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A RELAÇÃO MÃE-BEBÊ: POSSÍVEIS RELAÇÕES ENTRE WINNICOTT E BENVENISTE

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Academic year: 2021

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A RELAÇÃO MÃE-BEBÊ:

POSSÍVEIS RELAÇÕES ENTRE WINNICOTT E BENVENISTE

Sibylla Jockymann do Canto1 Ao estudo do desenvolvimento da linguagem, é associado o desenvolvimento cognitivo, emocional e social da criança, o que nos leva a crer que ela é vista como lugar de interação e não apenas de comunicação ou representação do pensamento.

O estudo das relações entre mãe-bebê traz a oportunidade de vivenciar um trabalho transdisciplinar que engloba não somente as ciências humanas e biomédicas como também a Linguística, visto que a linguagem é parte constitutiva do sujeito, uma vez que entendemos sua apropriação pela criança como ocorrida pelo uso e, sobretudo, pela relação com o outro, lugar em que se constitui e é constituída pela estrutura linguística.

O campo de estudo que abrange aquisição foi construído pelas projeções quanto à cientificidade, partindo dos conhecimentos teóricos sobre sujeito, linguagem e língua, inseridos nos quadros da Psicologia do Desenvolvimento, Psicolinguística e Linguística. Assim sendo, ele está atravessado por diferentes concepções em seu escopo teórico, o que projeta a ideia de que o sujeito é aquele capaz de adquirir uma língua constituída por regularidades. A língua não é considerada como uma realidade heterogênea e o sujeito tampouco é visto em sua singularidade.

A Linguística da Enunciação permite pensar a linguagem de um lugar único: sujeito que está na língua e deriva da capacidade do locutor de propor-se como tal, na instância desse ato. Tudo isso marcado no tempo da fala, que é o tempo em que se está, sendo a língua a possibilidade de subjetividade, contendo indicadores que podem ser mobilizados pelo sujeito e empregados em seu discurso. A linguagem, que é troca, é diálogo, confere ao discurso dupla função: para o locutor, apresenta a realidade; para o ouvinte, recria a realidade.

A obra de Émile Benveniste é conhecida como fundadora do que se convencionou chamar teoria da enunciação, constituída por um conjunto de textos que simultaneamente teorizam e analisam o ato enunciativo. Nessa perspectiva, a Linguística tem por objeto a enunciação, entendida por “colocar a língua em funcionamento por um ato individual de utilização” (PLG II, 1989, p.82). Embora um ato individual, é um processo enquanto colocação em funcionamento. Segundo Lichtemberg:

A enunciação, momentaneamente, é ato individual de tomada de palavra, individualidade fugaz, pressuposta pelo ato: constituição de locutor que, para assim constituir-se, constitui alocutário; por isto, não mais individual, nem mesmo ato, processo que instaura o diálogo. (Lichtemberg, 2006, p.74)

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, linha de pesquisa em Teorias do Texto e do Discurso, bolsista CNPq. E-mail: sjockymann@yahoo.com.br

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Percebemos que a enunciação promove a existência de dois seres linguísticos que têm em comum a instância do discurso. A língua é expressão de sentido que é atribuído pelos sujeitos, que se apropriam de todo o sistema e moldam a ideia que referem, determinando quais as unidades necessárias à constituição da frase. A língua é, portanto, intersubjetiva, materializada na frase através de um sistema de signos referenciais.

No texto Da subjetividade da linguagem, Benveniste dá continuidade às discussões de A natureza dos pronomes (PLG I, 2005, p.284) e propõe a noção de sujeito. O que ele nos traz é que o homem está na língua e a subjetividade é a capacidade do locutor em se propor como sujeito. Assim, Benveniste suspende o que era então aceito como tradicional: a língua não é um a priori, já que ela se atualiza na e pela enunciação, que supõe um sujeito que a utilize. Se retomarmos sua ideia de categoria de pessoa, perceberemos que “é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de „ego‟” (PLG I, 2005, p.285).

