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Para Ser Escritor - Charles Kiefer

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Academic year: 2021

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Ficha Técnica

Copy right © 2010,

Revisão de textos Débora Tamayose Lopes Capa Mariana Newlands

Im agem de capa Bicycling Down Capitol Steps | © CORBIS/Corbis (DC)/Latinstock

Diagram ação Città Estúdio

Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP-Brasil) Ficha catalográfica elaborada por Oficina Miríade, RJ, Brasil.

K47 Kiefer, Charles,

1958-Para ser escritor / Charles Kiefer. – São Paulo : Ley a, 2010. ISBN9788580441543

1. Teoria da literatura. 2. Literatura brasileira. 3. Ensaios. I. Título. 10-0048 CDD 801.95

2010

Todos os direitos desta edição reservados a TEXTO EDITORES LTDA. [Um a editora do grupo Ley a] Av. Angélica, 2163 – Conj unto 175 01227-200 – Santa Cecília – São Paulo – SP – Brasil

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U

m escritor som ente é escritor quando m enos é escritor, no instante m esm o em que tenta ser escritor e escreve.

Na absoluta solidão de seu ofício, enquanto a m ente elabora as frases e a m ão corre para acom panhar-lhe o raciocínio, é escritor.

Nesse espaço, entre o pensam ento e a expressão, vibra no ar um ser sutil, fátuo e que, term inada a frase, concluído o texto, se evapora. Nesse átim o, o escritor é escritor. Aí e som ente aí.

Depois, j á é o prim eiro leitor, o prim eiro crítico de si m esm o e não m ais escritor.

Explodida a bolha de sabão em que planava, com eça a surgir o autor, essa derivação vaidosa e arrogante do escritor.

É o autor que im agina o efeito que seu texto produzirá sobre os outros, sobre a sociedade; é o autor que sente prazer em ver seu nom e estam pado na capa de um a obra qualquer; é o autor que se regozij a com um com entário positivo da crítica, que se enfurece com um com entário negativo.

E a depender da visão de m undo que o autor im porta da cultura em que está m ergulhado o corpo de hom em ou de m ulher que lhe dá suporte, fará um a literatura m ais subj etiva e pessoal ou m ais obj etiva e social. Mas qualquer um deles j á deixou de ser escritor, j á abriu m ão da total liberdade de escrever sem nenhum propósito e j á com eçou a servir ideologicam ente a isto ou àquilo.

A angústia de escrever talvez advenha daí, dessa encruzilhada, dessa cicatriz e dessa im possibilidade de se perm anecer escritor por m uito tem po.

Não será por isso que o fluxo de consciência é tão prazeroso? Porque, em certo sentido, o fluxo, ao fazer j orrar o m aterial inconsciente, é capaz de prolongar a duração do escritor e m anter afastado o autor.

O autor, ao contrário do escritor, corre rapidam ente em direção a outra m utação – transform a-se no profissional de literatura, no cronista, no contista, no rom ancista. E este, esquecido de sua origem e de sua com pleta inutilidade, alienado e vencido, organiza sessões de autógrafos, faz palestras e contrata assessores de im prensa.

Aos poucos, enfim , o autor, auxiliado por esses profissionais com petentes, vai m atando o escritor, fazendo-o esquecer-se de que escrever e sonhar são um a coisa só e que se esgotam no próprio devir.

Às vezes, num gesto desesperado, para livrar-se dessa m orte anunciada, o escritor apanha um a espingarda de caça e explode a cabeça dos três.

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A

locom otiva e a im prensa criaram o conto m oderno.

Edgar Allan Poe, num a resenha sobre Twice told tales , de Nathaniel Hawthorne, faz a apologia da rapidez e da concisão, um século antes de Ítalo Calvino estabelecê-las com o paradigm as estéticos para o século XXI.

Poe condena o estilo lento, rebuscado, verboso, com parando-o às velhas diligências do Oeste. O futuro, anuncia o escritor de Boston, será das locom otivas e dos textos rápidos. A dissertação, vaticina o pai do Corvo, cederá lugar à inform ação. Até m esm o o conto, que ele tam bém cultiva, há de ser lido de um a assentada. De um a assentada de trem que fizesse um percurso de, no m áxim o, duas horas. Ou um a só, de preferência.

Hoj e, m uitos bons contos podem ser lidos em m enos tem po, m uito m enos tem po. Contos que requeiram duas horas de leitura j á são, para nós, tediosas novelas.

O m undo se acelera, e a literatura – espelho em que ele se m ira – apressa-se tam bém .

Im portante é não confundir pressa com rapidez. Pressa é relaxam ento.

Rapidez pode ser virtude.

Não escrevo este rápido e conciso texto com pressa. Mas ele poderá ser lido rapidam ente.

Ele deve ser lido rapidam ente, que os bytes e os neurônios têm pressa, m uita pressa.

Porque a nossa atual locom otiva cham a-se internet. E ela é rápida, m uito rápida.

Além de gerar palavras novas – os dinossauros as cham avam neologism os –, essa nova machina exige textos curtos, parágrafos curtos, frases curtas.

Hoj e, com um olhar retrospectivo, podem os ver a revolução industrial parindo novas form as artíticas, a short storie, a crônica, o folhetim , o rom ance policial, o rom ance psicológico, o rom ance de aventuras.

Com um olhar prospectivo, podem os ver um novo gênero, ainda sem nom e, retorcendo-se na tela do com putador.

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Todo produto cultural – ainda o m ais alienado e superficial – oculta na som bra da aparência a m assa sólida e substanciosa que o proj eta. A um olhar rápido, e que não penetra a m atéria observada, os blogs não passam de “trenzinhos elétricos de diversão do ego”, em que adolescentes desorientados estariam fazendo m era catarse, com o têm dito aqueles que condenam , geralm ente sem sequer conhecer, essa nova form a de expressão.

Num certo aspecto, a acusação é verdadeira. Nesses novos espaços de com unicação, o ego passeia – com o passeou, solene, na tragédia áurea, na lírica clássica e no dram a burguês – porque o texto real ou virtual é a casa do ego, onde o ser lança os seus fundam entos. E no labirinto do ego devorador é de pouca ou de nenhum a im portância a diferença entre a dor de Hom ero e a angústia de um a esta​giária de com unicação.

É bom que o ego passeie pelos blogs, e que se expanda, e que se desnude, especialm ente nesta fase fundadora, de pura ex-pressão, quando o que é quer vir para fora, em bora saia apertado e debaixo de vaias. De tanto m ostrar-se, a expressão, no choque perm anente contra o leito do rio da experiência, arredondará as suas form as, polirá as suas arestas e se transform ará em arte. (O que cham am os de Hom ero é a lenta sedim entação de um processo popular polifônico, que a tardia gram ática helenista transform ou em m odelo de “bem -escrever”.) E então, o olhar apressado há de deter-se sobre o novo obj eto e será capaz de ad-mirá-lo.

Em sua protoform a, os blogs “parecem ” ser a escória de um a civilização voy eurística, o destilado m ais recente da tecnificação absoluta. No entanto, com o à natureza apavora o absoluto e as afirm ações categóricas, ela própria se encarregará de se vingar, transform ando, ainda um a vez, o periférico e m arginal em central e integrado, de tal form a que os blogs poderão vir a ser a m ais autêntica form a de expressão artística do século XXI.

