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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

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CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

ADRIANA VIEIRA DE SENA

Macabéa e Ângela Pralini: uma escritura melancólica

Natal/RN

2020

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ADRIANA VIEIRA DE SENA

Macabéa e Ângela Pralini: uma escritura melancólica

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem – da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Doutora em Literatura Comparada.

Orientador: Prof. Dr. Samuel Anderson de Oliveira Lima

Natal/RN 2020

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Sena, Adriana Vieira de.

Macabéa e Ângela Pralini: uma escritura melancólica / Adriana Vieira de Sena. - Natal, 2020.

174f.: il.

Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020.

Orientador: Prof. Dr. Samuel Anderson de Oliveira Lima.

1. Clarice Lispector - Tese. 2. Corpo - Tese. 3. Melancolia - Tese. 4. Modernidade - Tese. I. Lima, Samuel Anderson de

Oliveira. II. Título.

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ADRIANA VIEIRA DE SENA

Macabéa e Ângela Pralini: uma escritura melancólica

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem – da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Doutora em Literatura Comparada.

Aprovada em: 28/07/2020

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________________ Prof. Dr. Samuel Anderson de Oliveira Lima - Orientador

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

________________________________________________________________ Profa. Dra. Kátia Aily Franco de Camargo - Membro interno

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

_______________________________________________________________ Profa. Dra. Karina Chianca Venâncio - Membro interno

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

____________________________________________________________ Prof. Dr. Wellington Medeiros de Araújo - Membro externo

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE

_____________________________________________________________ Profa. Dra. Vanessa Neves Riambau Pinheiro - Membro externo

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Dedico este trabalho a Jesus Cristo, a Francisco José de Sena e à Eunice Vieira Paz de Sena (meus pais), à Patrícia Vieira de Sena, à Telma Vieira de Sena,

à Ariany Vieira de Sena, à Andréia Vieira de Sena, à Tânia Vieira de Morais, à Alicia Vieira Moreira, a Roger de Sena Pires e a Richard de Sena Pires (minha família)

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AGRADECIMENTOS

Este trabalho não seria possível sem a participação de algumas mãos, ou seja, algumas pessoas imprescindíveis que me ajudaram nessa caminhada árdua.

A primeira delas é o Espírito Santo de Deus. Sem Ele, nenhuma linha digitada seria realmente possível.

Aos meus pais por sempre me apoiarem em minha vida estudantil.

Às minhas irmãs que estão sempre me apoiando por meio de suas orações e palavras de ânimo.

Ao professor doutor Marcos Falleiros por, desde o início, ter me apoiado na elaboração da tese, além da indicação bibliográfica e da organização textual.

Ao professor doutor Samuel Anderson de Oliveira Lima por ter aceitado me orientar nos últimos momentos deste trabalho e por suas valiosas contribuições.

À amiga Kaline, professora do Instituto Federal do Rio Grande do Norte, por suas orientações e por seu ouvido.

A Antonio Fernandes de Medeiros Júnior e Rosanne Bezerra de Araújo pelas contribuições na banca de qualificação.

À professora doutora Karina Chianca Venâncio pela grande contribuição com as aulas de melancolia e por me ajudar com as orientações na banca de defesa.

À professora doutora Vanessa Riambau, da Universidade Federal da Paraíba, por sua presença na banca de defesa.

Ao professor doutor Wellington Medeiros, da Universidade do Estado do Rio Grande Do Norte.

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RESUMO

O norte principal deste texto foi visualizar a melancolia como uma constante nas obras de Clarice Lispector por meio do discurso das personagens e de suas narrativas. Para tanto, lançou-se mão da escrita de uma tese de doutoramento. Assim, este trabalho parte do pressuposto de que as obras Um sopro de vida – pulsações e A hora da estrela, da escritora Clarice Lispector, carregam em sua linguagem a tinta da melancolia, que seria um pesar desmesurado. Além dos referidos textos, trouxe por bem o conto clariciano “A bela e a fera ou a ferida grande demais” como forma elucidativa dos estudos acerca do que é posto como belo e do que é posto como feio. Portanto, objetivou-se compreender como a melancolia se realizaria nas obras claricianas aludidas. Para tanto, o presente texto esmerou-se na carga semântica das palavras corpo, discurso e beleza. A metodologia consistiu na leitura analítico-crítica da melancolia nos romances e no conto acima citados. Desta forma, fez-se uso da pesquisa bibliográfica, a fim de que os resultados almejados pudessem ser alcançados. Princípios lógicos de leitura e de observação da linguagem empregada pela mencionada romancista brasileira foram importantes ferramentas para compreender o sentido multifacetado clariciano. O resultado de encontrar melancolia nos discursos de Ângela Pralini (personagem de estudo de Um sopro de vida – pulsações) e Macabéa (personagem de estudo de A hora da estrela) foi alcançado, uma vez que dissecou-se a parole das personagens à procura de correlações com a melancolia e observou-se também que o corpo dos seres fictícios refletem aquilo que os teóricos nomeiam como ser de exceção.

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ABSTRACT

The main point of this text was to visualize melancholy as a constant in the works of Clarice Lispector through the discourse of the characters and their narratives. To this end, a doctoral thesis was written. Thus, this work is based on the assumption that the works Um breath of life - pulsations and A hora da estrela, by the writer Clarice Lispector, carry in their language the ink of melancholy, which would be an unreasonable regret. In addition to the aforementioned texts, he also brought the Clarician tale Beauty and the Beast or the Wound too large as an elucidative form of studies about what is made as beautiful and what is made as ugly. Therefore, the objective was to understand how melancholy would be realized in the clarified works mentioned. To this end, the present text has devoted itself to the semantic load of the words body, speech and beauty. The methodology consisted of an analytical or critical reading of melancholy in the novels and short stories mentioned above. In this way, bibliographic and virtual research was used in order that the desired results could be achieved. Logical principles of reading and observation of the language used by the aforementioned Brazilian novelist were important tools to understand the multifaceted Clarician sense. The result of finding melancholy in the speeches of Ângela Pralini (study character of Um breath de vida - pulsações) and Macabéa (study character of A hora da estrela) was achieved once the parole of the characters in search of correlations was dissected with melancholy and it was also observed that the bodies of fictitious beings reflect what theorists name as being exception subject.

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RESUMEN

El objetivo principal de este texto fue ver la melancolía como una constante en la obra de Clarice Lispector a través del discurso de los personajes y sus narrativas. Para ello se redactó una tesis doctoral. Así, este trabajo parte de la premisa de que las obras Um sopro de vida - pulsações y A

hora da estrela, de la escritora Clarice Lispector, llevan en su lenguaje la tinta de la melancolía,

lo que sería un lamento irrazonable. Además de los textos antes mencionados, también trajimos el

cuento de Clarice “A bela e a fera ou a ferida grande demais” como forma de dar énfasis a los

estudios sobre qué se hace tan bello y qué se hace tan feo. Por lo tanto, el objetivo era comprender cómo se materializaría la melancolía en las obras aclaradas mencionadas. Para ello, el presente texto se ha dedicado a la carga semántica de las palabras cuerpo, discurso y belleza. La metodología consistió en una lectura analítica o crítica de la melancolía en las novelas y cuentos mencionados anteriormente. De esta forma se utilizó la investigación bibliográfica con el fin de lograr los resultados deseados. Los principios lógicos de lectura y observación del lenguaje de la novelista brasileña fueron herramientas importantes para comprender el multifacético sentido clariciano. El resultado de encontrar melancolía en los discursos de Ângela Pralini (personaje de estudio de Um sopro de vida - pulsações) y Macabéa (personaje de estudio de A hora da estrela) se logró una vez diseccionada la parole de los personajes en busca de correlaciones con la melancolía y también se observó que los cuerpos de seres ficticios reflejan lo que los teóricos denominan ser de excepción.