Silva (2007) afirma que, ao trazer um modo de análise da enunciação no qual os interlocutores referem e correferem para produzir sentidos aos elementos da língua, Benveniste possibilita-nos explicar a inserção da criança como sujeito enunciativo da linguagem, uma vez que se entende a apropriação da linguagem pela criança como a ocorrida pelo uso e, sobretudo, pela relação com o outro, lugar em que se constitui como sujeito e é constituída pela estrutura linguística. Assim, a língua é entendida como mediadora entre o individual e o social.

Em sua leitura da obra de Benveniste, a linguista propõe três instâncias simultâneas de subjetividade/intersubjetividade: uma relação homem/homem imersos na cultura, na qual considera a presença de um sujeito cultural; uma relação

locutor/alocutário, na qual aparece um sujeito da alocução e uma relação eu-tu,

expressa pelas formas de pessoa no discurso, constituindo o que chama de sujeito

linguístico-enunciativo.

É nessa última instância que os estudos enunciativos verificam a presença do homem na língua, visto que a subjetividade é dada pela categoria de pessoa presente no sistema da língua mediante determinadas formas, como o pronome reto “eu”, por exemplo. Cabe lembrar que a subjetividade é dependente da inversibilidade que há entre o par eu/tu, o que assegura a intersubjetividade, sem a qual não faz sentido falar em categoria linguística de pessoa. A linguagem só é possível se cada locutor se apresenta como sujeito, remetendo a ele mesmo como “eu” no seu discurso e outro como um “tu”.

Deste modo, em Benveniste, a língua é sempre mediação, seja homem/sociedade, seja homem/cultura, seja homem/homem, uma vez que enfatiza serem as relações intersubjetivas a condição para a comunicação. Neste caso, parece estarmos diante de uma instância cultural, visto a intersubjetividade estar centrada na condição humana de homem como ser falante na cultura. (Silva, 2007, p.147) É preciso lembrar que Benveniste (PLG I, 2005) também apresenta uma concepção acerca da aquisição da linguagem. Ele reflete sobre a relação homem/cultura, enfatizando que o homem não nasce na natureza, mas na cultura. Isso porque toda a criança em todas as épocas apreende necessariamente com a língua os rudimentos de uma cultura. Nenhuma língua, segundo o teórico, é separável de uma função cultural. A

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linguagem tem sempre sido inculcada nas crianças pequenas e sempre em relação ao que se tem chamado realidades definidas como elementos de cultura. Inserido nessa concepção, defende que a linguagem se constitui como o lugar das relações intersubjetivas, já que o pensamento, segundo o autor, é configurado pela estrutura da língua, que revela, dentro de um sistema de categorias, a sua função mediadora, propiciando a cada locutor propor-se como sujeito e implicar o outro.

Benveniste nos ensina que, antes de servir para comunicar, a linguagem serve para viver. Colocamos que à falta da linguagem não haveria nem a possibilidade de sociedade, nem possibilidade de humanidade, é porque o próprio da linguagem é, antes de tudo, significar. Sua teoria nos permite pensar sobre a língua/linguagem de um lugar único, uma vez que ele vê a linguagem pelo seu valor constitutivo, sendo impossível estabelecer oposição entre ela e o homem.

Não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo e procurando entender a existência do outro. É um homem falando com outro homem que encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria definição do homem. (Benveniste, PLG I, 2005)

E se o próprio linguista acredita que não podemos reduzir o homem a si mesmo, uma vez que ele está imerso em uma relação dialógica, não podemos entender o processo de aquisição da linguagem sem entendê-lo em uma relação também, mas uma relação entre seres humanos e não entre discursos recortados a fim de análise, sem levarmos em conta as pessoas envolvidas, o ambiente e toda a linguagem não verbal que faz parte desse processo.

O mais comum envolvendo estudos da linguagem da criança é vê-la de forma isolada, trabalhando somente com o seu discurso, separado do ambiente e de seu interlocutor. A mãe, quando aparece, é vista somente como um input para a criança e a intersubjetividade funciona como um acordo entre os sujeitos falantes: o par mãe-bebê está em um lugar intercambiável e simétrico entre si. Assim, a criança está apta a incorporar a língua fornecida pelo outro passando a assumir os papéis dialógicos antes assumidos pelo adulto, instaurando o diálogo e o adulto como interlocutor.