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Mais que a em ergência de um a nova form a artística – nova em seu suporte m aterial (não m ais o velino, o papiro, o papel de pano ou de celulose, m as o plasm a de eletróns) e nova tam bém em seu m odo de expressão, em sua linguagem , em seus tem as –, o blog é a obj etivação de um a nova subj etividade. Assim com o o diário prim itivo era produto da necessidade de instauração da individualidade que as forças produtivas da industrialização geravam (para

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desenvolver-se, o capitalism o necessitou de um a bem constituída noção de individualidade), o blog, no estágio avançado do capitalism o contem porâneo (em que toda a m anifestação cultural transform a-se em m ercadoria), é tam bém produto de um a nova necessidade: a da diluição e da destruição da noção de identidade nacional e, no lim ite, da noção de identidade pessoal. Não por acaso, ao m esm o tem po em que se m ultiplicam vertiginosam ente a criação e o consum o da nova form a artística, destroem -se im piedosam ente os fundam entos do Estado-Nação – a m oeda nacional, o direito de autodeterm inação –, sob o rolo com pressor da globalização. Sob os escom bros da velha ordem j urídica internacional, inicia-se a partenogênese da identidade planetária. O blog é o sintom a, a aparência, a m im etização desse processo. O ego do diário era um ego pudico e recatado, que se escondia nas páginas de um caderno, acessível som ente ao autor, quando não chaveado ou escondido em porões e sótãos; o ego do blog é prom íscuo e voy erista. O prim eiro assinava o próprio nom e; o segundo esconde-se – em geral – sob pseudônim o.

Há ainda, nesse novo ego, um certo acanham ento, um a saudade de sua antiga ética, m as não por m uito tem po. O adm irável ou detestável m undo novo está, enfim , nascendo. Ou j á nasceu. Intuído por Shakespeare, que viveu no princípio da em ergência das novas forças sociais que originariam a burguesia industrial, o brave new world realiza-se agora, sob os nossos teclados (com o um desesperado partisan, produzo esta reflexão à m ão, a provar, nem que sej a para m im m esm o, que as antigas form as estéticas não desaparecem , m as convivem com as novas, com plem entam -se, transform am -se). A literatura criou, nos últim os séculos, poderosas im agens m ito-poéticas – o am or rom ântico, a paisagem , o autorretrato (a deuses e heróis m itológicos, sím bolos da aristocracia, a burguesia preferiu pintar-se a si m esm a), o detetive, o viaj ante espacial, o flâner, o boêm io revolucionário. E a literatura vai criar, com m aior rapidez, novas im agens, cuj as configurações não podem os ainda descrever, m as j á podem os pressentir. Se olharm os para os blogs sem preconceito, sem rigidez nem pressa, poderem os distinguir neles form as larvares, em brionárias, de um a nova subj etividade. A Idade Média produziu toneladas de rom ances de cavalaria, m as um único Dom Quixote. Milhares de páginas de folhetins foram escritas no Brasil do século XIX, m as um só Dom Casm urro. O próxim o Dom nascerá nas infinitas páginas dos blogs, chats e sites e redim irá aqueles que hoj e perdem tem po exam inando os j ardins que se bifurcam na infovia.

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Será que há, m esm o, algo de novo aqui? Num prim eiro m om ento, nos prim órdios da rede, suspeitei que sim .

Hoj e, com eço a pensar que o texto na internet não passa de “texto latente”, em brião textual encapsulado, com o se no útero, à espera do instante em que virá à luz, ou sej a, será publicado em livro.

Partim os das tabuletas de argila, na Mesopotâm ia; passam os pelo papiro e pelo velino, no Egito e na Palestina; ficam os longo tem po aprisionados no papel de pano e no papel de celulose, na Europa; tentam os o papel de fótons, em Nova York; e retornam os ao papel de celulose, em qualquer lugar do m undo.

Ou alguém teria a coragem de se anunciar “escritor” sem livro publicado? Escritor de blog?

Im aginem os, durante um a feira de livros, um “autor” abrindo um laptop e cham ando o público para ver “seu” livro no m onitor...

Não, ainda não. Ainda não é possível ser escritor som ente em blogs. Nem sabem os se um dia será...

Talvez o blog sej a isso m esm o: um espaço de treinam ento, um espaço gaveta em que guardam os os nossos originais até a chegada da hora de fazerm os a seleção do m aterial para a publicação em livro, com capas, orelhas e cólofon.

O cinem a não m atou o teatro. A internet não m atará o livro. O m undo das form as é infinito. E, um a vez criada, um a form a se torna indestrutível. Falar nisso: quantos rolos de papiro tem os em casa?

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as oficinas literárias, às vezes, alguns participantes apegam -se a detalhes do texto, inadequações sem ânticas e sintáticas, referências espaciais e tem porais, e propõem um verdadeiro napalm corretivo. Para m atar um inseto, devastam um a floresta inteira, no afã de tornar o texto “m ais universal”. Com o se o que constituísse a universalidade de um a obra literária fosse a pasteurização vocabular, a hom ogeneização estilística e a desvitalização de conteúdo.

Em geral, são alunos que não com preendem as relações sociais, políticas e econôm icas que constituem a m alha do discurso e do sentido. Açodados pela ansiedade de m ostrar o próprio texto, preferem patinar sobre ele, apontar o óbvio e produzir toneladas de m ateriais que receberão da história futura um a não tão generosa recepção quanto a dos colegas de turm a.

A estes, urge a leitura de Bakhtin, de Saussure, de Ducrot, de Benveniste, de Greim as, de Jakobson, de Charaudeau, de Authier-Revuz, de Bally e, por que não dizer, de Sartre. Mas, com frequência, e não por acaso, são alunos que resistem às necessárias paradas teóricas que proponho em m eu m étodo pedagógico. Por eles, as aulas seriam com postas som ente de leitura e de discussão dos textos produzidos pelos próprios discentes.

Por outro lado, só avanço, teoricam ente, quando percebo que m eus alunos estão prontos para acom panhar os não tão sim ples raciocínios dialéticos da teoria linguística e literária. E para que sej am capazes disso, é preciso aprofundam ento, que só virá pela am pliação da leitura, em casa, e pela discussão qualificada dos tem as, em sala de aula.

Às vezes, é necessário m esm o deixar que as coisas girem em torno de vírgulas, até o m om ento de im plodir o grupo e recom eçar com um novo. Outros alunos talvez com preendam que o texto literário de qualidade é espesso, opaco e plurivocal, e que a conquista da grande literatura só se dá pelo obstinado rigor.

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ninfa Liríope, m ãe de Narciso, procurou Tirésias para saber se o filho que tivera com o rio Cefiso teria vida longa.

— Sim – respondeu o vidente –, se ele j am ais se conhecer.

O resto da história todos sabem . Apaixonado pela própria im agem refletida na fonte, o j ovem esqueceu-se de com er e de dorm ir, definhou e m orreu.

Se a m ãe de um aluno de oficina literária m e procurasse para saber se seu filho teria vida longa com o escritor, eu responderia com as palavras de Sócrates e não com as de Tirésias:

— Sim , se ele conhecer a si m esm o e se for capaz de com preender que sabe que nada sabe.