Palabras clave: Clarice Lispector. Cuerpo. Melancolía. Modernidad.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...10

2 CLARICE, ELA MESMA E A CRÍTICA...23

2.1 A ANTILITERATURA CLARICIANA E A TÉCNICA DO FLUXO DE CONSCIÊNCIA...24

2.2 OS TEMAS, AS PERSONAGENS E O MUNDO CLARICIANOS...29

3 CORPO DE ÂNGELA PRALINI E MACABÉA – LUGARES DE UM REGISTRO MELANCÓLICO...60

3.1 SOBRE A HISTÓRIA DO CORPO...60

3.2 UMA INSCRIÇÃO DO DESEJO NA LITERATURA CLARICIANA...62

3.3 O CORPO NA PSICANÁLISE...64

3.4 UMA LEITURA DOS CORPOS DE MACABÉA E ÂNGELA PRALINI...80

3.5 O QUASE MUTISMO DE MACABÉA...90

3.6 MAIS UMA VEZ ÂNGELA PRALINI...94

4 O DISCURSO MELANCÓLICO NAS VOZES DE ÂNGELA PRALINI E MACABÉA...101

4.1 A BELEZA MELANCÓLICA NA LITERATURA CLARICIANA...122

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...165

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1 INTRODUÇÃO

A investigação presente tem como propósito estudar o discurso da melancolia no universo narrativo de Clarice Lispector, a saber, nos romances Um sopro de vida – Pulsações (1999) e A hora da estrela (1998). Além desses romances, trouxemos à cena analítica o conto “A bela e a fera ou A ferida grande demais” (1977). Para tanto, escolheu-se, por meio de um recorte, obras teóricas como forma de iluminar o atual estudo, tais como: Lambotte (1997, 2000), Moacyr Scliar (2003), Urânia Tourinho Peres (2003), Kristeva (1989), Freud (1980) e Denilson Lopes (1999), entre outros. Tais vozes trazem a concepção múltipla do conceito melancolia quando se afirma que este termo é sinônimo de patologia. Outrossim, ela é vista como constatação de perdas, além de trazer – principalmente o diálogo com a melancolia barroca – um acerto de contas de uma geração contraposta à outra passada, influenciando na continuidade da linhagem dos melancólicos e na certeza do pesar hodierno de não ser. Ainda, tal vocábulo, bastante estudado, é visualizado de modo a ficar pêndulo, pois nem está nas psicoses nem no campo das neuroses, consoante Lambotte (1997), mas ficaria no campo das neuroses narcísicas. A neurose é uma área na qual vai se desenvolver doenças ligadas ao sofrimento e a pensamentos negativos. Essas ideias negativas podem gerar no corpo humano depressão, melancolia, pânico, histeria, transtornos mentais, etc. A melancolia nasceria de uma perda desconhecida, pois sabe quem perdeu, mas não o que perdeu. Comparando com o lutuoso, este consegue fechar o ciclo da dor porque elege um novo objeto amado. Porém, o melancólico não obtém êxito na transferência e a sua dor recai sobre o ego. Assim, começar o seu sofrimento e a perturbação da autoestima será o grande cerne na resolução do caso de um portador de melancolia.

Optou-se por estudar e desenvolver o assunto da melancolia na defesa desta tese porque ele acompanha nossos estudos desde o mestrado. Como já havia leituras fichadas em torno dele, agregaram-se algumas outras obras para dar uma maior sustentabilidade ao discurso elaborado. Além disso, nos tempos atuais, muito tem se discutido acerca de problemas que afetam a saúde mental do cidadão – um dos tópicos de debates pela área da saúde pública e por áreas afins é justamente a melancolia. Hoje popularizou-se o nome depressão por causa da administração de remédios receitados pelos psiquiatras. Ao se ler a obra Um sopro de vida (pulsações), compreendeu-se que havia uma melancolia patológica (que é a linha freudiana). Como Clarice Lispector havia escrito esta obra e A hora da estrela (de norte melancólico social) ao mesmo

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tempo, decidiu-se agregar esta para trazer ao conhecimento do público universitário e pelos amantes das obras claricianas a versatilidade literária da autora que, embora não haja um pré-projeto literário de sua parte em torno dessa temática, oferta aos brasileiros conhecimento profundo sobre o que é a melancolia, os tipos de melancolia, como isso se processa em suas personagens.

Freud, em vida, evitava fazer uma separação científica entre melancolia e depressão (pois são temas difíceis de delimitar um quadro preciso, por inexistia conceitos). Mesmo hoje, a partir do desenvolvimento da metapsicologia (método de funcionamento mental), os médicos de linha psicanalítica resguardam-se de fazer tal consideração.

Ainda assim, tem-se algumas ideias nesse sentido, tais como: melancolia social, melancolia patológica e melancolia existencial ou kierkegaardiana. A primeira reside no fato de a própria civilização promover a sua morte, gerando a melancolia mediante a priorização do sistema capitalista (e, consequentemente, os seus resultados nefastos, como desemprego, por exemplo), da ruptura do relacionamento do homem com a natureza, da ingerência de má alimentação (industrial), da crescente violência urbana e rural, do aumento do uso de drogas, do aumento da solidão, da fragilização do modelo tradicional familiar, etc. A segunda (a melancolia patológica) é tida como doença inserida numa categoria que Freud chama de categoria das neuroses narcísicas. Para fins de investigação e de diagnóstico, o paciente deve apresentar inibição generalizada, autocomiseração, autopunição, desinteresse pelo mundo externo, autoestima diminuída, indistinção entre o amor e o ódio, etc. A terceira, a existencial, que, conforme Lambotte, está na gravura de Dürer – Melancolie I (SCLIAR, 2003, p. 81) em cruzamento com a melancolia suicida: “Encontramos aí o duplo rosto da melancolia com o ‘melancólico existencial’ e o ‘melancólico suicida’, na ordem especulativa” (LAMBOTTE, 2000, p. 48). É aquela melancolia dotada de aportes intelectuais superiores à média (melancolia existencial). Embora o sujeito melancólico possua uma capacidade artística extraordinária, no geral, não consegue pôr para fora a sua arte, uma vez que lhe falta vigor, ação (melancolia suicida). Portanto, possui “os dons da inteligência e da imaginação” (LAMBOTTE, 2000, p. 49), mas lhe é impossibilitado o avanço na prática.

Via Psicanálise, partiu-se da ideia de que a melancolia se origina dos sofrimentos erigidos pelo próprio homem. Como ocorreu o desencontro entre este e a natureza, pois o homem se afastou dela, ele agora se vê às voltas com “situações que se revertem em maior fonte de mal-estar” (TOURINHO, 2003, p. 21). A fim de obter, cada vez mais, um mundo cultural tecnológico, ele vai abrindo concessões, como a do desmatamento desenfreado, poluição sonora, mudança

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climática (ora muito quente, ora muito frio), efeito estufa agravado, além de ambientes de trabalho longe do seu lar, do seu conforto. Ao ser hostil com o planeta, ele, de fato, é hostil à sua própria espécie. Esse mundo artificial criado por esse “Deus de prótese” não vai dar conta das angústias originadas; doravante, o cisma tem ocorrido entre ele e a natureza.

Atualmente, existe claramente uma angústia da humanidade em matar e destruir os bens naturais renováveis e não renováveis, aniquilação que começou, modernamente, com a Revolução Industrial. Mas não é apenas isso, porque se está em uma sociedade moderna. E sociedades modernas são complexas. Por isto, há muitos problemas que exigem estratégias diferentes para resolvê-los. Visto que a ciência e a tecnologia deixaram de trazer para o ser humano a tão sonhada felicidade perdida ao se distanciar de seu mundo edênico, ele agora é obrigado a encarar as angústias produzidas por suas atitudes maléficas e egoístas. Assim, o número de doenças mentais quadruplicou. São muitas patologias diferentes sendo descobertas, diagnosticadas, inclusive, por uma equipe multidisciplinar, porque um médico só é pouco para fazer a identificação clínica. Desse modo, a melancolia vem se arrastando com esse homem moderno, nascendo da meditação do homem “sobre as amargas irrisões da vida” (HUGO, 2007, p. 25).

Já havia, desde os gregos antigos, a melancolia. O substrato da melancolia não é orgânico, apesar de refletir, muitas vezes drasticamente, no corpo de seu portador. É uma condição existencial ou uma patologia presente na humanidade a partir do instante em que o ser humano sentiu necessidade de estar só com os seus pensamentos ruminantes. A melancolia se agrega a contextos bastantes tumultuados nos quais ocorrem guerras, epidemias, perseguições civis e políticas, fome, descrença na humanidade, etc. Todas as épocas, inclusive a Antiguidade Clássica, vão se ocupar desse assunto prenhe de uma sensibilidade e acuidade únicas. Ora foi analisada como um traço de caráter (na visão de Aristóteles), outrora de temperamento e patologia na de Robert Burton (LAMBOTTE, 2000, p. 59). Grandes filósofos e médicos, como Aristóteles e Hipócrates de Cós, detiveram-se na análise da melancolia ou de um comportamento melancólico. O primeiro acreditava que a melancolia acompanhava os seres excepcionais, ou seja, aqueles dotados de algum gênio. Já o segundo defendia um afastamento da solução mágico-religiosa quando preconizava procedimentos racionais para a cura das doenças da época, entre elas, a melancolia. O contexto sócio-histórico mostra que os gregos cultuavam a saúde e a cura, traduzidas estas nas deusas Hígia e Panaceia. Assim, os procedimentos ritualísticos darão lugar à “observação

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empírica e a uma visão epidemiológica do problema saúde-enfermidade” (SCLIAR, 2003, p. 67-69).

