, também vão aparecendo os descaminhos de seu percurso, as contradições, oscilações, ambigüidades e dúvidas que o assaltaram em seu nunca desmentido empenho de teorização. E aí reside a sua grandeza, a de não ter sido, ele mesmo, um lacaniano embotado e servil e por ter convocado todos os recursos intelectuais de que dispunha em sua audácia de grande criador de conceitos. Porém, quando usei acima a imagem do pesado cofre, não o fiz sem alguma ironia, pois a obra lacaniana, resultado de uma curiosidade intelectual pantagruélica, é inegavelmente hermética, não só pela dificuldade intrínseca dos temas, como também pelo excessivo barroquismo de sua linguagem, por seu gosto pelo estilo alusivo e retorcido, e pelo hábito irritante de apagar todas as pistas e influências e não reconhecer as suas muitíssimas dívidas intelectuais. A imagem do cofre traduz o hermetismo e o pesadume que a sua leitura nos impõe mas que, malgrado tais obstáculos, preserva, tão freqüentemente, diversas idéias brilhantes e fecundas.

(22)

requerida para a sua discussão. Se as menciono nesta introdução é apenas para assinalar na minha enorme dívida para com eles a minha total despretensão de originalidade. Além de Lacan e de Ricoeur, eu não poderia deixar de reconhecer que recorri, muitas vezes, aos esclarecimentos providenciais de Jean Laplanche que, não sendo um criador de conceitos tão genial como o seu antigo mestre e tendo se tornado, até mesmo, um de seus muitos desafetos é, não obstante, um dos mais cuidadosos e argutos leitores de Freud.

Foram estas algumas das minhas mediações hermenêuticas, embora tenha me concentrado basicamente no texto freudiano. Há ainda outra delimitação que deve ser feita. Não entrei, senão incidentalmente, nas áreas da clínica e da psicopatologia e, na maioria das vezes, passei ao largo dos grandes casos clínicos, que Freud tão bem soube narrar e que até hoje nos fascinam, pois o meu interesse maior foi a metapsicologia, o núcleo teórico forte da obra freudiana e, por conseguinte, à ela procurei me limitar. Embora saiba que há muito de ilusão nesse tipo de delimitação, pois como eu mesmo insisto ao longo desse trabalho, é na experiência clínica e em seu íntimo entrelaçamento com a teoria, que reside a maior fecundidade da psicanálise. Por isso, a exclusão da clínica se deu apenas na formalidade de minha abordagem e não em seu fundo, pois é na prática analítica, como tão bem mostrou Ricoeur, que se encontram essas idéias fundamentais: a atestação de que o inconsciente fala, de que a pulsão sexual é endereçada ao outro e de que a experiência analítica é a reconstrução narrativa de uma história singular e fragmentada.9 Mesmo assim, a massa textual a ser examinada seria ainda muito grande e, por isso, selecionei apenas alguns textos para um exame mais específico, ainda que muitos outros, que não são citados, permaneçam como background da leitura dos primeiros. Usei, freqüentemente, o termo

“psicanálise” sem restrições, mas nele estão contidas as delimitações

9

Cf. RICOEUR, Paul. A crítica e a convicção. Lisboa, Edições 70, 1997. p. 103-104. Ver

também Idem. “La question de la preuve dans les écrits psychanalytiques de Freud”. In Obra

(23)

anteriores: estou me referindo a uma interpretação de alguns textos da metapsicologia freudiana, embora seja preciso convir que a minha expectativa seja a da generalização da minha interpretação ao conjunto da obra freudiana.

Esse estreitamento da base textual está desenhado, portanto, contra um pano de fundo muito amplo que, na minha opinião, foi necessário descortinar para que o significado filosófico da psicanálise pudesse ser evidenciado. Por que tal amplitude? Creio que a resposta já foi dada, mas não custa reiterá-la.