O aluno que sacraliza o próprio texto, que contem pla dem ais a própria im agem , que não aceita a crítica, está fadado a ter o m esm o destino de Narciso – fenecer de inanição à beira da fonte.

Outros, m enos vaidosos e m ais abertos à dialética do desenvolvim ento, serão capazes de ir m ais longe, de produzir obra m ais sólida, de construir carreira m ais consistente.

Em m eu j á longo aprendizado com o professor de escritores, vi talentos extraordinários, gênios precoces, candidatos poderosos à Grande Obra autodestruírem -se pelo am or exacerbado que devotavam a si m esm os. Suas produções, fechadas para o m undo, excessivam ente coladas à própria experiência, retratos fiéis dem ais de sua própria subj etividade, boiarão para sem pre sobre as águas da literatura com o frágeis narcisos, m onocrom áticos, autorreferentes e desvitalizados.

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s vezes, um aluno de oficina produz um texto em que todos os elem entos da narrativa estão perfeitam ente encaixados, todas as partes que com põem o todo se aj ustam com eficiência, e, no entanto, o todo não funciona, a obra é um a m arionete desconj untada, flácida e sem vitalidade.

Nesse instante, o instrutor silencia, à espera de que alguém m ais, talvez o próprio autor, se dê conta do espantalho que foi gerado. Mas este, ainda dolorido e ensim esm ado pela gestação e pelo parto, não percebe. E os colegas, m ais por espírito de corpo do que por ignorância, tam bém não perceberão. Ou farão de conta que não percebem . E não adianta tentar m ostrar que aquilo é um fantoche, um factóide, um espectro. O autor não se perm itirá perceber o problem a. Ao contrário, apelará para as m ais com ezinhas autoindulgências, rebaterá com argum entos teóricos aprendidos com o próprio m estre, se apegará neuroticam ente a detalhes sem nenhum a significação.

Se for culto e com boa bagagem de leitura, apresentará exem plos extraídos de obras clássicas que ele j ulga, arrogantem ente, sem elhantes à sua.

O professor, se coincidir de ser tam bém escritor e não apenas crítico ou técnico, sofrerá duplam ente. Em algum m om ento de sua carreira terá produzido essas aberrações da natureza literária, esses fantasm as sem vida nem transcendência, e reconhecerá, sem confessar publicam ente, que há um a área da criação infensa à técnica, à cultura, ao conhecim ento acum ulado pela tradição. E sofrerá tam bém porque essa área é inexplicável, intransferível e inapreensível.

Se for honesto, o professor m urm urará que as ideias de Platão foram contestadas, m as não destruídas. Que, por m ais m aterialistas que possam os ser, sem pre restará espaço para o m ito. Que o sopro vital é um dom do Espírito.

Se for honesto, o escritor que tam bém ensina ensinará, com o ensinou Gaston Bachelard, que não é digno de ser cham ado de escritor aquele que não dedicar à Fênix parte de sua produção, especialm ente aquela que j á nasceu m orta.

E ensinará que é do fogo e das cinzas da obra desvitalizada que virá a energia necessária para outra obra possível, aquela com frescor de banho e riso de bebê, aquela que se agitará com o um a serpente no gram ado e que será capaz de m esm erizar até o leitor m ais desatento.

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arrar é um des-velamento. Desencobrir o que estava velado, no m undo e em si m esm o, e re-velar, tornar a cobrir de véus o que estava evidente, esconder outra vez. Esse duplo m ovim ento, de fazer aparecer e de fazer esconder – o excesso de luz tam bém im pede de ver –, é a essência do bom conto. Na poesia, essa dialética m elhor se m ostra. Na prosa, a luz difusa e hom ogênea do verbo desgastado pela cotidianidade tam bém perm ite ver, m as superficialm ente e sob um m esm o tom m onocrom ático.

Nesse sentido, o conto, o obj eto literário que m ais se assem elha à poesia, ainda pode re-velar, desde que evite a tagarelice, o prosaísm o, e consiga equilibrar harm onicam ente fábula e tram a. Se o contista descura da últim a, lança o seu obj eto nas águas poluídas do entretenim ento; se desm erece a prim eira, arrisca-se a descaracterizar o gênero, j ogando-o no tedioso m ar do lirism o em prosa.

Um bom conto esconde o que m ostra e m ostra o que esconde, exigindo um leitor ativo, capaz de dinam izar as profundas reservas de energia que o texto não pode sonegar, m as que não deve oferecer com a facilidade dos anúncios publicitários.

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á um a só palavra para descrever determ inada substância, determ inada ação, determ inado obj eto, determ inada qualidade.

Disse alguém , j á não recordo o nom e, que o verdadeiro escritor desconhece sinônim os. Horácio Quiroga, no Decálogo do perfeito contista, dedicou o sexto m andam ento a essa questão.

O escritor precisa estar atento aos sutis contrastes entre as palavras de m esm o gênero, com o o pintor às infinitas gradações na paleta das cores. A luta do escritor pela palavra adequada é a sua luta m ais penosa. (O adj etivo não se origina, exatam ente, em trabalhar com a “pena”?)

Os índios guaranis usavam quase duas dezenas de palavras para referir-se a um sim ples pôr de sol. Para cada m atiz, um a palavra diferente. Os esquim ós têm dezenas de substantivos para caracterizar a cor branca.

Gustav Flaubert, que se dem orou seis anos na elaboração m inuciosa da linguagem de Madam e Bovary, cunhou a expressão mote juste – a palavra certa, a palavra exata, a palavra única.

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ixis foi um m úsico m edíocre, m as teve o seu dia de glória no distante ano de 1837.

Num concerto em Paris, Franz Listz tocou um a peça do (hoj e) desconhecido com positor, j unto com outra, do adm irável, m aravilhoso e extraordinário Beethoven (os adj etivos aqui podem ser verdadeiros, m as – com o se verá – relativos). A plateia, form ada por um público refinado, culto e um pouco bovino, com o são, sem pre, os hom ens em aj untam entos, esperava com im paciência.

Listz tocou Beethoven e foi calorosam ente aplaudido. Depois, quando chegou a vez do obscuro e inferior Pixis, m anifestou-se o desprezo coletivo. Alguns, com ouvidos m ais sensíveis, depois de lerem o program a que anunciava as peças do m úsico m enor, retiraram -se do teatro, incapazes de suportar m úsica de m á qualidade.

Com o sabem os, os m elôm anos são im pacientes com as obras de epígonos, tão céleres em reproduzir, em clave rebaixada, as novas técnicas inventadas pelos grandes artistas.

Listz, no entanto, registraria, conform e Stanley Edgar Hy m an, em The armed vision, citado por Antonio Candido, que um erro tipográfico invertera no program a do concerto os nom es de Pixis e Beethoven...

A m úsica de Pixis, ouvida com o sendo de Beethoven, foi recebida com entusiasm o e paixão, e a de Beethoven, ouvida com o sendo de Pixis, foi enxovalhada.

Esse episódio, côm ico se não fosse doloroso, deveria nos tornar m ais atentos e m enos arrogantes a respeito do que j ulgam os ser arte.