Dessa forma, os estudiosos clássicos enquadravam a melancolia dentro da tese de desequilíbrio humoral do corpo: o sangue, a linfa, a bile amarela e a bile negra, os quais diziam respeito aos quatro temperamentos humanos: fleumático, melancólico, colérico e sanguíneo. O mais patológico deles, na visão de Hipócrates, é o melancólico. Seu pesar constante estaria associado à presença da bile negra, que se situaria no baço. Além disso, é atribuído a esse médico grego o quadro diferenciado entre melancolia endógena (sem motivo aparente) e melancolia exógena (oriunda de um fator externo) (SCLIAR, 2003, p. 70).

No passado clássico grego, à saúde era associado um quadro sintomático no qual corpo e mente deviam estar equilibrados. Caso isto deixasse de ocorrer, o sujeito poderia desenvolver doenças, entre elas a melancolia. Assim, no século XIX, essa patologia será estudada como uma entidade mórbida distinta, mostrando que ela atravessa os tempos e mostra a sua força. Para tanto, os alienistas elaboraram uma nosografia (tratado) das doenças da mente da época e separaram-nas da melancolia como maneira de distingui-la entre as demais. A depressão, a dor e a angústia estão estreitamente ligadas ao afeto, que atinge o corpo humano. Mas Freud (1980), a partir de seus estudos, irá fazer distinção no quadro dos afetos a fim de chegar a uma conclusão acerca da melancolia. Para ele, a perda objetal (a perda do objeto amado, aquilo que é eleito pelo sujeito melancólico) será o cerne dessa afecção. Na visão freudiana, “tal indivíduo é acometido por dois tipos de esgotamento, a saber: o esgotamento nervoso, o qual gira em torno da raciocinação intelectual e da ideia fixa e esgotamento físico, que abate o corpo, levando este ao estupor imbecil e estado de inércia” (LAMBOTTE, 1997, p. 37, grifos nossos).

Lambotte vai assinalar, tendo as pesquisas freudianas como espelho, que o vazio formado no seio do domínio psíquico se faz por meio dos fatores específicos, gerando uma energia sexual psíquica instável. Para se chegar às fontes da melancolia, Freud estabelece um raciocínio de pesquisa, comparando os efeitos do luto e da melancolia a partir do relato de seus pacientes. Tanto a afecção do luto, quanto da melancolia, serão iguais até determinada razão, porém, após análise minuciosa, Freud constatou que, no luto, a libido (o desejo) fica livre para poder se ligar a um outro objeto amado, enquanto que, na melancolia, a libido livre não se direciona para um outro objeto, mas recai justamente sobre o ego (é uma das instâncias do aparelho psíquico que é resultado

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das experiências do indivíduo e exerce sobre este um controle em seu comportamento) do sujeito melancólico. Portanto, as falas dos pacientes revelavam uma relação objetal destroçada.

Além disso, outro elemento importante que acompanha o discurso melancólico é justamente a presença de um agente crítico. Tal é a sua força que o corpo do sujeito portador da melancolia reflete sua performance. É a sua aparição que dará origem ao caráter paradoxal ou dissociativo atravessador do ego melancólico. Essa impressão contraditória deixa o indivíduo melancólico imerso num tempo fugidio, “sem que nenhum sinal indique uma direção passada ou futura” (LAMBOTTE, 1997, p. 60). É o tempo trazido por Albrech Dürer, em sua tela Melancolia I (1514)1. Os demônios interiores no melancólico deixam-no submerso e imóvel, pois falta ânimo para ele ir em busca de novos ambientes. Esta imobilidade cobrará o seu preço, visto que o portador da melancolia vai se afastar do mundo real. Nas palavras de Lambotte, “um eclipse do tempo na melancolia, eclipse de que o sujeito toma consciência e que ele relaciona a seu estado de esgotamento e a sua falta geral de interesse” (1997, p. 60).

É sabido que todo esse comportamento é resultado do elo entre a dor moral e o amortecimento psíquico, levando a uma liquidação do seu corpo. É por isso que Freud enquadra a melancolia no grupo das psiconeuroses narcísicas. É uma patologia de mecanismo somatopsíquico (LAMBOTTE, 2000, p. 60). Dessa forma, apesar do melancólico trazer o psíquico vazio, o seu corpo permanece cheio, pois os órgãos ainda estão presentes. Logo, desabitado e habitado ao mesmo tempo, esse indivíduo ficará num pêndulo, entre o quente e o seco, como afirma Moacyr Scliar (2003, p. 75). Ao ser atirado no espaço de falta de sentido da vida, ele, discursivamente falando, vai flutuar num emaranhado sem fim de autodesprezo, de autocomiseração, trazendo à tona uma ambiguidade que se detém no centro da psique via agente crítico. Ao expor os seus queixumes, o melancólico revela “uma constelação mental de revolta” consigo mesmo (FREUD, 1980, p. 281). Há uma perda objetal. Por causa disso, serão, cada vez mais, notórias as representações faltantes que não cessam de fazer com que ele se intimide em suas possibilidades de investimento rumo ao exterior.

A nível de ilustração literária, tanto Macabéa - protagonista de A hora da estrela - quanto Ângela Pralini - personagem principal de Um sopro de vida (pulsações) - vão trazer, em suas narrativas, a faceta melancólica. Cada uma a seu modo, mostrando a diversidade da melancolia na

1 SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trópicos: a melancolia europeia chega ao Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,

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literatura clariciana: “[...] e do discurso que os exprime que se pode deduzir o processo da melancolia, e não, muito claramente, a partir da instalação do mutismo e da completa prostração” (LAMBOTTE, 1997, p. 22). Ângela Pralini revelará a melancolia pelo seu ir e vir entre a sua exaustão e o seu falar de cascata. Macabéa, por sua vez, pela sua pouca menos mudez.

A primeira é uma nordestina, vinda do interior de Alagoas para morar no Rio de Janeiro. Com pouquíssimos estudos, consegue na capital um emprego de datilógrafa, função que, muito mal, aprendera com a tia falecida. A segunda é uma pintora em busca de escrever um livro – algo sobre coisas. Macabéa, chamada também de Maca, revela uma melancolia da pobreza inocente. Por sua vez, Ângela traz uma linguagem monocórdia, circular, repetitiva, características da melancolia patológica e, até mesmo, kierkegaardiana, evidenciando a dupla face da melancolia. Ela fica no limbo. Ambas, embora desejem fazer investimentos na vida, deixam a realidade sempre lhes escapar, pois acabam ficando imóveis, inertes. Elas até tentam, mas apenas chegam a determinado ponto, sem alcançar êxito no que pretendiam:

E quando acordava? Quando acordava não sabia mais quem era. Só depois é que pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. Só então vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser (LISPECTOR, 1998, p. 36).

[...]

ÂNGELA. – De súbito a estranheza. Estranho-me como se uma câmera de cinema estivesse filmando meus passos e parasse de súbito, deixando-me imóvel no meio de um gesto: presa em flagrante. Eu? Eu sou aquela que sou eu? Mas isto é um doido faltar de sentido! Parte de mim é mecânica e automática – é neurovegetativa, é o equilíbrio entre não querer e o querer, do não poder e de poder, tudo isso deslizando em plena rotina do mecanicismo (LISPECTOR, 1999, p.70).

A protagonista de A hora da estrela quase não fala e, quando o faz, são vocábulos formadores de frases desconexas, mostrando o quanto carrega a perda do ser, pois ser também é falar. Inclusive, suas exclamações íntimas são raríssimas. É sabido que Macabéa foi criada por um viés instigante e pessoal da romancista Clarice Lispector, corporificada no narrador personagem Rodrigo S.M.: “A ação desta história terá como resultado minha transfiguração em outrem e minha materialização enfim em objeto. Sim, e talvez alcance a flauta doce em que eu me enovelarei em macio cipó” (LISPECTOR, 1998, p. 20). É uma obra de cunho autobiográfico, pois a autora trata de temas muito caros à humanidade: “a angústia, o nada, a linguagem, o fracasso da linguagem, a comunicação das consciências”, etc. (NUNES, 2009, p. 93). Macabéa vem do interior do Nordeste,

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tem dezenove anos, é franzina, tímida, virgem, assexuada, sobrinha de uma tia beata falecida, que a torturava muito:

Uma outra vez se lembrava de coisa esquecida. Por exemplo a tia lhe dando cascudos no alto da cabeça porque o cocuruto de uma cabeça devia ser, imaginava a tia, um ponto vital. Dava-lhe sempre com os nós dos dedos na cabeça de ossos fracos por falta de cálcio. (...) Mas o que doía mais era ser privada da sobremesa de todos os dias: goiabada com queijo, a única paixão na sua vida. Pois não era que esse castigo se tornara o predileto da tia sabida? (LISPECTOR, 1998, p. 28).