Procurei compreender a psicanálise não só como um projeto científico – o que tem sido duramente contestado desde suas origens vienenses até as atuais criticas provenientes das neurociências – mas, sobretudo, como uma obra de pensamento, uma obra que, entretanto, não é apenas especulativa uma vez que se propõe a intervir na experiência concreta e nos processos de subjetivação e que, desse modo, contribuiu decisivamente para plasmar a imagem que o homem contemporâneo tem de si mesmo. E esta é a perspectiva que eu denominei como sendo a sua significação antropológica ou, mais propriamente, o seu sentido onto-antropológico. Ou seja, apesar da pretensão freudiana de erigir a psicanálise como uma ciência da natureza e em recusar energicamente sua aproximação com a filosofia, ela pode ser considerada como uma importante contribuição para a antropologia filosófica, para a qual traz uma compreensão crítica e fundamental do ser humano.10 Independentemente do modo com que avaliamos a cientificidade da psicanálise, a obra freudiana, ainda que a considerássemos como um grande desastre científico, obteve uma tão grande penetração cultural, que a ela não se pode negar o status de uma verdadeira obra de pensamento, dotada de tão extraordinária penetração psicológica que pode se ombrear com a de alguns filósofos celebrados pela força de suas intuições e sutileza de suas análises como, por exemplo, Schopenhauer, Kierkegaard e Nietzsche. Colocar Freud ao lado destes autores não é nada surpreendente, considerando-se que em suas

10

Sobre a relação de Freud com a filosofia e sua pretensão de assegurar à psicanálise um

estatuto de cientificidade segundo o modelo das ciências da natureza, recorri muitas vezes às

obras de Assoun, ver especialmente ASSOUN, Paul-Laurent. Freud, a filosofia e os filósofos.

Rio de janeiro, Francisco Alves, 1978 e Idem. Introdução à epistemologia freudiana. Rio de

(24)

obras há muitas intuições convergentes, bem como há, em abundância, análises psicológicas extremamente sutis. 11 Por outro lado, Kierkegaard e Nietzsche são universalmente reconhecidos como filósofos, o que certamente não ocorre com Freud, apesar da psicanálise ser freqüentemente incluída em diversas histórias da filosofia. De qualquer modo, nela podemos encontrar não apenas descrições e generalizações decorrentes da observação clínica, mas uma verdadeira concepção de homem que, por sua abrangência, originalidade e consistência, permite considerar a psicanálise como um capítulo na história da antropologia filosófica.12

11

Sobre a relação Freud-Nietzsche, ver: ASSOUN, Paul-Laurent. Freud e Nietzsche:

semelhanças e dessemelhanças. São Paulo, Brasiliense, 1991. Sobre uma possível

aproximação entre Kierkegaard e Freud, o que foi sugerido por Jacques Lacan no “Seminário

XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, ver: GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo.

Acaso e repetição em psicanálise. Rio de janeiro, Jorge Zahar, 1986. p. 27-38.

12

Apesar da psicanálise não ser reconhecida como filosofia, encontra-se em diversas histórias

e dicionários de filosofia, de diferentes orientações doutrinárias, alguma exposição sobre o

pensamento freudiano, o que revela o seu estatuto ambíguo. Quanto às histórias da filosofia,

podemos citar, por exemplo: REALE, G. e ANTISERI, D.. História da filosofia. Vol. III. São

Paulo, Paulinas, 1991. Cap. XXXIII. Ou, CHÂTELET, François (Org.). História da filosofia

(idéias, doutrinas). Vol. VIII. Rio de Janeiro, Zahar, 1974. Cap. I. Quanto aos dicionários,

podemos citar, por exemplo: FERRATER-MORA, José. Diccionario de filosofia. Madrid,

Alianza, 1981. Vol. II. p. 1290-1291. Ou, Diccionario de filosofos (Centro de Estudios

Filosoficos de Gallarate). Madrid, Rioduero, 1986. p. 456-458. Ou ainda, Edwards, Paul (Ed.).

The encyclopedia of philosophy. London/New York, MacMillan, 1972. Vol. III. p. 249-253.

Quanto a considerar a psicanálise como um capítulo da antropologia filosófica também não é

um procedimento inusitado, ver: CAPARRÓS, Antonio. “El pensamiento antropológico de

Sigmund Freud.” In: LUCAS, Juan de Sahagun (Dir.). Antropologías del siglo XX. Salamanca,

Sígueme, 1983. Como observa Walter Schulz em sua obra panorâmica sobre o pensamento

filosófico contemporâneo: “A psicanálise é, antes de tudo, um assunto científico. Do ponto de

vista da história intelectual ela pertence ao movimento que vai de Schopenhauer e Nietzsche à

antropologia moderna e cujo problema fundamental é o da relação entre a razão e o estrato

pulsional. Não obstante, considerada a partir da amplitude e da profundidade de seus efeitos,

a efetividade da psicanálise dificilmente poderia ser supervalorizada. Atualmente pensa-se

quase qualquer criação cultural mais ou menos segundo categorias psicanalíticas”. Cf.: Schulz,