Dessa forma, se pensarmos que no início o bebê ainda não é um sujeito, visto sua profunda ligação com a mãe, estudá-los de forma separada não seria sequer produtivo no que tange aos estudos de aquisição da linguagem. E mais, se pensarmos em todas as questões subjetivas envolvidas no processo, uma vez que estamos lidando com pessoas e qualquer aquisição do ponto de vista linguístico não pode ser vista sem afeto, nada mais natural que procurar entendê-la inserida não somente em termos físicos, motores, mas sustentada juntamente com seu ambiente de facilitação, ou seja, os cuidados maternos tão estudados por Donald W. Winnicott (1896-1971).

O ponto de convergência de uma proposta entre o pensamento enunciativo de aquisição de linguagem e a abordagem winnicottiana seria pensar em como a linguagem surge na vida desse bebê que não existe sozinho, prestando atenção nas sutilezas que envolvem a dependência com sua mãe, já que o ambiente tem profunda importância, sendo parte constitutiva da criança. Assim, a Linguística faz limite com a Psicologia, sem que nenhuma delas transponha seu lugar, mas trabalhem juntas para entender o nascimento do sujeito.

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Winnicott fez grandes contribuições ao pensamento psicanalítico, tendo como ponto de partida os momentos formativos do indivíduo. Ele enfatizou a absoluta importância da dependência do bebê com sua mãe e como o crescimento físico e emocional depende do ambiente de facilitação que se adapta às necessidades da criança. Dessa forma, ele entende a díade mãe-bebê vista como uma unidade relacionada, já que afirmava que, se alguém mostrasse um bebê, mostraria também alguém cuidando dele.

O psicanalista inglês escreveu sobre linguagem em Comunicação e falta de

comunicação levando ao estudo de certos opostos (1963). Nesse artigo, ele afirma que a

intercomunicação entre o bebê e sua mãe é sutil e deve ser observada do ponto de vista de ambos, já que a mãe é sentida pelo lactente como parte dele, ou seja, como objeto subjetivo. Assim, se no princípio a linguagem entre ambos é predominantemente não verbal, esse objeto passará a ser percebido objetivamente, enquanto a criança deixa pra trás a área da onipotência como uma experiência de vida, e a linguagem e o nascimento do sujeito separado de sua mãe pode ser visto linguisticamente, quando a criança enuncia o eu.

Mas tudo isso prova que o nascimento da linguagem não é somente motor, pois passa por processos subjetivos muito profundos e refinados. Se para Benveniste a língua não é um a priori, já que ela se atualiza na e pela enunciação, Winnicott nos responde que o ambiente facilitador o é, ajustado às necessidades que surgem do ser e dos processos de maturação (Winnicott, 1963).

Levando-se em conta o começo da comunicação entre duas pessoas, Winnicott (1969) afirma que assistimos concretamente a uma relação de mutualidade. À mãe cabe tornar real aquilo que o bebê está pronto para descobrir, criar. Ela está tão identificada com seu filho que sabe exatamente o que ele precisa, sem perder, contudo, sua identidade. Dessa forma, há uma comunicação silenciosa, galgada em profunda confiabilidade, que protege o bebê das intrusões externas e serve de ambiente confortável para ele. Porém, essa comunicação confiável deve ser efetiva, pois faz parte das experiências adquiridas pelo bebê. E é justamente aqui que a comunicação ocorre em termos físicos: a linguagem é a mutualidade na experiência.

A mãe suficientemente boa, conceito esse de Winnicott para denominar o ambiente favorável oferecido ao bebê, reconhece a dependência de seu filho, se adapta às suas necessidades e cria um setting propício para que ele viva a experiência da onipotência e progrida em seu desenvolvimento, integrando-se e crescendo emocionalmente ao acumular vivências. Mas é preciso que se diga que o ambiente não faz com que o bebê cresça em determinado sentido, mas sim, possibilita o processo de amadurecimento, de evolução do ego e desenvolvimento do self. A linguagem, que no início é predominantemente não verbal, desenvolve-se e pode ser entendida como a materialidade física desse processo.