Um dos assuntos marcantes na obra A hora da estrela é o desamparo. Assim, Macabéa é órfã de mãe e pai. Sofre, desde a tenra idade, os resultados da raiz da rejeição. É solitária, ignorante e alienada. Ela divide um quarto de pensão com mais três colegas, todas funcionárias das Lojas Americanas, a saber: Maria da Penha, Maria da Graça e Maria José. O que gostava de fazer – além de não pensar em nada – era escutar o rádio, no qual ouvia palavras as quais deixava de compreender: cultura, eletrônico, álgebra... Mesmo tendo companhia em sua moradia, sua solidão a seguia: “A maior parte do tempo tinha sem o saber o vazio que enche a alma dos santos” (LISPECTOR, 1998, p. 38). Na multidão, “a nordestina se perdia” (LISPECTOR, 1998, p. 40).

À medida que os pensamentos vazios e sem sentido de Macabéa se mostram via discurso, a melancolia se desnuda: “Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém.” (LISPECTOR, 1998, p. 13-14). Clarice trabalha o indivíduo mediante a linguagem íntima, tecendo uma rede complexa entre as falas do narrador personagem Rodrigo S. M. e os pensamentos de Macabéa, os quais são conduzidos por ele. Assim, desenvolve um narrar centrado na pobreza do psicológico da protagonista do que em sua miséria sertaneja. Pobreza essa que se refletirá na falta do sentido da vida: “Essa moça não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro.” (LISPECTOR, 1998, p. 27). Nas palavras do crítico de literatura Benedito Nunes, Clarice Lispector se interessa “não pelos indivíduos em si, mas a paixão que os domina, a inquietação que os conduz, a existência que os subjuga” (NUNES, 2009, p. 116). Por isso, ocorre, abundantemente, o monólogo interior. É a personagem envolta em seus pensares, tamborilando com os dedos da imaginação acerca de si mesma e dos fenômenos ocorridos à sua volta.

Ângela Pralini também contribui com a presente tese acerca da melancolia quando ela mesma traz a marca de ser um ser de exceção. O falar dela é recheado de picos de autodestruição com momentos de excitação pela vida. Neste vai e vem frenético, ela apresenta um quadro de

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delírio de inferioridade, gerando um eu paradoxal, no qual haverá dois agentes – um agente e um agente crítico. Essa ambivalência gerará um espaço não localizável:

ÂNGELA. – Eu sou impessoal até na amizade, até no amor. Eu sou uma S.A. Parêntese que não se fecha. Por favor me feche.

Cada ser é um outro ser, indubitavelmente uno embora quebradiço, impressões digitais únicas ad secula seculorum (LISPECTOR, 1999, p. 59).

Por meio de seu discurso, Ângela, além de trazer um método de defesa operante na inibição melancólica, ainda mostra sinais de lacunas em suas representações, as quais deixam de ser suficientes para a construção do caráter do sujeito. Essas representações dizem respeito ao conjunto – guardado em um determinado ponto do córtex cerebral (é uma fina camada de substância cinzenta que recobre o cérebro, além de captar a sensibilidade do cérebro humano), de imagens sonoras e visuais absorvidas pelo indivíduo ao ter contato com o mundo exterior. As percepções do universo são externas, enquanto as representações são construídas internamente. Porém, com o melancólico, essa experiência não é de todo agradável, pois – ao tocar o mundo circundante, frustra-se em sua busca por satisfação, fazendo com que volte ao seu mundo psíquico. Assim, falta-lhe energia disponível, inaugurando o que Lambotte denomina de “problemática do buraco”. Portanto, é um sujeito preso à inanidade das coisas. Esse buraco é o que Freud vai denominar de hemorragia interna (grifos nossos), a qual é gerada por meio da ferida interna (grifos nossos). Esta metáfora é uma retração que o indivíduo faz para dentro de si mesmo, atuando de forma inibidora. Já aquela é um empobrecimento da excitação. Tudo isso vai levar o melancólico a uma perda, a uma fraqueza.

A partir do momento em que o mundo precisa de investimentos, o sujeito melancólico se sente tolhido para fazer tais, pois se sente como se tivesse sido jogado no mundo à revelia. A contragosto, ele vai atrás da conquista de referências identificatórias, mas se decepciona. E isto faz com que repita “indefinidamente a incompreensibilidade de sua vinda ao mundo, em um sistema de pensamento de que ele mesmo se deixou despossuir” (LAMBOTTE, 1997, p. 142). Esse é o caso de Macabéa e de Ângela Pralini, uma vez que as duas se desapontam com as pessoas à sua volta. A primeira é enganada pelo namorado Olímpico, que a troca – sem nenhum remorso – pela amiga do trabalho, Glória. Macabéa, até o último momento de sua triste narrativa, acreditará que Glória não é tão ruim (“Nada dizia porque Glória era agora a sua conexão com o mundo”), porém é esta que lhe direciona para a morte. Como já estava cansada de andar sem rumo, entrega

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o seu destino a uma cartomante indicada por Glória. Macabéa toca o mundo por meio de Olímpico, Glória e seu Raimundo, a tia beata e as colegas da pensão. No entanto, fica sem obter sucesso em suas relações interpessoais, porque ela se refugia no vazio de sua mente: “Foi talvez essa uma das poucas vezes em que Macabéa viu que não havia para ela lugar no mundo e exatamente porque Glória tanto lhe dava” (LISPECTOR, 1998, p. 66). Ângela também insiste com a vida. Nas palavras de seu autor (uma maneira figurativa de Clarice Lispector estar na história), Ângela é barroca: “AUTOR. Ângela tem em si água e deserto, povoamento e ermo, fartura e carência, medo e desafio. Tem em si a eloquência e a absurda mudez, a surpresa e antiguidade, o requinte e a rudeza. Ela é barroca” (LISPECTOR, 1999, p. 32).

Ângela Pralini, desde a hora de seu nascimento, terá a ferida aberta em sua vida: “Viver me deixa trêmula” (LISPECTOR, 1999, p. 36). Ela é uma pintora, mas deseja escrever um livro: “ÂNGELA. - ... e me indago a mim mesma se estou perto de morrer. Porque escrevo quase em estertor e sinto-me dilacerada como numa despedida de adeus.” (LISPECTOR, 1999. p. 36). Para se andar na vida, deve-se ser um equilibrista. Equilíbrio é o que falta à Ângela. Desde o começo de sua vida, ela padece de um adoecimento específico – a melancolia:

ÂNGELA. – Sou fraca, dúbia, há uma charlatã dentro de mim embora eu fale a verdade. E sinto-me culpada de tudo. Eu que tenho crises de cólera, “cóleras sagradas”. E não encontro o recolhimento da paz. Por piedade, me deixem viver! eu peço pouco, é quase nada mas é um tudo! Paz, paz, paz! Não, meu Deus, não quero ter paz com ponto de exclamação. Quero apenas o mínimo seguinte: paz. Assim, bem, bem devagarzinho... assim... quase dormindo... isto... isto... Não me assustem, sou assustadíssima (LISPECTOR, 1999, p. 128).

Um dos objetivos a ser alcançado nessa tese é estudar as obras Um sopro de vida (pulsações), A hora da estrela e o conto A bela e a fera ou a ferida grande demais sob as óticas da melancolia freudiana, pondo em análise os discursos de Ângela Pralini, Macabéa e Carla de Souza e Santos – as protagonistas das referidas obras literárias. Como o (des)arranjo de sua linguagem contribui para se entender a constituição do ego humano? É um dos nortes interrogativos adotados por ora aqui nesse trabalho. O conto A bela e a fera ou a ferida grande demais ajudará, fundamentalmente, a construir um subtítulo do quarto capítulo que fala acerca da beleza melancólica quando se acredita que a personagem principal se enquadra nas seguintes análises melancólicas: existência sem sentido, desencanto cruel e deslocamento face ao mundo, entre outros. Umberto Eco (2014a, 2014b) traz essa discussão acerca do que é belo e do que é feio

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por meio da história, explicando criticamente como beleza e feiura são assuntos vistos por cada época e nação. Outrossim, tais obras, especificamente falando, servirão de base para a construção de um pensamento analítico quanto à relação existente entre a linguagem da melancolia, à perda do ser e aos recursos linguísticos empregados na construção da atmosfera introspectiva de seus respectivos enredos. Vão sublinhar, com ressoar de suas vozes, também, que a melancolia é uma sensibilidade entre tantas outras.