Desconsiderar, no fenôm eno estético, os m ecanism os de recepção é correr o risco de se aplaudir Pixis com o se fosse Beethoven. Ou de se j ogar Proust no lixo, com o fez Pound quando leu os originais do desconhecido autor da Recherche...

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oda obra ficcional m alfeita, independentem ente de gênero, com partilha algum as características:

Personagens inorgânicas, mal construídas, estereotipadas

Um organism o é qualquer ser organizado cuj as partes concorrem para o bem do conj unto. Em certos autores, as partes que com põem os personagens são tão m al articuladas que lhes percebem os as fraturas, os rem endos, as sobreposições. Estereótipo, com o a etim ologia grega nos diz, é algo sólido, duro. Personagens estereotipadas são os tipos que reproduzem preconceitos e o senso com um , sem nenhum a profundidade psicológica. Excelentes para com édias, frequentes em piadas, em fábulas rasteiras e em alegorias sim plórias.

Ausência de ação ou ação lenta e desconexa

Se a obra é de ficção, a falta de ação é um problem a, pois que o obj eto estético é lançado num cam po m inado, que é o lirism o em prosa. A este, é m ais adequado considerá-lo um gênero poético. Aqui, trata-se de fingire a ação narrada. Ficção é isso, e ponto-final.

Diálogos artificiais e inúteis

O diálogo é o tour-de-force de qualquer ficcionista. A m elhor form a de aprendê-lo é ler as m elhores peças da dram aturgia ocidental e exam inar atentam ente os autores que sabem reproduzir a conversação com naturalidade. E saber que não basta a reprodução nua e crua de diálogos reais, j á que o sistem a fonético com porta um conj unto de vacilações, titubeios e repetições que o sistem a literário deplora. A arte não im ita a vida. Ela produz outra vida.

Cenas e/ou situações inverossímeis

O problem a da inverossim ilhança é que ela polui o texto em sua totalidade, por m enor que sej a. E isso gera no espírito do leitor um im ediato e profundo descrédito. Se o escritor não sabe construir verossim ilhança interna, se não respeita as relações de causa e efeito, não há por que eu lhe dar crédito – pensará o leitor.

Descrições desnecessárias e sem articulação com a narração

A descrição foi extrem am ente útil até o fim do século passado, e especialm ente até 1848, quando surgiu o copyright. Até então, os autores recebiam por página escrita. Produzir longas descrições era um a form a pouco

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sutil de aum entar os próprios rendim entos. Além disso, antes do advento da fotografia, era necessário construir no espírito do leitor aquilo que se queria m ostrar. Não é por acaso que essa época m uito utilizou as m etáforas da “pintura de costum es”, “pintura de am bientes” ou “pintura de caracteres”. Hoj e, no m undo da im agem em que vivem os, não é m ais preciso “explicar” o que é um abacaxi, com o o fez um fam oso viaj ante francês em fins do século XIX.

Estilo adiposo e desajeitado, flácido e sem harmonia

O que dá eficiência e beleza a um estilo é a tensão da linguagem . Nesse sentido, qualquer adj etivo desnecessário, qualquer relaxam ento sem ântico, qualquer desaj uste sintático são suficientes para tornar o “j eito de escrever” um desastre.

Temas inexpressivos e/ou estereotipados

Em bora o assunto ou tem a por si só sej am incapazes de caracterizar um bom ou um m au escritor, j á que o conteúdo não se separa da form a, um assunto ou um tem a sem expressão degradam a obra, j ogando-a no cam po das trivialidades. E se a isso se som ar um a visão de m undo tacanha, terem os um a obra realm ente m enor.

Ausência de sutileza

Por m ais que o m undo venha a se tornar ainda m ais m edíocre do que j á é, a grosseria j am ais alcançará o estatuto de positividade estética. Reconheço que, nesse cam po, posso estar com pletam ente equivocado. Talvez, no século XXII, a grande biblioteca canônica venha a ser com posta de obras escatológicas, pornográficas e grosseiras.

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á um m om ento em que o escritor percebe que, se parasse de escrever, ninguém perceberia. E a esse, sucede-se outro m om ento, ainda m ais doloroso, ainda m ais triste: o de com preender que, se ninguém percebeu que ele parou de escrever, é porque o que escrevia não tinha valor algum , não fazia nenhum a diferença.

E a essa angustiante e angustiada conclusão, sobrepõe-se outra, ainda pior: a de que escrever é um gesto com pletam ente inócuo e onanista.

Não será por isso que são tão abundantes as m etáforas a afirm ar que a literatura é com unhão, generosidade, doação? Com o agravante de que é a própria literatura que diz isso de si m esm a?

Negativo, com o dizia um am igo escritor que j á partiu.

(Mentira m inha, coisa de escritor, ninguém m e disse isso, eu m esm o inventei que um am igo m e disse.)

Literatura é solidão, a m ais profunda, a m ais espessa e am pla solidão. Literatura é avareza, é retenção, é polução sem obj eto.

O m undo passaria m uito bem sem escritores nem literatura.

Não será por isso que os escritores são tão m esquinhos, autocentrados e vaidosos? Escritores não leem outros escritores. E quando leem , fazem de conta que não leem . Para não adm itir que gostaram , que ficaram adm irados, que gostariam de ter escrito aquilo que leram ... Os m ais inteligentes, os que sabem que, se o vaidoso soubesse o quanto é ridículo, seria hum ilde por orgulho, adm iram os m ortos, e especialm ente os m ortos estrangeiros...

Alguns escritores, não suportando m ais a insignificância do seu fazer, optam pelo silêncio, pela reclusão, pela aventura na África.

Outros, que ainda acreditam que a palavra escrita tem algum poder, que ainda são capazes de suportar o desprezo das legiões de não leitores, vão se transform ando em seres am argos e irônicos.

Falam m al de tudo e de todos, principalm ente do Paulo Coelho. E ainda escrevem crônicas depressivas com o esta.

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À

s vezes, em aula, alguns alunos reclam am que não uso os m esm os critérios para diferentes textos. Num a sem ana, um aluno apresenta um conto, e sou rigoroso; noutra, outro aluno lê um texto, e sou com passivo.

À prim eira vista, parece que tenho dois pesos e duas m edidas; ou que sou volúvel, alternando m inha visada crítica ao sabor de m eus próprios hum ores.

É que aj o com o o apóstolo Paulo, que oferecia m ingau às com unidades da Ásia Menor porque ainda não tinham dentes; e a outras, porque seus caninos estavam plenam ente desenvolvidos, dava-lhes carnes.

Nenhum aluno é sem elhante a outro aluno; nenhum texto é parecido com outro texto.

Cada aluno instaura um universo de plenitudes e carências; cada texto exige a construção de um novo m ecanism o de aproxim ação e análise.

Não saber respeitar essa dialética é que torna o ensino m assivo, tedioso e ineficiente.

Sim , dá um extraordinário trabalho agir desse m odo, porque o professor precisa acom panhar, com paciência e com paixão, cada um de seus alunos; precisa despir-se de toda arrogância acadêm ica, de toda autossuficiência e reconstruir seu m étodo a cada caso, a cada novo episódio na j ornada do conhecim ento.