Sabemos o papel fundamental que a mãe desempenha no processo de aquisição da linguagem. Porém, os estudos acabam enfatizando muito mais quando ela falha como ambiente, como, por exemplo, no caso de crianças que demoram a adquirir linguagem verbal, não por problemas motores, mas porque a mãe fala por essa criança, sem proporcionar que ela se aproprie de sua língua. Temos ainda o caso do maternês ou

manhês, que acaba influenciando a fala da criança que prolonga erros de pronúncia

mesmo já tendo adquirido os traços fonológicos necessários e estando apta, portanto, a não suprimir consoantes ou mesmo sílabas inteiras. Fica claro que tratar a criança isoladamente acaba sendo improdutivo, já que o ambiente precisa também sofrer

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modificações necessárias para que a linguagem seja desenvolvida e o locutor possa criar um interlocutor.

Evidentemente, estamos enfatizando o papel linguístico desse processo. Nessa relação, há outros fatores psíquicos envolvidos que devem ser avaliados conjuntamente. Mais uma vez fica clara a contribuição que os estudos winnicottianos podem fornecer à Linguística da Enunciação que, apesar de trabalhar com materialidade discursiva, entende que o objeto inclui o sujeito e o uso da língua é sempre único. Isso implica considerar os dados de aquisição num quadro de singularidade, no qual esteja implicada a relação criança com o “outro” e com a língua em cada ato enunciativo. Dessa forma, a linguagem constitui-se como o lugar das relações intersubjetivas, já que o pensamento é configurado pela estrutura da língua, que revela, dentro de um sistema de categorias, a sua função mediadora, propiciando cada locutor propor-se como sujeito e implicar o outro, o que torna impossível analisar separadamente a díade mãe-bebê.

Outro fator contribuinte desse encontro seria a oportunidade de investigar os primórdios da comunicação, quando a verbalização ainda não está presente, mas não podemos negar a presença efetiva de uma linguagem entre o bebê e seu cuidador. Se Winnicott afirma que o lactente se comunica para continuar a existir, podemos entender o que Benveniste quis dizer quando ele afirma que bem antes de servir para comunicar, a linguagem serve para viver. Se nós colocamos que à falta da linguagem não haveria nem a possibilidade de sociedade, nem possibilidade de humanidade, é precisamente porque o próprio da linguagem é, antes de tudo, significar. Assim, não devemos entender que a significação está somente nas verbalizações, mas em todo o aparato comunicativo que envolve a criança e sua mãe desde o nascimento.

Estudar a linguagem do ponto de vista enunciativo é estudá-la de um prisma semântico: o núcleo é sempre o sentido. O encontro com a psicanálise proposta por Winnicott permite à Linguística da Enunciação perceber a criança e a mãe de uma maneira mais humana, palpável, já que a materialidade discursiva não está separada do indivíduo. Além disso, a importância da relação dialógica envolvida no processo de aquisição da linguagem, e não somente nos processos cognitivos envolvidos, valoriza o ambiente em que surge a comunicação e os cuidados maternos que tanto influenciam nesse processo.

Referências

BENVENISTE, E. Problemas de Lingüística Geral II. Campinas: Pontes, 1989. BENVENISTE, E. Problemas de Lingüística Geral I. Campinas: Pontes, 2005.

LICHTENBERG, S. Sintaxe da Enunciação: noção mediadora para reconhecimento de uma Lingüística da Enunciação. Tese de Doutorado. Porto Alegre: IL/UFRGS, 2006. SILVA, C.L.C. A instauração da criança na linguagem: princípios para uma Teoria Enunciativa em aquisição da linguagem. Tese de Doutorado. Porto Alegre: IL/UFRGS, 2007.

WINNICOTT, D.W. (1975). O papel do espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil. In: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago Editara Ltda. (Original publicado em 1967).

WINNICOTT, D.W. (1988). Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos. In: O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Original publicado em 1963).

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WINNICOTT, D.W. (1993). Preocupação materna primária. In: Textos selecionados: da

pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A. (Original

publicado em 1956).

WINNICOTT, D.W. (1994). A experiência mãe-bebê de mutualidade. In: D. W.

Winnicott: Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Original

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