Valendo-se da estética da melancolia apresentada por Marie-Claude Lambotte, percebe-se que as histórias de Macabéa, Ângela Pralini e Carla de Sousa e Santos se desenrolam por meio da espontaneidade da representação do pensamento, sendo esta uma das marcas na literatura de Clarice Lispector. Esse recurso é chamado de intimista, revelando um narrador psicológico em vez de um narrador cronológico. Por isso, vê-se tanto discurso indireto livre em suas obras, pois ora o narrador se expõe, ora é a personagem principal que fala num mesmo parágrafo. Salvo o conto “A bela e a fera ou a ferida grande demais”, esses dois enredos revelam que suas estruturas narrativas são semelhantes, pois, por meio delas, Clarice Lispector se presentifica: em A hora da estrela, ela aparece via Rodrigo S.M. (o narrador personagem) e, em Um sopro de vida (pulsações), via Autor (narrador personagem), o criador de Ângela Pralini. Os enredos têm pouquíssimos personagens. As protagonistas são seres errantes, melancólicos, deslocados, com uma tristeza que acompanha a sua vida desde os primeiros passos. O espaço de A hora da estrela é geográfico e psicológico, visto que, respectivamente, ocorre no Rio de Janeiro, Alagoas (a infância de Macabéa) e na mente dela. Em Um sopro de vida (pulsações), Ângela, por sua vez, ocupa um espaço praticamente psicológico, vago e indefinido. Assim, também é o sentido de sua existência. Mesmo que Macabéa esteja sendo narrada num espaço geográfico, como o Rio de Janeiro, ela, internamente, é vaga e alienada. Seu deslocamento é palpável porque, primeiro, está longe de sua terra natal; segundo, porque ainda não encontrou um porquê para viver e, terceiro, porque suas conexões (Raimundo, Olímpico, Glória etc.), nesse mundo, são, na verdade, desconexões: “A pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham.”/“É que a esta história falta melodia cantábile. O seu ritmo é às vezes descompassado” (LISPECTOR, 1998, p.16).

Acredita-se que Clarice Lispector optou por ser fiel a seu modo de narrar psicológico no final de sua existência, pois tudo se passa na mente de Ângela, impulsionada pelo Autor (narrador-personagem). Clarice é uma escritora que se vale das ferramentas do mistério e da imaginação para

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poder construir histórias recheadas, que, embora tenham sua origem em uma história real particular, traduzem as angústias do ser trazidas até o leitor pelo pensamento e pela linguagem. Nesses dois romances intimistas, Clarice Lispector vai até às últimas consequências do ser – a sua essencialidade. É uma literatura que se amalgama no e pelo vazio. Ela parte do núcleo interno da personagem a fim de que esta possa construir o sentido de sua existência: “Os personagens de Clarice Lispector são estruturados pelo aspecto da intuição do sentido ontológico da existência humana, que é o fulcro das correntes existenciais” (NUNES, 2009, p. 113).

Outrossim, o narrador-personagem nas duas obras deixa o leitor a par de quem são realmente as personagens, seus questionamentos, sua procura por um lugar no mundo, seu vai e vem na enunciação, revelando essa busca incessante que culmina no epílogo. E isso é mostrado pelo teor psicológico da ação. Tem os elementos físicos, mas o que de fato contribui para se saber quem é realmente a personagem é o seu pensamento. O foco narrativo é em primeira pessoa e também é um narrador onisciente, que já sabe de tudo. Todas as duas personagens têm conflitos internos, mas Macabéa, em A hora da estrela, vai tomar consciência desse embate mais do meio da narrativa para o final, quando Olímpico termina com ela. Em A hora da estrela, há o antagonista – que é Glória, embora, de certa forma, todos parecem contribuir para a melancolia inocente de Macabéa, desde a tia até a Cartomante. Ou seja, ela está sempre com um nó no peito.

Para melhor sedimentar essa pesquisa, foi realizado um levantamento da produção teórica, especialmente do referencial crítico-literário, tomando como ponto de apoio, principalmente, a leitura exaustiva das duas obras já referidas. O suporte defendido aqui, em termos de teoria psicanalítica, são os textos de Lambotte (1997, 2000), além da leitura dos críticos de literatura nacional já elencados nesse presente discurso, pesquisadores experientes nas narrativas de Clarice Lispector, a fim de entender o problema da investigação levantado e dos objetivos definidos no presente texto. O corpo da pesquisa caracteriza-se pela análise das obras no tocante à melancolia. O principal instrumento de estudo para averiguação da melancolia nos personagens foi o uso do fichamento das obras. Dessa forma, estudou-se O discurso melancólico: da fenomenologia à metapsicologia (LAMBOTTE, 1997), Estética da Melancolia (LAMBOTTE, 2000), Saturno nos trópicos: a melancolia europeia chega ao Brasil (SCLIAR, 2003), Nós os mortos: Melancolia e Neo-barroco (LOPES, 1999), Depressão e Melancolia (PERES, 2003), Sol negro: depressão e melancolia (KRISTEVA, 1989), Luto e Melancolia (FREUD, 1980), O que é corpo (GAIARSA, 1994), Cal(e)idoscorpos: um estudo semiótico do corpo e seus códigos (CAMPELO, 1996),

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Depressão (DELOUYA, 2000), Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação (BIRMAN, 1999), O que é semiótica (SANTAELLA, 1983) e O dorso do tigre (NUNES, 2009). Além desses autores, tem-se, ainda, como viés de contribuição literária e de pesquisa, Neiva Pitta Kadota, com a obra A tessitura dissimulada (1997), Jeana Laura da Cunha Santos, com A estética da melancolia em Clarice Lispector (2000), Carmen Soares, com Pesquisas sobre o corpo: ciências humanas e educação (2007), Judith Butler, com Quadro de guerras: quando a vida é passível de luto? (2016), Evando Nascimento, com Clarice Lispector: uma literatura pensante (2012), Olga de Sá, com Clarice Lispector: a travessia do oposto (1993), Umberto Eco, com História da beleza (2014a) e com História da feiura (2014b), Tzvetan Todorov, com As estruturas narrativas (1970) e Roland Barthes et al, com Análise estrutural da narrativa (2013). Para fins biográficos da escritora Clarice Lispector, lançou-se mão das seguintes referências: Clarice (MOSER, 2011) e Cadernos de Literatura Brasileira (2004), edição especial, números 17 e 18, organizados por Nadia Gotlib. Por fim, tem-se também Denilson Lopes (1999), para o qual a melancolia deve ser analisada por meio das palavras-chave “delicadeza” e “fragilidade”.

Quanto à divisão do presente trabalho, optou-se por delineá-lo em cinco capítulos. Ele foi iniciado com uma introdução sobre a feitura do texto. Depois, vem o segundo capítulo, que faz um levantamento da fortuna crítica das obras de Clarice Lispector. Adiante, tem-se o terceiro capítulo, Corpo de Ângela Pralini e Macabéa – lugares de um registro melancólico. O quarto é O discurso melancólico nas vozes de Ângela Pralini e Macabéa.

O primeiro capítulo é uma abertura acerca da melancolia, dos estudos sobre esse tema tão antigo, mas, ao mesmo tempo, tão enigmático. Trouxe os autores responsáveis por abrir os sulcos em seu terreno, principalmente a partir das análises psicanalíticas, a fim de fazer o contraponto com as obras literárias escolhidas.

O segundo capítulo, por sua vez, propõe fazer um recorte dos autores, críticos de arte, jornalistas, professores, pesquisadores, que fizeram ensaios sobre textos claricianos e acerca de sua pessoa.

O terceiro capítulo trata do conceito sobre o que é corpo e como a melancolia interfere neste. Vai se tratar aqui do corpo como lugar, primordialmente, da melancolia e de como esta irá afetá-lo. Para tanto, os corpos de Ângela Pralini e de Macabéa serão as referências desse estudo.

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O quarto capítulo, por sua vez, busca desnudar e interpretar, à luz dos textos teóricos elencados, o discurso das protagonistas dos romances ora estudados. Como o falar quase ininterrupto de Ângela Pralini revela quem ela é? Seu falar revela o seu mundo interno, um mundo perecível, fatídico, sem poder sair das bordas do seu espaço, sem poder ir além do que interpreta à sua volta. O discurso irá denunciá-la. Como um viés desse capítulo, pretendeu-se falar sobre o assunto beleza melancólica, que terá como texto principal – além dos romances escolhidos, o conto A bela e a fera ou a ferida grande demais, no qual Carla de Sousa e Santos é a protagonista de uma alienação, mas que, a partir do momento epifânico, reconhece a sua humanidade. Representa uma face da melancolia, pois vive em torno de uma beleza artificial, até o dia em que se encontra com o mendigo (a fera). Desde então, percebe a tragicidade que é a sua vida, o vazio preenchido por festas, o desencanto cruel do seu meio social.