Mas dá resultados? Sim , e resultados extraordinários, com o o provam as inúm eras vitórias de m eus alunos em concursos, os m uitos livros publicados, as m uitas carreiras consolidadas.

Talvez não sej a possível ensinar a escrever; m as é plenam ente possível ensinar a aprender a escrever. Um escritor – ou um aluno que não é um eterno aprendiz – é um escritor ou um aluno que não se contenta em ser sim ulacro de si m esm o.

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E

m recente j antar com alguns am igos, alunos e j ovens escritores, afirm ei que a arte, ao contrário de m uitos outros fazeres hum anos, não evolui. E que os gregos ainda não foram ultrapassados no cam po artístico. Shakespeare, com Hamlet, chegou perto de Édipo Rei, de Sófocles; Saussure, ao com preender a palavra com o a som a de significante e significado, não ultrapassou Aristóteles, que a dizia com posta de symbalein e semeion, sím bolo e significado.

Em todos os cam pos, os filhos ultrapassam os pais, m as não na arte. O desenho de um bisonte na arcaica arte rupestre não é inferior à Monalisa. Mas o contrário tende a ser m ais verdadeiro – que o presente, artisticam ente, sej a inferior ao passado.

Aventei a hipótese de que isso se devia à revolução tecnológico-industrial, que j á teve início na Antiguidade clássica, e não na Era Medieval, m as fui am plam ente rechaçado. A especialização, prom ovida pela tecnologia, e seu consequente desenvolvim ento econôm ico, dessacralizou o m undo e afastou a arte de sua fonte m ais profunda, o m ito. Daí, a nossa incapacidade de superar os gregos ou os pintores de cavernas do Neandertal. Meus am igos foram veem entes em não aceitar a m inha provocação. No entanto, nenhum deles foi capaz de utilizar argum entos retóricos superiores aos de Dem óstenes e Isócrates, nenhum foi capaz de m odificar o m eu páthos com as três grandes operações retóricas: o movere, o docere e o delectare.

Sequer neste cam po, na retórica, conseguim os ultrapassar os velhos egeus. Penso, por exem plo, em nossa pobreza m etafórica e recordo-m e de Hom ero descrevendo a cólera nos olhos de Aquiles, após a m orte de Pátroclo, com o a “porta de um forno entreaberta”. Ou, então, ao pintar, com um a única e definitiva im agem , a largueza, a profundidade, a fidelidade e a intensidade de Penélope, ao dizê-la com “olhos de cadela”.

No escudo de Aquiles estava pintada a batalha de Troia, num a antecipação sem iótica m aj estosa que Cervantes reutilizaria 20 séculos depois, quando faz Dom Quixote e Sancho Pança encontrarem num a estalagem o livro do qual são protagonistas.

A arte não evolui. Por isso, conhecer profundam ente a tradição literária é absolutam ente necessário a qualquer escritor, sob pena de se passar pelo ridículo de se reinventar a roda.

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lguns novos escritores, egressos de m inhas oficinas, costum am fazer os lançam entos de seus livros em bares, casas de festa e clubes.

Sou contra.

Bares, casas de festa e clubes são excelentes para se beber, bater papo, nam orar. Só que em 99 por cento dos casos tais espaços não vendem livros.

Depois, os autores que se “esquecem ” das livrarias nos seus lançam entos são os prim eiros a reclam ar que seus livros não estão... nas livrarias.

Eu, se fosse livreiro, m andaria esses “profissionais” reclam arem aos donos dos bares, aos presidentes dos clubes e aos gerentes das casas de festa quando viessem choram ingar porque não encontram suas obras nas gôndolas, nas prateleiras, nas vitrines das livrarias.

O único m om ento em que um livro efetivam ente vende é no dia do lançam ento. E j usto nesse dia, quando os livreiros poderiam sair um pouco do verm elho, os autores estão lançando seus livros em m eio às cervej as e aos uísques...

Reforçar o sistem a literário e valorizar os canais de distribuição e os pontos de venda deveriam ser questão de honra para qualquer escritor.

Livro se lança em livraria, essa é – ou deveria ser – a lógica do m ercado. Sem pre que um autor desrespeita essa lógica, aj uda a afundar ainda m ais o “negócio” do livro.

Por isso, de algum tem po para cá, quando algum aluno m eu faz a estreia de sua obra em bar, casa de festa ou clube, recuso-m e a prestigiá-lo. Aos que lançam em livrarias, sou o prim eiro na fila de autógrafos.

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lguns, que não conhecem a m inha história (e com o poderiam , se as m inhas m em órias estão em pleno processo de produção?), chegaram a afirm ar que defendo as livrarias porque sou publicado por grandes editoras.

Ah, bem , então as coisas com eçam a ficar m ais claras: autores publicados lançam em livrarias; autores autoeditados (os que pagam do próprio bolso a edição) lançam em bares, pois assim econom izam entre 25 e 55 por cento e aum entam o valor da venda inicial com que abatem os custos que tiveram .

Ok, este é um argum ento que aceito... Com o não existe alm oço de graça, cada um sabe onde aperta o calo. E tam bém onde apõe o seu autógrafo.

Antes que eu sej a criticado m ais um a vez, é preciso dizer que m eus três prim eiros livros (hoj e eles estão excluídos de m inha bibliografia) foram autoedições, paguei-os do m eu próprio bolso... Mas, com o eu sou um coloninho, com o eu sei de que lado sopra o vento, j am ais os lancei em nenhum espaço que não fosse livraria.

No dia em que lancei O lírio do vale, na extinta Livraria Sulina, na Rua da Praia, no centro de Porto Alegre, estiveram lá, para apanhar o m eu autógrafo, apenas três pessoas: Ronald Lom a, Nelson da Lenita Fachinelli e Mario Quintana. Com padecido de m eu fracasso, o gerente da livraria m andou os seus funcionários à não fila.

Mas eu persisti. E continuei lançando m eus livros em livrarias. Os repiques, que são os relançam entos, eu os fiz em todos os lugares: clubes, associações, igrej as, feiras de exposições, bares e onde fosse possível.

O autor independente, que paga do próprio bolso e opta por lançar seus livros em bares e assem elhados, tem um bom retorno na hora da estreia, em bolsa a com issão que pagaria à livraria e passa a vida inteira reclam ando que as editoras profissionais não o prestigiam .

Para ser escritor profissional é preciso ter postura e com portam ento de escritor profissional. O resto, com o dizia um escritor gaúcho, talvez o m ais profissional dos que j á houve por estas plagas, Erico Verissim o, o resto é silêncio.

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lias Canetti não quis, j am ais, render-se ao adj etivo, com o o fez Proust, porque orientalizaria o estilo. Canetti vê o adj etivo com o pedra preciosa, enfeite, adorno. Para Alej o Carpentier, o adj etivo é a ruga do texto, capaz de envelhecê-lo prem aturam ente. E o escritor que o usa em dem asia, um tintureiro do estilo.

Floreio, m aneirism o, ourivesaria. Mas, m ais que isso, penso que o adj etivo trai a ideologia do texto. E, nesse sentido, é necessário, é divertido, é sociológico.

Ao usá-lo, o narrador indica preferências, expõe preconceitos, deixa as im pressões digitais de seu espírito sobre a m atéria transparente das substâncias.