(25)

Ora, relacionei o significado antropológico da psicanálise ao seu enraizamento no solo da modernidade e como a minha interpretação da modernidade é feita desde uma perspectiva filosófica, então a caracterizamos à luz da categoria de subjetividade, desde que fique claro que há não apenas uma, mas uma pluralidade ou uma verdadeira dialética da modernidade e que, portanto, também não há apenas uma e sim diferentes concepções modernas de subjetividade. O tema da subjetividade em seu conteúdo é, portanto, muito abrangente e sumamente complexo. Por isso, o contornei e me limitei a expor o que creio ser um de seus significados axiais e que expressa a compreensão que a modernidade tem de si mesma e de seus impasses.

Há, portanto, neste trabalho, uma certa tensão entre a abrangência de seus pressupostos e parâmetros de leitura e o foco restrito de sua base textual. Tenho a expectativa, por outro lado, de haver compensado este desequilíbrio por meio de dois expedientes: em primeiro lugar, através da argumentação que visa amarrar esses dois pólos, o analítico e o especulativo e, em segundo lugar, pelas notas de pé de página que querem indicar, mesmo deixando-o inexplorado, o subsolo onde se sustenta a minha argumentação.

Neste subsolo se dá a confrontação de dois eminentes intérpretes do destino da filosofia ocidental e, por via de conseqüência, da modernidade: Hegel e Heidegger. Entre eles há – apesar da aparência de haver quase que uma alternativa de exclusão entre a filosofia do espírito absoluto e o pensamento da diferença ontológica – um longo, rico e instigante confrontamento (Auseinandersetzung), que pressuponho como sendo de crucial importância filosófica. É óbvio que não pude abordá-lo, sequer tangencialmente, todavia ele está sempre presente no argumento que vou desenrolando e, algumas vezes, foi registrado nas notas de pé de página.

2. O Método do Trabalho

(26)

da subjetividade moderna; o analítico ou descendente, que me levaria de volta ao texto freudiano e convergiria na focalização de suas articulações internas. Não foi possível seguir este itinerário, tal como o havia projetado inicialmente, pois isso me obrigaria a escrever um trabalho excessivamente longo, ultrapassando, certamente, um número razoável de páginas. Além disso, eu seria obrigado a montar um número muito grande de mediações teóricas, o que dificultaria em muito a compreensão do argumento central. Fui obrigado, por estas razões, a restringir drasticamente a ambição que motivou a realização deste trabalho e para que ele pudesse ser viabilizado eliminei diversos desdobramentos em ambos os movimentos. Do lado especulativo, a exposição sobre a natureza e os níveis reflexivos da cultura foi quase que completamente suprimida, assim como um amplo desenvolvimento da dialética da modernidade e da discussão filosófica acerca da problemática da subjetividade, que permaneceu em parte, porém muito resumida em relação ao que havia sido a sua redação original. Do lado analítico, os cortes não foram menos drásticos, muitos textos freudianos, mesmo os que se encaixavam no âmbito mais estrito da teoria psicanalítica, foram excluídos. Além disso, não pude me dedicar a um trabalho mais minucioso de leitura, como pretendia efetuar, ao menos com relação à série dos artigos metapsicológicos.

(27)

temerária, considerando as lacunas e precariedade do que foi realizado, contudo não pude e nem sei fazer de outro jeito e devo arcar com o ônus de minhas limitações.

Como se trata de um trabalho de fronteira gostaria ainda de emitir a minha opinião sobre a reserva com que alguns psicanalistas vêem uma abordagem filosófica da psicanálise e a desconfiança de que se trata de uma estratégia de anexação normalizante da subversão freudiana. Creio, ao contrário, que tanto a filosofia não pode ficar indiferente aos desafios provenientes da psicanálise, quanto esta não pode evitar a interlocução crítica com a filosofia. A abordagem filosófica da psicanálise independe da opinião que Freud tinha da filosofia, assim como também não necessita de nenhuma legitimação por parte da comunidade psicanalítica, pois ela se impõe à intencionalidade do filósofo a partir da contradição que atravessa o próprio discurso freudiano, enquanto obra de pensamento e expressão da cultura. Ela se justifica em função do lugar hermenêutico ocupado pela psicanálise na história das idéias, um lugar que é, ao mesmo tempo determinante da obra e determinado pela objetividade de seus efeitos. Por isso, a interpretação filosófica vem necessariamente de fora, da história efetual (Wirkungsgeschichte) onde estão inseridos tanto o interpretans quanto o interpretandum. Isso não exime o intérprete de se proceder a uma reconstrução