No quinto capítulo, a hodierna tese apresenta as conclusões de todo o caminhar tomado durante a elaboração da escrita.

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2 CLARICE, ELA MESMA E A CRÍTICA

“Clarice veio de um mistério partiu para outro ficamos sem saber a essência do mistério ou o mistério não era essencial. Essencial era Clarice vagando nele.” (Carlos Drummond de Andrade)

Em sua obra clássica sobre o levantamento da fortuna crítica de Clarice Lispector, a professora, pesquisadora, biógrafa, livre docente pela Universidade de São Paulo e crítica afamada de uma das melhores romancistas brasileiras – Nádia B. Gotlib – traz muitos enunciados próprios do ser Clarice. Uma das escritoras mais prestigiadas do Brasil teve orgulho de sempre se autodesignar brasileira. Realmente, Clarice Lispector tinha esse elo de pertencimento com as terras brasileiras. Embora fosse humilde de origem e de alma (autoafirmava apenas ser uma dona de casa), ela era um mito (GOTLIB, 2004, p. 06). Seus livros atestam a incolumidade de sua personalidade quanto ao amor pelo Brasil e quanto à irremediável vontade/necessidade de escrever. Nas palavras de Nádia Gotlib, “suas obras de ficção sempre se situaram na fronteira entre o real imediato, explícito, e uma profundidade íntima, secreta, de que só é capaz a escritura sem qualquer concessão” (GOTLIB, 2004, p. 06-07).

Apesar de fazer do jornalismo um ofício colateral, é na literatura que vai derramar todo o seu olhar perspicaz acerca do mundo. Por isso, faz uso dos personagens não como lentes de observação dos fatos, mas utiliza-se dos fatos, a fim de mostrar o desdobrar destes nos heróis de suas novelas. Como bem lembra o pesquisador e professor Evando Nascimento, “o que está em causa na narrativa clariciana” é “a ficcionalidade dos fatos” (2012, p. 262).

Duas cidades marcam a literatura clariciana, a saber: Alagoas e Rio de Janeiro. Embora Clarice Lispector amasse perdidamente Recife – capital do Estado de Pernambuco, sua escrita traz à memória do leitor estas duas referências geográficas. Estas também encerram duas regiões diferentes: Nordeste e Sudeste. Isto assinala uma ponte comum entre estes dois espaços territoriais brasileiros, uma vez que aquele subsidiava a mão de obra barata para este devido ao boom industrial. Em 1976, precisamente no segundo semestre deste ano, é sabido que uma das “mais notável das ficcionistas do idioma, uma espécie de milagre, uma tal de aleluia da literatura brasileira” (GOTLIB, 2004, p. 06), foi a Recife, lugar de sua infância, reviver os momentos mágicos que se encontram em muitos dos seus contos, tal como em “Restos do Carnaval”, relançado no ano de 1971, na coletânea intitulada Felicidade Clandestina. Neste momento, a

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autora já assinalava uma escrita a-gênero, ou seja, sem gênero específico. Ora os contos são contos, mas ora são crônicas e, às vezes, um ensaio.

2.1 A ANTILITERATURA CLARICIANA E A TÉCNICA DO FLUXO DE CONSCIÊNCIA

Corroborando tal assertiva, Marina Colasanti, na orelha do livro Felicidade Clandestina2, afirma que o fazer literário clariciano primava pela recusa da “escravidão dos gêneros” (1998). Ela se opunha à ditadura das catalogações literárias. Valendo-se da língua como instrumento afiado de dissecação anatômica sensorial e literária, a escritora Clarice Lispector prima por inaugurar um mundo inconstante, variável, instável. Erige narrativas que pensem o impensável, que desmitifiquem os limites impostos pelas teorias e/ou sociedade. Por isso, abre mão de pertencer a um gênero textual único ou, até mesmo, de estar inserida em uma prateleira de categorias literárias. Um dos exemplos é a sua obra de estreia Perto do Coração Selvagem (1998). A princípio, pensa-se que é um livro de contação com fundo psicológico, porque as suas páginas trazem uma obra que mostra a descontinuidade das ações da protagonista Joana, pois faz do interior da personagem o seu âmbito, usando da linguagem introspectiva a fim de dar sequência à ação narrativa. Porém, como observa o crítico de literatura Benedito Nunes, todos esses elementos não designam “que a narrativa vise, como o realismo psicológico do século passado, à análise de caracteres e à fixação de tipos” (1973, p. 12).

Por meio da “consciência individual como modo de apreensão artística da realidade” (NUNES, 1973, p. 13) e fazendo do descontínuo uso comum em sua literatura, Clarice revela que as suas obras adquirem uma perspectiva fora da teoria de gêneros. Dessa forma, posiciona-se com uma ficção literária brasileira a-estilo. Ela busca surpreender o leitor com uma escritura na qual há um movimento próprio, sem se agregar a estilos, a escolas, a movimentos. A literatura clariciana é uma literatura que transgride as normas textuais, as regras linguísticas, vai além da literatura brasileira marcada “pelo documentarismo social da década de 30” (NUNES, 1973, p. 11). A nível de exemplificação desse transgredir é Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1998), pois começa com uma vírgula. Isto revela que, em busca de um “ditado interior”, criou a sua própria estrutura narrativa, apontando para o violentamente diverso. Por isso, seus enredos trazem tanto o humano quanto o animalesco a fim de propiciar ao leitor uma dimensão da vida pulsante – somada

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com o orgânico e o inorgânico, o vivo e o não vivo (NASCIMENTO, 2012, p. 14). Assim, via romances e contos, promove uma desterritorialização, pois sai dos pensamentos díspares instituídos pela própria sociedade. Por meio de sua literatura, propõe um questionamento acerca da tese de Hegel sobre o humano (este filósofo fazia distinção entre homens e animais), ao cruzar humanos e não humanos, animais e plantas, reino animal e reino vegetal. Para Evando Nascimento, esse acasalamento na literatura de Clarice Lispector dá a entender que, na autora, há “uma nostalgia de não ter nascido e crescido bicho de todo, isto é, de se sentir condenada a ser um eterno centauro, metade humana, metade animal” (NASCIMENTO, 2012, p. 27).

Dessa forma, ela sai dos estudos binários entre biologia e zootecnia, por exemplo, e parte para o “ser-outro” (NASCIMENTO, 2012, p. 28). Este pensamento remete ao crítico do conjunto das obras claricianas, o paraense Benedito Nunes (2009). Fazendo parte da fortuna crítica da referida autora, Benedito Nunes, em sua obra O dorso do tigre (2009), deixa claro que o “desenvolvimento de certos temas importantes da ficção de Clarice Lispector insere-se no contexto da filosofia da existência” (2009, p. 93). Assim, é que Evando Nascimento chama a literatura clariciana de literatura racional, que pensa. E, no dizer de Benedito Nunes, é uma soma de obras que relaciona temáticas que:

partem da mesma intuição kierkegaardiana do caráter pré-reflexivo, individual e dramático da existência humana, tratando de problemas como a angústia, o nada, o fracasso, a linguagem, a comunicação das consciências, alguns dos quais a filosofia tradicional ignorou ou deixou em segundo plano (2009, p. 93).

Outro crítico da fortuna clariciana é Silviano Santiago. Além disso, ele exerce as atividades de ensaísta, romancista, contista e poeta. Um dos caminhos possíveis de ser trilhado a fim de compreender melhor o interesse de Santiago pela obra de Clarice Lispector é a leitura do ensaio Clarice Lispector: a coragem do medo, publicado no sítio eletrônico Suplemento de Pernambuco, em 25 de maio de 20203. Como assunto tratado neste texto, Santiago traz o medo. Para tanto, vale-se das leituras de Roland Barthes e Thomas Hobbes. O primeiro defende que sua mãe pariu dois filhos gêmeos: o medo e ele. E o segundo, por sua vez, nasce prematuramente “durante o ‘grande

3 SANTIAGO, Silviano. Clarice Lispector: a coragem do medo. 25 de maio de 2020. Disponível em:

<https://www.suplementopernambuco.com.br/artigos/2491-clarice-lispector-a-coragem-do-medo.html>. Acesso em: 5 jun. 2020.