Com o leitor, m ais que um receptor de relatórios, quero ser investigador, inquiridor. E os adj etivos são as provas indiciais dos m aus autores. Mas, usados por um Jorge Luis Borges, os adj etivos se convertem em poderosas arm as estilísticas.

Se olharm os para o adj etivo com o sintom a, indício ou m arca, e não apenas com o apêndice do substantivo, ele pode deixar de ser o saco de pancadas do estilo.

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u tinha 17 anos, havia publicado um livro de poesias e im aginava que escrever fosse a coisa m ais sim ples do m undo, bastaria despej ar sobre o papel as m inhas em oções, as m inhas paixões, os m eus delírios j uvenis. E com essa arrogância dos poetas j ovens, aproxim ei-m e do m aior poeta da província, Mario Quintana, e dei-lhe – oh, ousadia – O lírio do vale. Se não m e engano, entreguei-lhe o livro na redação do antigo Correio do Povo. Sequer m e deu um “dedo de prosa”, com o dizíam os então. Mas com pareceu, depois, na Livraria Sulina e tam bém na Feira do Livro, em m inha prim eira sessão de autógrafos na Praça da Matriz.

Quintana não levantou os olhos da m áquina de escrever. Jogou o m eu livreco (ele detestava o eufêm ico “livrinho”) sobre um a m ontanha de papéis e continuou a datilografar, com o cigarro entre os lábios (naquela época, fum ava-se até dentro de igrej as).

Caderno H? Tradução? Poesia nova? Já que eu fora tão longe, por que não espiei o que ele produzia?

Desci as escadas de m árm ore do velho prédio da Caldas Junior com o rabo entre as pernas, com vontade de retornar correndo a Três de Maio, onde estavam as m inhas raízes e o desprezo que os fam iliares, os vizinhos, os conhecidos e os conterrâneos dedicam aos artistas locais.

Dias depois, m ais precisam ente em 7 de novem bro de 1977, na m inha prim eira sessão de autógrafos na Feira do Livro, com pareceram Ronald Lom a, Nelson Fachinelli, Airton Michels e Mario Quintana.

Quintana convidou-m e a cam inhar pela praça. Ele tinha o hábito de fazer a ronda pelas barracas, a pesquisar em balaios de saldos. Andam os um pouco, e ele m e fez sentar num daqueles bancos próxim o à estátua equestre, quase ali onde ele está hoj e, convertido em bronze, num acerto eterno, e em prosa com Carlos Drum m ond de Andrade.

— Meu filho – ele disse, depois de um olhar desolado sobre m eu livro, que ele trouxera consigo e que agora repousava sobre as suas pernas –, escreva 200 poem as...

Tirou a fum aça do nariz, olhou um a eternidade para os transeuntes e depois m e encarou:

— ... e publique 20.

Na pensão, à noite, repassando as coisas do dia, com preendi o que ele não quis m e dizer, para não ferir o m eu orgulho im berbe. Dos 70 poem etos de m eu livro, ele havia gostado de dez por cento, se tanto. Ou quis m e dizer que dez por cento m ereciam ser publicados, o restante não.

Levei 17 anos para publicar m eu segundo livro de poesias, Museu de coisas insignificantes.

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er, para m im , sem pre foi um a atividade anárquica e m uito prazerosa. Jam ais fui capaz de leituras organizadas, panorâm icas, escafândricas. Minhas fichas de leitura sem pre são um a caneta a sublinhar as passagens m ais interessantes dos m eus livros preferidos.

Detenho-m e, no m eio de um a leitura, diante de um onom ástico e corro à m inha biblioteca a catá-lo. E raram ente volto ao ponto em que parei (no m esm o dia, na m esm a sem ana), pois que o segundo livro m e levou ao terceiro, e este ao quarto, e aquele ao quinto...

Sei de gente que com eça a ler o Balzac e não sossega enquanto não devora, um por um , todos os rom ances da Comédia humana. Tenho um aluno de oficina, Jeferson Flach, que leu e releu várias vezes Em busca do tempo perdido. Tive outro que afirm ava, com notável seriedade, que lera sem parar o Ulisses, de Joy ce. E m ais, dizia, sem que ríssem os, que adorara.

Meu prazer pelo fragm entado, pelo aleatório, pelo disperso é tão grande que raram ente leio um livro de um a assentada. Prefiro ler trechos aqui, capítulos ali, de obras variadas, de gêneros díspares. Prefiro ler 30, 40 livros sim ultaneam ente do que um só.

Quando surgiu a internet, com suas infinitas j anelas, m e senti realizado. Ali estava um m odelo de aproxim ação ao texto que eu praticava ainda na Biblioteca do Colégio Estadual Cardeal Pacelli, em Três de Maio, na década de 1970.

Ah, com que inusitado prazer eu abria as enciclopédias, especialm ente a Barsa, e saltitava de verbete em verbete!

(Dos sonhos que tive na adolescência, este talvez tenha sido um dos m ais persistentes e irrealizáveis: ter aquele m onum ento em casa, tom o a tom o. Quando atingi a capacidade econôm ica de adquiri-la, o proj eto editorial se m odificou. Os verbetes, que eram longos e consistentes ensaios, passaram a ser tij olinhos inform ativos. Perdi o interesse. Um dia, um aluno, Guido Kopittke, deu-m e de presente udeu-m a Barsa codeu-m pleta. Ao abrir o prideu-m eiro voludeu-m e, deu-m eu coração disparou. Voltava às m inhas m ãos um a das edições antigas, com planos de estudos e verbetes im ensos. Às vezes, vou ao m eu escritório e torno a fazer a m inha leitura preferida – aleatória e não sistem ática.)

Será por isso que gosto tanto do conto? Por ser ele capaz de produzir em curto espaço grande epifania?

E nós, professores, que tanto dizem os que nossos alunos não leem m ais nada, não estarem os querendo deles um m odelo de leitura que j á não são capazes de realizar? E se, ao estreitam ento cartesiano do m étodo, nós lhes oferecêssem os um banquete de m últiplos e sim ultâneos obj etos de leitura?

Im possível não m e lem brar, aqui, de Daniel Pennac e seu Como um romance, em que apresenta um fascinante decálogo da leitura. Cito apenas dois m andam entos, o prim eiro e o quinto: O direito de não ler e O direito de ler

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qualquer coisa.

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ão há escritor que não se debata com a difícil questão dos títulos de suas obras, sej am elas poem as, crônicas, contos, novelas ou rom ances. O título faz a prim eira ponte com o m undo, é o prim eiro gancho de interesse, a prim eira luz do farol no nevoeiro. A obra está lá, enrodilhada em si m esm a, m as escondida, e é preciso um a etiqueta, um visgo ou um guizo para que ela sej a percebida pelo possível leitor. Nesse instante, o autor defronta-se com um a questão ética – ser fiel a si m esm o e à obra ou a esse fátuo e im ponderável leitor.