(28)

Quero crer, entretanto, que a limitação exegética deste trabalho não o prejudica essencialmente, uma vez que, na mesma linha desenvolvida por Vittorio Hösle, devo assumir para o meu modesto trabalho as palavras com que o Prof. Ivan Domingues definiu a sua tese de habilitação a Professor Titular da UFMG:

Tendo por escopo esse conjunto de problemas que remonta seja à visão de ciência, seja ao exame do método e dos resultados de sua aplicação ao real empírico, em que os aspectos históricos do percurso da ciência moderna e os expedientes de comentários de textos dos autores escolhidos, conquanto necessários, não ocupam o primeiro plano, a tese que deu origem ao livro é pois, em sua índole, uma tese de idéia ou de doutrina, afastando-se tanto do gênero historiográfico (história das idéias) como do gênero hermenêutico ou exegético (comentário de texto). E mais: a despeito da forte interlocução com a ciência, a tese e o livro são antes de tudo uma obra de filosofia (...)13

Ouso, pois, assumir essas mesmas palavras para dizer que a minha é uma tese de idéias e que nela o fundamental é, senão a consistência, ao menos a relativa pertinência do longo argumento que a atravessa.

Procurei abordar a obra freudiana dentro dos mesmos parâmetros hermenêuticos com que poderia ter abordado uma obra filosófica. Sem querer me comprometer excessivamente com a querela dos métodos em torno da interpretação do texto filosófico, limito-me a recorrer novamente a um texto do Prof. Ivan Domingues, no qual ele apresentou uma espécie de tipologia das interpretações. 14 Segundo o autor, teríamos diferentes tipos de interpretação: as “intencionalistas” , referidas à intenção do autor; as “contextualistas”,

13

Cf. DOMINGUES, Ivan. Epistemologia das ciências humanas. Tomo I: positivismo e

hermenêutica. São Paulo, Ed. Loyola, 2004. p. 24.

14

DOMINGUES, Ivan. “A abordagem estrutural do texto filosófico”. In: DOMINGUES et Alii.

Estruturalismo: Memória e Repercussões. Rio de janeiro, Diadorim, 1996. p. 137-152. Ver

também o resumo de toda essa questão da interpretação dos textos através das duas máximas

da hermenêutica, citadas por Betti, e claramente explicadas no livro que citei na nota anterior,

(29)

concedendo primazia ao contexto de produção e ou difusão da obra; a “subjetivista” valorizando a leitura da obra pelo intérprete e a “textualista”, afirmando a autonomia do texto em seu aspecto de conteúdo ou em seu aspecto formal. Esta última abordagem, em seu aspecto formal, poderia adotar um viés de superfície, seguindo a articulação lógica do texto em sua literalidade, como seria o caso de uma exegese unilateralmente analítica ou adotar um viés de profundidade, como seria o caso da exegese estrutural, que investiga a articulação subjacente ao texto e o sentido que estaria nele presente, mas que não se ofereceria na imediatidade da leitura de superfície. Ora, todas estas diferentes posturas metódicas, demonstra o autor em seu artigo, trazem tentações e riscos que devem ser explicitados para poderem ser exorcizados. Adverte ele, sobretudo, justamente tê-lo tomado como tema privilegiado de sua análise, para o risco de absolutização do texto contido na abordagem estrutural. À luz dessas considerações é evidente que, se por um lado todas as abordagens podem levar a alguma tipo de distorção e infligir alguma violência à obra, por outro lado, é rigorosamente impossível não adotar um método capaz de prover uma certa mediação das duas posições extremas: a da mera repetição do texto-objeto, com a recíproca anulação do intérprete-sujeito ou a da substituição do texto-objeto, com a sua recíproca redução ao texto do intérprete e desconsideração de sua autonomia e de sua significação imanente. Em ambos os casos a tarefa da interpretação seria supérflua, ou seja, tanto sendo repetido, quanto sendo substituído, o texto desapareceria como interpretandum, como objeto de interpretação que contém um excesso de sentido que transborda de sua literalidade e que subverte a intenção do intérprete. Essas considerações visam apenas indicar que me esforcei em adotar um certo equilíbrio entre essas duas posições extremas, por isso, mesmo quando não está sendo citado ou mesmo que não seja submetido à uma análise minuciosa, o texto freudiano está sempre presente, uma presença que se dá não apenas em sua letra mas, e acima de tudo, em seu espírito, por meio das interrogações que a obra mesma instaurou, ao se projetar numa história hermenêutica.