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medo’ de 1588, na Inglaterra”4. Segundo o autor, o medo paralisa o tête-à-tête com a linguagem. Clarice Lispector rompe com esta angústia, apesar de ter nascido em Tchetchelnik durante uma fuga em 10 de dezembro de 1920: “1920 Nasce, a 10 de dezembro, em Tchetchelnik, uma aldeia da Ucrânia, então pertencente à Rússia, Haia Lispector, terceira filha do comerciante Pinkouss e de Mania Lispector” (GOTLIB, 2004, p. 08).

Amante do prazer – e não à toa, escritora do livro A via crucis do corpo, publicado pela primeira vez em 1974, Clarice Lispector é o espelho da coragem. Com ela, o medo pode até aparecer em cena, movendo os personagens em busca de suas autorrealizações e autorreflexões, mas ele nunca é o mote da história. Ela vai, assim, inaugurar uma narrativa moderna, contribuindo para que o leitor tenha “acesso à linguagem plena, feliz e inventiva do prazer”. Ela galopa no dorso do cavalo de seu texto “Seco estudo de cavalos” e afirma: “Da calçada deserta eu olharia: um canto e outro. E veria as coisas como um cavalo as vê. Essa era a minha vontade”4, pois foi publicado no livro Onde estivestes de noite, da editora Rocco.

Percebe-se, portanto, que Clarice em nada tem de medrosa. Tanto é que, a pedido de Lúcio Cardoso, arrola um título em sua obra de estreia Perto do Coração Selvagem, publicado em 1944, título tirado de romance de James Joyce, que trouxe muita confusão agregada ao nome de Clarice, porém não diz respeito à originalidade e à autenticidade da autora (GOTLIB, 2004, p. 16). Por isso, sua escrita foi confundida como se fosse uma cópia de Virgínia Woolf ou James Joyce, embora ela nunca os tenha lido. Em suas próximas obras, tais características estarão presentes tanto no texto, quanto no título para que nenhuma dúvida paire mais sobre quem é a escritora brasileira e judia Clarice Lispector.

De prazer, Clarice Lispector entende bem, pois os seus olhos estão apurados para a decadente, egoísta e avara natureza humana. Seu objetivo: causar um estado de choque no leitor. Em uma de suas obras primas – A via crucis do corpo, o protagonista é – para espanto de quem lê – justamente o corpo. Indo além das amarras da teoria literária sobre como deve ser uma narrativa e seus personagens, ela inova, uma vez que sua literatura é sempre uma literatura de vanguarda. Suas novelas visam sempre à quebra de modelos preestabelecidos, rejeitando, assim, de início, a ideia de que deveria apontar um ponto de vista. A tipologia textual erigida pela escrita clariciana é adepta da negação do conformismo canônico em qualquer área que seja. Nos anos de um possível

4 Disponível em:< https://www.revistaprosaversoearte.com/seco-estudo-de-cavalos-clarice-lispector/>. Acesso em: 5

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declínio da literatura, tese que irrompeu, principalmente, por causa da publicação do texto What is literature?, de Jean-Paul Sartre, em 1948, Clarice Lispector vai continuar escrevendo, como se sua escrita fizesse pouco caso dessa corrente. Enquanto se debatia no mundo sobre uma possível morte da literatura (MOISÉS, 2016, p. 21), a escrita clariciana mantém-se, geralmente, ativa, produzindo obras de qualidade. Inclusive, no final da vida, mesmo doente de um câncer, Clarice escreveu duas obras-primas simultaneamente, a saber: A hora da estrela e Um sopro de vida (pulsações).

Tendo em vista sua origem de fuga, preconceitos e mortes que atingiram a sua família de forma drástica, Clarice escreve um texto que se vale das beiradas sociais e existenciais (principalmente estas), mas que as converge para o centro. Tece a tessitura da solidão, das incongruências humanas, do descaso socioeconômico, da vida fútil. Por meio de suas obras, expõe e disseca para o seu público “sua consciência de que seu mundo não era um mundo em que fatos se explicavam razoavelmente por causas visíveis” (MOSER, 2009, p.159). Como bem reconhece o ensaísta Carlos Mendes de Sousa, que trouxe, de forma sintética, para o Cadernos de Literatura Brasileira uma síntese de sua obra Clarice Lispector: figuras de escrita (2000): “Clarice Lispector é a primeira mais radical afirmação de um não-lugar na literatura brasileira” (SOUSA, 2004, p. 140). Um exemplo notório (embora haja outros magnânimos) disto é A hora da estrela. Macabéa não representa apenas um modelo de êxodo rural e de abandono social. Ela é a tentativa de refletir sobre a tipologia da decepção, a tipologia a-padrão. Espera-se algo (um retorno) do mundo, mas a esperança acaba por se tornar malograda. Esta é Macabéa – a Maca que nunca se manca (NASCIMENTO, 2012, p. 207). De maneira fragmentária, a autora vai soltando os episódios dessa novela sem final feliz. Faz isto sem medo do que pensa a crítica a seu respeito: “por nunca se alçar à linguagem do delírio, o texto do medo é raro na modernidade, menos no Brasil” (SANTIAGO, 2020).

No entanto, Clarice – moderna e ultramoderna ao mesmo tempo – desconstrói essa ideia de que o autor deve estar em conformidade estilisticamente falando. Por isso, causou uma certa estranheza em seu debut, com Perto do coração selvagem e frases do tipo foram desenhadas: “O que se deve fixar, antes de tudo, em Perto do coração selvagem, será exatamente aquela personalidade de sua autora, a sua estranha natureza humana” (LINS, 1944 APUD ANDRADE, 2017, p. 01) Ela, de fato, não estava à procura de ser alojada em uma determinada estante de estilo ou, ainda, de participar de um grupo acadêmico ou de submeter a sua coleção aos gostos populares.

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Clarice Lispector queria e fazia aquilo que Antonio Candido chama de literatura feita para permanecer. Uma vez que levava o material verbal a sério, sem restrições, inclusive, de gêneros, Clarice se fincou como uma escritora inventiva: “AUTOR. – [...] Só me resta inventar” (LISPECTOR, 1999, p. 71) e de um gozo com porteiras bem abertas: “[...] – Mas vou morrer de saudade de você! Como é que eu faço?/ - Use-se” (LISPECTOR, 1998, p. 18). O crítico literário brasileiro é contundente quando afirma: “Para que a literatura brasileira se torne grande, é preciso que o pensamento afine a língua e que a língua sugira o pensamento por ela afinado” (CANDIDO apud ANDRADE, 2017). E, acaso, não é isto que Ângela Pralini faz o tempo todo invadida pela melancolia? “ÂNGELA. – Eu sou o atrás do pensamento. Escrevo no estado de sonolência, apenas em leve contato do que estou vivendo em mim mesma” (LISPECTOR, 1999, p. 72). O não-lugar nos escritos claricianos é a-geográfico, mostrando, mais uma vez, uma desafinação aos moldes narrativos de espaço.

Enquanto que na época de sua estreia os autores faziam o entrelaçamento do localismo versus universalismo, Clarice simplesmente inaugurou a técnica do fluxo da consciência, o tempo psicológico em detrimento do cronológico, e a subjetividade da protagonista Joana ganhou relevo. Suas memórias de menina ora a levam ao presente, ora ao passado. Assim, a autora ignora o que quer que esteja sendo reverberado naquele momento histórico-social-literário. Faz sobressair uma linha de pensamento de cunho próprio. A linguagem se revelou de duplo caráter: ora salvava, ora aniquilava o sujeito. É uma linguagem paradoxal, pois, ao mesmo tempo, os personagens se valem da linguagem para poderem nomear o seu desamparo: é uma cartografia da dor. O maior enfrentamento para suas heroínas não são as grandes cidades e sua crueza social, mas elas mesmas, pois estão inseridas num mundo de “despojamento desterritorializador” interno (SOUSA, 2004,p. 141). Suas obras são prenhes de uma linguagem dual. Esta pode fazer com que os personagens triunfem ou se aniquilem. É uma linguagem dupla que leva as personagens a um momento vertiginoso e abissal. Ela gosta de designar, mas se sente mais feliz sem designar, ou seja, sem dar nomes. Daí, surge o enigma: “Clarice Lispector reforça o dado enigmático, porém não místico, da própria literatura, qual seja, o de não de identificar a um gênero exclusivo” (NASCIMENTO, 2012, p. 92). Ou seja, da preferência da não designação vem o “não saber, o vazio de uma experiência que se desconhece e se vive no nível do corpo, como dessublimada paixão” (NASCIMENTO, 2012, p. 102). O espaço em Perto do coração selvagem é “terras sem nome” (SOUSA, 2004, p. 141).