O leitor é um a abstração. Só existe em potência. Cada um a das partes envolvidas no processo de criação e produção do livro idealiza um leitor. Assim , há o leitor ideal do autor, com o tam bém há o leitor ideal do editor, do distribuidor, do livreiro. E lá no fim do processo, há o leitor real, raro e esquivo, soterrado sob um a avalanche infinita de títulos. Vigiando a todos, com o um a esfinge hierática e fatal, sorri o Mercado, esse deus insaciável, que controla o Portal da Cidade do Livro e que desej a títulos vistosos, agradáveis, com erciais.

Mas, às vezes, a obra – inteira e autônom a – recusa-se a essas vestim entas carnavalescas, não querendo cham ar tanta atenção sobre si m esm a. Indeciso diante do enigm a, o autor só tem duas opções: deixar a m atéria gerar o próprio nom e ou fazer aderir um nom e qualquer à m atéria. Que ouvido sutil há de ter o autor para captar o m urm úrio da obra! Que espírito pragm ático há de ter o autor para etiquetar, sem nenhum a angústia, o que acabou de produzir!

Edgar Allan Poe dizia que um título deve prenunciar tudo o que um a obra contém . Mas Poe, nós sabem os, estava pensando no consumidor, estava aj udando a construir um a ética para as relações com erciais – se vendo um produto, ele deve ser honesto; não é j usto vender gato por lebre. E foi com essa visada pragm ática que ele criticou duram ente o título genial de Nathaniel Hawthorne, Twice told tales! Ou terá sido por despeito?

Gabriel García Márquez optou por ser absolutam ente honesto e fiel ao espírito da própria obra, intitulando um a novela de assassinato e paixão de Crônica de uma morte anunciada. Talvez um dos m aiores achados na história dos títulos. E um dos m elhores exem plos de que o único cam inho para um escritor é a radicalidade, a coerência e a fidelidade à própria obra. Absolutam ente fechada em si m esm a, ela se encarregará de dar o bote sobre os leitores, conquistando-os aos m ilhares. Ou adorm ecendo, m ofada, nos estoques das distribuidoras.

Se a palavra efetivam ente tem poder, se nom es condicionam destinos, os escritores devem se preocupar seriam ente com os títulos de seus livros, com o os pais com os nom es de seus filhos. Mas, se a palavra é um m ero signo, se ela sim plesm ente se cola às coisas, na inútil tentativa de dar-lhes um a significação, é m elhor que eles não resistam ao canto de sereia do Mercado. A este últim o, no entanto, é necessário lem brar que um bom título não salva um m au livro, m as um m au título pode prej udicar um bom livro.

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N

um a dessas viagens pelo interior, a fazer palestras e encontros com alunos, cheguei a Neu-Württem berg, hoj e m ais conhecida com o Panam bi, a cidade que em 1923, durante um a das nossas tantas revoluções, não foi invadida, porque tinha um a Selbstschutz com m ais de m il hom ens arm ados a defendê-la.

É um a cidade-labirinto, incrivelm ente espalhada, de ruas enorm es e m uito arborizadas que se estendem por dezenas de quilôm etros. E tem um m useu e arquivo histórico. Até aí, nada de m ais. Toda cidade de colonização alem ã que se preze tem um m useu e um arquivo histórico. Quando o professor, gentil e prestativo, convidou-m e a visitá-lo, quase recusei. Eu estava cansado. Já tinha visto tantos m useus na vida. Tinha, até, escrito um livro com o título de Museu de coisas insignificantes. Aceitei por cortesia. Para não parecer chato. Ou esnobe.

Além de encontrar lá um serrote-traçador, instrum ento usado por m eu pai em sua infância – assunto sobre o qual ainda escreverei um conto –, e centenas de outros obj etos que m e lançaram de volta às casas de m eus avós, vi, pasm o, boquiaberto, espantado, e sei que m ais adj etivos deste naipe, um Pandinus Imperator, o escorpião das areias quentes dos desertos da Califórnia.

Vam os por pedipalpos, corpo e aquilão. E com um flashback.

Depois que lancei O escorpião da sexta-feira, fui criticado de m uitas form as. O professor José Hildebrando Dacanal, horrorizado, perguntou-m e: “Por que escreveste isto?”. Outros silenciaram , m as fitaram -m e de esguelha, com preocupação. Um crítico desancou-m e pelo m aior j ornal do Estado. Um aluno de oficina sugeriu que era inverossím el que m eu personagem Antônio im portasse escorpiões por m alote diplom ático. Calei, com o calam os escritores que são fiéis às suas obsessões, às suas neuroses, às suas loucuras.

E então, diante dos m eus olhos, no m useu de Panam bi, vi um grande, um enorm e Pandinus Imperator, que eu só conhecia de fotografia. E de delírio.

O professor explicou-m e que aquela coleção de borboletas, besouros, escorpiões, aranhas, gafanhotos, louva-deuses pertencera a um colecionador da cidade, sapateiro de profissão, cham ado Karl Herm ann Schaal, falecido em 1992.

— E com o ele conseguiu esse bicho m edonho? – perguntei, apontando para o escorpião preferido de Antônio, m eu personagem .

— Ah – disse o professor –, ele fazia intercâm bio com países da Europa, da Ásia, da África, através da Com panhia dos Correios e Telégrafos.

Isso, na década de 1930.

Se eu pudesse, dava um piparote m achadiano nos m eus críticos. Na orelha, no nariz, nas bochechas. O escritor que respeita a verossim ilhança interna de suas histórias é capaz de proezas im pressionantes. Meu narrador sabia que era possível im portar escorpiões venenosos. Eu apenas ouvi as suas ponderações. Há pouco, um conj unto de túneis foi encontrado sob a cervej aria Brahm a. Antes disso, eles

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j á estavam lá, no m eu rom ance, à espera das escavadeiras que os trouxessem à luz.

Ó tu, que és candidato à aventura de escrever: relê, se j á leste, a lição do velho da Estagira. Narra o que é verossím il e necessário. Lem bra-te, o universal decorre do encadeam ento causal que estrutura a ação e se configura naquilo que responde às exigências do espírito ou à expectativa com um de todos os espíritos.

Não entendeste? Corre então, os sebos ainda têm velhas edições da Poética, de Aristóteles. Aliás, a m elhor delas foi publicada no Brasil em 1966, pela Editora Globo, em tradução de Eudoro de Sousa.

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m uito com um entre alunos e leitores em geral a confusão entre o conto e a crônica. Em estado puro, de laboratório, com o costum o dizer, são tipos de textos com pletam ente diferentes.

Discordo da boutade de Mário de Andrade de que um conto é tudo aquilo que um autor decidiu cham ar de conto. Um conto é um conto, e um a crônica é um a crônica. E nem sem pre o autor sabe o que está fazendo.

Um conto, com o um cristal de quartzo, tem um a estrutura específica, rege-se por leis internas, m im etiza um instante da realidade, ficcionaliza a vida, enquanto a crônica, por sua própria natureza, registra os fatos, a realidade contingente.

A rigor, o conto recria, enquanto a crônica docum enta.

No entanto, nas últim as décadas, está se vendo, principalm ente no Brasil, a em ergência de um novo tipo de crônica, não m ais histórica e m eram ente factual, m as um a inquietante m escla das m odalidades épica e lírica, o que naturalm ente produz um a confusão generalizada no espírito classificatório da teoria literária.