3. O plano de realização

(30)

O itinerário que foi proposto não é muito complicado mas, mesmo assim, gostaria de apresentá-lo nesta introdução, com o objetivo de facilitar a leitura deste trabalho. O nosso argumento está dividido em dois momentos, que correspondem às duas partes em que está formalmente subdividido o texto.

A primeira parte visa fazer a demarcação da problemática ou do pano de fundo que orienta a minha interpretação. Tomei a obra freudiana como fundacional do campo psicanalítico, procurei mostrar que a consciência filosófica espontânea de Freud, isto é, o modo como ele concebia a ciência e como interpretava o novo saber que estava criando era não só insuficiente, mas contraditório com o seu próprio desenvolvimento teórico. Propus, então, a distinção entre doxa freudiana e episteme psicanalítica e procedi à uma breve incursão na obra freudiana, apenas para mostrar como seria difícil enquadrá-la nos cânones da epistemologia hegemônica e indicando, além disso, que a abordagem epistemológica seria bastante limitada (Capítulo I). A seguir, ampliei a minha abordagem, passando da questão epistemológica para o campo do humano, com o intuito de mostrar que a compreensão filosófica da psicanálise exige o deslocamento da interpretação numa direção antropológica, pois o que a justifica ou o que sustenta a sua inteligibilidade é o seu sentido antropológico. Esse deslocamento, da epistemologia para o onto-antropológico, deve ser compreendido à luz do que designei como dialética da modernidade (Capítulo II). Finalmente, feita a demarcação da minha problemática, descrevi, em alguns de seus traços mais relevantes, a cultura vienense de modo a caracterizá-la como um espaço privilegiado de manifestação da dialética da modernidade. E insisti na afirmação de que esta gênese não se refere apenas aos condicionantes externos, que foram propícios ao nascimento da psicanálise, mas que ela se encontra introjetada no próprio percurso da teorização freudiana (Capítulo III).

(31)

movimentos do pensamento freudiano. O primeiro deles, que considero como um movimento de transcendentalização e que levou à proposição e consolidação da primeira tópica (Capítulo V). O segundo, em que a radicalização da teoria da sexualidade e sua articulação com a cultura leva à introdução do narcisismo e ao impasse teórico daí decorrente (Capítulo VI). O terceiro, que considero como um movimento de destranscendentalização, que tem o seu ponto de inflexão na postulação da pulsão de morte e que persegue, na construção da segunda tópica, uma síntese que permanece sempre instável e um tanto obscura (Capítulo VII).

Na verdade, todo este itinerário, que acabamos de descrever esquematicamente, é apenas parte de um desenvolvimento filosófico maior, que seria a transformação hermenêutica da filosofia transcendental. Uma transformação, próxima à da pragmática transcendental, que propõe o retorno do pensamento reflexivo à experiência histórica, sem que este retorno implique na adoção do historicismo ou de um perspectivismo relativista. A palavra “hermenêutica”, que qualifica essa transformação da filosofia transcendental, visa acentuar a sua dimensão existencial, experiencial e concreta, contra uma certa tendência formalizante e excessivamente ilustrada que parece estar presente, por exemplo, na perspectiva habermasiana da racionalidade comunicacional. Esse caráter hermenêutico não pode ser alcançado senão por meio de um intenso e árduo diálogo da filosofia com os diversos saberes que, em nossa modernidade tardia, também realizam a função da mediação reflexiva. Ou seja, a transformação hermenêutica do pensamento transcendental só pode se constituir por meio do compromisso dialógico da filosofia com esses saberes e, portanto, se for empreendido o tortuoso caminho que Ricoeur definiu como sendo a “via longa” da reflexão. A psicanálise, é o que cremos, é uma das estações desse caminho que embrenha na cultura, para nela descobrir a reflexividade de uma subjetividade não solipsista que não reflui para si mesma, mas que se encontra sedimentada em suas obras, nessas grandes construções simbólicas através das quais o homem busca a apreender o seu próprio ser.