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Essa fixação pela palavra faz parte também do processo reiterado de podar os seus próprios textos. No texto Clarice Lispector, mais um livro. E a mesma solidão, publicado em 25 de agosto de 1977, pelo jornal O Globo (GOTLIB, 2004, p. 73), no capítulo Clarice por ela mesma Perto do Coração Selvagem, organizado pela professora e pesquisadora Nádia Batella Gotlib, a romancista reafirma esse compromisso com a linguagem: “Eu trabalhei três anos em Água viva (grifos do autor). Antes ele tinha 280 páginas. E nesses três anos eu fui podando, podando, para que nenhuma palavra fosse vazia, para que toda palavra tivesse alguma coisa a dizer” (LISPECTOR, 1977, apud GOTLIB, 2004, p. 82). Além disso, o ato de escrita de Clarice é guiado por uma linguagem lanterna: “Eu nunca sei de antemão o que vou escrever. Tem escritores que só se põem a escrever quanto têm o livro todo na cabeça. Eu não. Vou me seguindo e não sei no que vai dar” (entrevista concedida em 20 de outubro de 1976, ao MIS-RJ) (LISPECTOR, 1976, apud GOTLIB, 2004, p. 80).

2.2 OS TEMAS, OS PERSONAGENS E O MUNDO CLARICIANOS

Passada a surpresa no mundo literário editorial, Clarice Lispector conquistou amigos sólidos, entre eles: Rubem Braga, Érico Veríssimo, Fernando Sabino e Lúcio Cardoso. Muitos temas foram encontrados nas obras claricianas, tais como: solidão, crise existencial, medo, angústia, amoralidade, melancolia kiekegaardiana, melancolia social, melancolia patológica ou psicanalítica, gozo, escrita, judaísmo, autoconhecimento, etc. A partir disso, a fortuna crítica em torno de seus livros só aumentou. A escrita sempre será um tema recorrente em suas obras, como também em suas entrevistas. Será, muitas vezes, reconhecida pela própria autora como uma angústia e um destino. Em outros momentos, será reconhecida pelos críticos como uma escrita indicadora do não-geográfico, de uma entrega sem limites. Ao se mudar para a Europa, pois se casara com Maury Gurgel Valente (1921-1994), revela a inconstância de seu ser. Outrossim, aflição escritural que vai acompanhá-la durante toda a vida: “Mas já me baseei toda em escrever e, se cortar este desejo, não ficará nada” - Berna, maio de 1946 (SOUSA, 2004, p. 142). Em crônica publicada em 30 de novembro de 1968 – Como é que se escreve?: “Quando não estou escrevendo, eu simplesmente não sei como se escreve”. Em outra crônica publicada em 14 de setembro de 1968 – Escrever, ela diz:

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Eu disse uma vez que escrever é uma maldição. [...] Hoje repito: é uma maldição, mas uma maldição que salva” [...]. É uma maldição porque obriga e arrasta como um vício penoso do qual é quase impossível se livrar. [...]. E é uma salvação. Salva a alma presa (LISPECTOR, 1968, apud GOTLIB, 2004, p. 68).

Conhecedora do desejo de muitos críticos desavisados de sua personalidade literária principalmente, avisa logo que nunca foi literária, que nunca pensou em escrever como se fosse uma carreira. Ela escrevia de forma espontânea e por satisfação pessoal: “Escrevo porque encontro nisso um prazer que não sei traduzir” (LISPECTOR, 1944, apud GOTLIB, 2004, p. 68). Para se jogar na escrita, gostava mesmo era de acordar antes do nascer do sol, com a máquina de datilografia nas pernas. Além de toda essa conduta de trabalhadora matutina, Clarice Lispector escrevia e reescrevia seus romances e contos diversas vezes: “[...] em meados dos anos 50, ela trabalhava em A maçã no escuro (1998). Não podia imaginar na época que o romance seria um de seus trabalhos mais exaustivos. Suas 500 páginas datilografas foram reescritas pelo menos 11 vezes” (VALENTE, 2004, p. 45), recorda seu filho Paulo Gurgel Valente.

Nas palavras de Lêdo Ivo, poeta e ficcionista especializado em obras memorialísticas, Clarice era “nome de luz e esplendor” (IVO, 2004, p. 48). Chamada de Haia Lispector pelos pais, a autora se consolida na vida social e literária como Clarice, que significa brilhante, luminosa, ilustre (vem do latim clarus). Larga a origem judia, pois, em 12 de janeiro de 1943, naturaliza-se brasileira, adotando, de uma vez por todas, esta naturalidade. De “dicção emigratória e imigratória” (IVO, 2004, 48), tanto vital e literariamente, ela promove uma ruptura por meio da linguagem – independentemente de escrever para jornais ou para a publicação de seus livros: “Convertendo-a um instrumento pessoal e desligado de qualquer tradição egrégia, um idioma solar, alagoanamente solar, destinado a narrar as tribulações de pequenas criaturas rodeadas de si mesmas e desaparelhadas para efetuar o trajeto em direção aos outros” (IVO, 2004, p. 48).

Essa luz vai se reverberar em toda a sua obra, inclusive nos textos jornalísticos. Ela escancara o diurno sobre o noturno, desvirginando a madrugada, rompendo com as sombras e inaugurando “uma prosa de fulguração e enfeitiçamento”. Lança luz numa prosa a-tradicional, imprevisível, fora de gênero textual. Mesmo que algumas obras clássicas modernas já estivessem burlando a teoria da literatura em termos de elementos narráticos, tais como: A divina comédia (2020), de Dante Alighieri, que deixa “O inferno” como a mais legal das partes e, em solo brasileiro, Machado de Assis, com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1992), Clarice Lispector brinca com o enredo tradicional, enxertando nele a não linearidade. O real e o

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onírico se entrelaçam para poder dar vida às suas histórias. De suas personagens “a personalidade é feita e refeita” (NUNES, 2009, p. 118). É chamada por Lêdo Ivo de “milagreira dos sofrimentos” de suas protagonistas, no geral, femininas. Ela sabia o que era sofrer, pois, desde cedo, já tinha perdido a mãe (em 21 de setembro de 1930), vítima de uma moléstia adquirida durante a escapada das guerras e suas mazelas, e o pai que não foi testemunha de seu fazer literário inovador – morrera em 26 de agosto de 1940. Além de tudo isso, Clarice padecerá um calvário em termos editoriais, que muitas vezes foi tratada de forma humilhante e machista (IVO, 2004, p. 50).

Por meio de sua linguagem de cunho vanguardista, Clarice Lispector, a sem medo, teve a coragem de levar a língua a lugares inóspitos da mente humana (o leitor), preferindo, assim, apostar em uma via autêntica ao se conformar ao esperado. Nas palavras de Antonio Candido, em seu ensaio No raiar de Clarice Lispector, Perto do coração selvagem é literatura de “performance (grifos do autor) de melhor qualidade”1. Clarice sempre primou por esta. Quando Alberto Dines foi incumbido de salvar do naufrágio editorial um determinado Jornal, recebeu um telefonema de Otto Maria Carpeaux a oferecer uma coluna para ela. Assim, ficou responsável por trabalhar com um público feminino e popular. Era uma pessoa extremamente organizada:

Sua produção era extraordinária. Ela mandava para a redação as colunas diagramadas e ilustradas. Prontas. Montava tudo em casa, com recortes de revistas femininas internacionais, como a Vogue (grifos do autor) e Elle (grifos do autor), e nos entregava tudo perfeitamente editado, fechado, sem nada a tirar ou pôr. (DINES, 2004, p. 52).

Os personagens dos enredos claricianos, segundo Benedito Nunes, “são estruturados pelo aspecto da intuição do sentido ontológico da existência humana, que é o fulcro das correntes existenciais” (NUNES, 2009, p. 113). Um desses exemplos é o livro O lustre (2015), o qual retrata a crise existencial de Virgínia que está à procura de algo novo em sua vida. É o segundo livro da escritora e ela penou muito para vê-lo publicado, uma vez que Clarice sempre sofreu com a rejeição e a incompreensão quanto à riqueza de seus livros. Valendo-se da obscuridade para tratar das experiências que acometem suas heroínas, Clarice Lispector elaborou um experimento com a linguagem de forma que há uma “espécie de jogo decisivo com a realidade” (NUNES, 2009, p. 110). Como bem salienta Nunes (2009), por mais que as críticas afirmem que suas personagens são tipos psicológicos, elas “não cabem na galeria” destes.

Os elementos narráticos são manipulados pela invencione clariciana a exteriorizarem justamente as angústias e conflitos pelos quais passam as/os protagonistas. Constrói seres com

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