(32)

itinerário de Ricoeur15, mas oferece uma oportunidade excepcional para a compreensão dos limites e possibilidades da razão hermenêutica.16 Por outro lado, uma ontologia posta abruptamente acaba decaindo num sistema categorial vazio e distante da condição encarnada da existência humana, uma acusação de abstração que foi dirigida contra a dialética hegeliana, mas que poderia ser estendida a todo programa fundacionista. 17 Seja como for, é preciso saber repetir com Freud, já envelhecido no esforço de compreensão deste enigma que é o inconsciente: non líquet, não está claro!

Primeira Parte – Demarcação de uma Problemática Filosófica

Capítulo I – Psicanálise e Epistemologia: a reciprocidade da crítica

15

Estou me referindo aqui ao extraordinário ensaio de Ricoeur sobre Freud e que foi tão mal

recebido no meio psicanalítico francês, àquela época conturbado pelas paixões sectárias. Cf.:

RICOEUR, Paul. De l’interprétation: essai sur Freud. Paris, Éd. Du Sueil, 1965. Sobre a

recepção do livro de Ricoeur sobre Freud e, em especial a reação dos lacanianos no contexto

da “revolta antifenomenológica” suscitada pelo estruturalismo triunfante, ver: ROUDINESCO,

Elizabeth. História da psicanálise na França. A batalha de cem anos. Vol. II: 1925-1985. Rio de

Janeiro, Jorge Zahar, 1988. p. 395-423. Ver também: DOSSE, François. Paul Ricoeur. Les

sens d’une vie. Paris, La Découverte, 2001. p. 321-331.

16

Um dos problemas axiais da razão hermenêutica é o de sua validação metódica, problema

que é, em última análise, um dos temas centrais de seu confronto com uma racionalidade

crítica, mas também com um tipo de conhecimento que, inspirado na ciência, se distancia da

questão do sentido Ver: ORAA, José Maria Aguirre. Raison critique ou raison herméneutique?

París/Vitoria, DuCerf/Ed. Eset, 1998. Especialmente a conclusão, p. 323-381.

17

Para uma visão breve e panorâmica, mas muito bem articulada, da problemática

fundacionista, ver: OLIVEIRA, Manfredo de Araújo. Sobre a fundamentação. Porto Alegre,

Edipucs, 1993. Para a crítica da vertente dialética do fundacionismo como pensamento vazio,

ver: Idem. Para além da fragmentação. São Paulo, Loyola, 2002. Esp. p. 13-31. Dois exemplos

típicos de rejeição da dialética hegeliana como sendo um discurso vazio encontramos, na

perspectiva de uma crítica lógica, em Trendelemburg, e na perspectiva de uma crítica

(33)

A psicanálise pode ser considerada como uma disciplina científica independente, gozando de autonomia em seus princípios, teorias e técnicas e, em conseqüência, deve ser circunscrita como uma área bem delimitada de atuação profissional. É um saber autônomo, que pode ser abordado numa perspectiva estritamente internalista, ou seja, pode ser examinado tanto em suas articulações conceituais intrínsecas, quanto em relação ao campo fenomênico que pretende elucidar e no qual pretende intervir. Há, a partir da difusão da obra freudiana e do início institucional do movimento psicanalítico, uma abundante bibliografia que inclui, além das obras de criação conceitual e de inovação teórica e técnica, uma copiosa produção de manuais e obras introdutórias, de comentários aos textos fundamentais e de uma extensa casuística clínica. A bibliografia, nesse sentido, é vastíssima e independe inteiramente de qualquer instância externa de legitimação. Mesmo que a psicanálise possa ser considerada por muitos como uma ciência espúria e uma terapêutica ineficaz e ultrapassada, tais considerações polêmicas – ainda que social e ideologicamente relevantes – pouco afetam a rica produção intelectual da comunidade psicanalítica.

Não obstante, esse tipo de abordagem, que configuraria um projeto de trabalho interno ao universo teórico e prático da psicanálise, sempre pressupõe que ela seja um tipo de saber que poderia ser designado como científico, uma vez que, desde Freud, evitou-se terminantemente a confundi-la com ou aproximá-la excessivamente do conhecimento filosófico. Os esforços de elucidação conceitual da psicanálise e, sobretudo, aqueles que visam relacionar a metapsicologia com a práxis clínica, vão junto com algum tipo de pressuposição epistemológica, mesmo quando não há qualquer explicitação nesse sentido.

(34)

refluxo para um universo conceptual enclausurado, muitas vezes respaldado institucionalmente e no qual só poderiam entrar ou, ao menos, só suportariam nele permanecer aqueles indivíduos que já tivessem sido suficientemente testados em sua fidelidade e ortodoxia.

No entanto, esta timidez epistemológica é injustificável, pois o fundador da psicanálise jamais cessou de reivindicar, sem qualquer constrangimento, o caráter científico de sua obra. Inspirados no seu exemplo poderíamos orientar, portanto, as nossas reflexões numa direção claramente epistemológica, com o objetivo de confrontar a argumentação psicanalítica com critérios de cientificidade que lhe seriam extrínsecos e que seriam os mesmos utilizados para o estabelecer a pretensão de cientificidade de qualquer outra ciência particular. Afinal, como já aludimos, esse confronto não seria arbitrário, uma vez que Freud jamais abdicou de tal reivindicação, seja em sua obra inicial, quando ainda pretendia compatibilizar a sua teoria incipiente com o status quo médico e com os conhecimentos já consagrados no âmbito da neuroanatomia e da fisiologia de sua época, seja no momento crucial de construção e consolidação de sua metapsicologia, quando já tinha plena consciência de que havia criado um corpo teórico consistente, original e autônomo.

I.1. Freud: Entre a Ciência e a Filosofia:

(35)

médico recém formado – realizando pesquisas em neuroanatomia. Não seria nem viável e nem conveniente resumir a extensa pesquisa histórica e as conclusões a que chegou Assoun, mas poderíamos resumir esta ideologia ou visão cientificista, pois não se trata aqui da apreensão da ciência enquanto tal, mas de uma imagem do que deveria ser a ciência. Essa visão cientificista pode ser esboçada por meio de algumas idéias que, embora não se inter-relacionem numa doutrina rigorosamente consistente, nos ajudam a caracterizar a mentalidade dominante que cercou a formação científica de Freud e o acompanhou ao longo de sua vida.18 O cientismo pode ser definido por sua proposição polêmica da disjunção entre ciência e filosofia ou, antes, pela simples rejeição de qualquer função cognoscitiva filosofia. Por outro lado, podemos considerá-lo em sua relação com um conjunto de pressupostos filosóficos, os quais, freqüentemente muito pouco elaborados, podem ser divididos em dois tipos que, muitas vezes, se superpõem e se confundem: os pressupostos epistemológicos e os ontológicos. Os primeiros podem ser formulados, brevemente descritos e sem qualquer pretensão de rigor e exaustividade, do seguinte modo:

1. O critério epistemológico empírico-analítico: segundo o qual todo conhecimento científico se origina da experiência sensível e é por ela justificado. Para que os fenômenos apreendidos pela experiência possam ser observados e descritos, é preciso que eles sejam remetidos aos seus componentes sensoriais mais simples para, só então, serem reconstruídos. O método analítico, como era exemplificado pela química analítica nascente, é

18

Ao falarmos em “visão cientificista” ou em “cientismo” (scientisme) procuramos, seguindo

Gusdorf, distinguir uma mentalidade que se difundiu largamente em meados do século XIX do

que seria o positivismo. Este é, segundo Comte, uma filosofia, na linha dos enciclopedistas e

dos ideólogos, e nada tem a ver com o desdém anti-filosófico dos especialistas. Além disso, no

sistema comteano de classificação das ciências não há lugar para o reducionismo, que é um

dos traços essenciais do cientismo. No entanto, a hostilidade em relação à filosofia e mostra

idediatamente em duas conseqüências: na necessidade de aceitar certas pressuposições

filosóficas e na inconsistência doutrinária decorrente da impossibilidade de assumi-las em sua

natureza filosófica. Cf.: GUSDORF, Georges. Introduction aux sciences humaines. Paris,

(36)

uma herança direta da apropriação ilustrada da física newtoniana e, por isso, se afasta do dedutivismo cartesiano: ao invés de partir de axiomas e princípios ou de uma intuição simples e imediata para daí deduzir todos os outros conhecimentos, parte da “imagem sintética” dos fenômenos para decompô-los, pela análise mais minuciosa, em suas condições e elementos mais simples e, uma vez estabelecida a sua dependência em relação a esses elementos e condições, pode-se proceder á sua recomposição. A mensuração é um exemplo bem simples desse método, pois a intuição do espaço contínuo é submetido à resolução de suas partes ou segmentos e, com isso, as propriedades que se ocultavam na apreensão imediata do fenômeno se revelam. Há nesse modo de conceber a ciência a rejeição ou, ao menos, a minimização das explicações nativistas e do apriorismo kantiano e assim, como Ernst Mach procurou demonstrar no caso da mecânica racional, as proposições a priori devem ser reduzidas ao mínimo indispensável, pois a maioria das que

consideramos como tal são, de fato, o resultado de experiências casuais, espontâneas e inconscientes. As proposições apriorísticas devem se reduzir, portanto, a princípios generalíssimos, como o da causalidade, princípios que, embora sendo pressupostos pela ciência, somente são por ela efetivamente incorporados quando recebem um conteúdo empírico determinado. 19

2. A doutrina do monismo epistemológico: uma vez definido, o critério de cientificidade passa a ter aplicação universal e, portanto, o campo da ciência é concebido como sendo rigorosamente unitário, de modo que as ciências da natureza (Naturwissenschaften), são consideradas como “a ciência”, sem qualquer outra adjetivação. Seguindo esse modo de pensar, Freud jamais considerou como sendo relevante a oposição entre ciências da natureza e ciências do espírito (Geisteswissenschaften), e nem tomou conhecimento da chamada “querela dos métodos” (Methodenstreit), que agitou e dividiu o universo intelectual alemão na época em que ele terminava os seus estudos médicos. Mesmo posteriormente ele desconsiderou essa candente polêmica

19

Sobre a origem ilustrada desse critério simultaneamente empírico e analítico, ver

(37)

que, desencadeada pela oposição diltheyana entre explicar (erklären) e compreender (verstehen), passa pelas escolas neo-kantianas do início do século XX e chega, muito mais tarde, até a discussão em torno do significado positivista da sociologia alemã (Positivismusstreit).20

Por conseguinte, do ponto de vista freudiano, se a psicanálise se pretende científica, não há como recorrer a qualquer outro critério de cientificidade que não fosse aquele que seria válido para ciências da natureza. Freud não adota sequer o monismo mitigado de Wundt, que situava a psicologia na fronteira dos dois domínios. Ao contrário, ele poderia com facilidade subscrever a “profissão de fé naturalista” de Ernst Haeckel que reza o seguinte:

Insistimos na unidade fundamental da natureza orgânica e inorgânica: esta última começou relativamente tarde a evoluir da primeira [sic]. Não podemos mais traçar um limite exato entre esses dois domínios principais da natureza, nem tampouco podemos estabelecer uma distinção absoluta entre o reino animal e o reino vegetal, ou entre o mundo animal e o mundo humano. Conseqüentemente, consideramos também toda a ciência humana como um único edifício de conhecimentos, e rejeitamos a distinção corrente entre a ciência da natureza e a ciência do espírito. A segunda constitui apenas uma parte da primeira ou, reciprocamente, ambas constituem apenas uma ciência. 21

20

Para uma visão clara e concisa, mas muito boa, da história da oposição entre compreender e

explicar no contexto da filosofia alemã posterior à morte de Hegel, ver SCHNÄDELBACH,

Herbert. Philosophy in Germany. 1831-1833. Cambridge, Cambridge University Press, 1984. p.

66-138. Para uma abordagem mais detalhada, sobretudo das escolas neo-kantianas, ver

BAMBACH, Charles R.. Heidegger, Dilthey, and the crisis of historicism. Ithaca/London, Cornell

University Press, 1995. Os textos referentes ao positivismusstreit estão em: ADORNO,

Theodor et alii. La disputa del positivismo en la sociología alemana. Barcelona, Grijalbo, 1972.

21

Cf.: HAECKEL, Ernst. Le Monisme, Profession de Foi d’un Naturaliste. Apud, ASSOUN, P.-L.

Op. Cit.. p. 51. Utilizamos amplamente nesta parte de nosso trabalho a obra de Assoun. Ver a

tradução portuguesa: Monismo. Laço entre a religião e a ciência. Profissão de fé de um

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