Por esse m otivo, m esm o professores de literatura têm dificuldades em definir conto e crônica.

A principal diferença centra-se na figura do narrador, persona que a m ím ese instaura. (Reconheço que as teorias m ais recentes sobre o poder de duplicação da linguagem — nom ear é criar outra realidade — podem ser o calcanhar de Aquiles de um a tese que se centre neste elem ento estrutural da narrativa, j á que o eu que se diz no texto não é o eu que existe no m undo concreto. Logo, m esm o quando em ite um a opinião pessoal, o autor cria um autor que não é o autor real. O argum ento, derivado das noções lacanianas, im plode a noção de sujeito da enunciação, sobre a qual a crônica se constitui. Para não instaurar o caos, é necessário aceitar que o sujeito da enunciação que fala na crônica é socialm ente reconhecível, responde j uridicam ente pela sua opinião, enquanto o narrador, que se dá a conhecer num conto, é um a m áscara, um papel, e nenhum tribunal condenaria um ator por fingir ser. Ao m enos não nas dem ocracias ocidentais.)

Para se com preender a ontologia da crônica, é preciso pensá-la em sua relação com a im prensa. Davi Arrigucci Jr. lem bra que ela, em bora nascida no j ornal, não é apêndice dele, j á que as m elhores, geralm ente, acabam em livros.

A grande circulação desse tipo de narrativa nos j ornais brasileiros, fenôm eno que acontece desde o século passado, vem produzindo, sem dúvida, um a “form a peculiar”, com “dim ensões estéticas” e com um a “relativa autonom ia”, m as sua razão de ser m ergulha na natureza de nosso tem po.

A crônica, pelas astúcias da linguagem , instaura um interessante paradoxo linguístico. Etim ologicam ente, tem origem grega, provém de Khrónos. No entanto, o tem po, no interior da crônica, não transcorre, ela é intem poral, descritiva.

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perm ite que o tem po exista em seu interior, j á que ele narra ações de personagens num determ inado tem po e espaço através da voz de um narrador.

Se o conto, com o toda narração, m ergulha no m ito e o reinstaura; a crônica, por outro lado, debruça-se sobre a história, para aprisionar o aqui e agora.

Tentar um a definição da crônica talvez não fosse o m ais adequado nesse instante em que ela, enquanto gênero, ainda está tom ando form a, m as é algo tentador.

Davi Arrigucci Jr., por exem plo, estudando Rubem Braga, determ inou seus contornos: “um ser m oderno, constantem ente estrem ecido pelos choques da novidade, de consum o im ediato, a refletir as inquietações do desej o sem pre insatisfeito, as violentas transform ações sociais e a futilidade e fugacidade da vida m oderna”.

Nesse sentido, a crônica seria ainda a cristalização do espírito das grandes m etrópoles do capitalism o industrial contem porâneo, com o o rom ance foi a contraparte artística da ascensão da burguesia no século XIX.

Para superar o seu destino etim ológico, para sobreviver ao tem po de sua circulação nas páginas dos j ornais e abrigar-se sob as capas duras, e supostam ente perenes, dos livros, a crônica precisa ter “um razoável grau de elaboração linguística, certa com plexidade interna, penetração psicológica e social, tem perados com a força da poesia e do hum or”.

Talvez o paradoxo m aior da crônica sej a superar seu próprio paradoxo: penetrar, com o disse o crítico, a substância íntim a de um a época, refletindo os pequenos atos que a com põem , e, ao m esm o tem po, suportar a corrosão do tem po e a irrefutável releitura das épocas futuras.

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V

ocê considera seu tem po im portante, não considera? Na correria do dia a dia, você dedica as suas horas vagas à fam ília, suponho, às leituras de seus autores preferidos, à correção de trabalhos e provas, se é professor.

Quanto custa a sua hora de trabalho? Quanto vale a sua hora extra de trabalho?

Então, por que você encam inha seus originais a um escritor, sem consultá-lo, sem ter a gentileza de perguntar quanto ele cobraria por esse trabalho chato, m inucioso e de alta periculosidade? Ah, você não im aginou que ele pudesse cobrar para ler e avaliar o seu texto? Quando você vai ao dentista, não paga pelo tem po despendido pelo profissional que o atende? Quando vai ao m édico? Quando vai ao analista? Ao cabeleireiro? À oficina m ecânica?

Ao longo de m inha carreira de escritor, sem pre que eu quis um a opinião sobre os meus rom ances, os meus contos e os meus poem as, paguei a um especialista da área, porque isso é o m ínim o que se espera de quem desej a um a sociedade que saiba respeitar os direitos e os deveres de todos.

Carlos Drum m ond de Andrade, assolado por pessoas que lhe rem etiam originais para leitura, escreveu um poem a que com eçava assim :

Ah, não m e tragam originais para ler, para corrigir, para louvar sobretudo, para louvar.

Não sou leitor do m undo nem espelho de figuras que am am refletir-se no outro

à falta de retrato interior.

Um bom início de um a carreira de escritor passa, necessariam ente, pela com preensão dos m ecanism os e dos processos do sistem a literário. Leitura de originais, hoj e, se faz em sala de aula, nas oficinas literárias. Se você não pode ou não quer frequentá-las, por este ou aquele m otivo, procure um a agência literária que forneça esse tipo de serviço. Ou, então, faça com o todos nós: encam inhe seus originais às editoras. Elas contam com profissionais avaliadores que são pagos para isso. Assim , você estará colaborando com o desenvolvim ento geral do m ercado editorial. Enquanto os profissionais da leitura de originais m antiverem seus em pregos, os escritores poderão utilizar as poucas horas que lhes restam para fazer o que m ais gostam : escrever.

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V

ou envelhecendo, e algum as paixões literárias, j á testadas pela releitura constante, se consolidam e se aprofundam . A cada inverno que passa, m ais adm iro Tchecov, Carver, Machado, Borges e Bradbury , entre outros.

Reli, com paixão e deleite, A cidade inteira dorme e outros contos, nom e que o editor brasileiro deu ao Bradbury Stories original.

Apesar da traição, que traduzir é, m esm o, sem pre trair, o título brasileiro resultou m elhor que o norte-am ericano. Gosto desses títulos que são retirados de um a das peças do conj unto. A cidade inteira dorme e outros contos nos lança de im ediato nesse clim a psicológico, m eio onírico e perturbador que o autor sem pre constrói, apesar de fingir escrever sobre m arcianos, viagens estelares e futuros distantes.

Na m edida em que nos aproxim am os da realidade descrita nesses contos m agníficos – afinal, j á estam os viaj ando pelos satélites e pelos planetas –, o aspecto de novidade desaparece e sobressai o que é m ais im portante na obra de Bradbury, a m aestria com que trabalha o conto, o suave lirism o de sua linguagem , a riqueza m etafórica e a absoluta hum anidade de seus personagens.

Mario Quintana dizia que Ray Bradbury era um escritor de contos de fadas m oderno. Nas m ãos de um m estre com o ele, aprendem os o quanto esse gênero difícil, esquivo e falsam ente sim ples pode ser poderoso e inesquecível.

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haicai é um a bolha de sabão. Se não és capaz de adm irar a sua frágil estrutura, a sua leveza, e com preender que ele articula os dois m etros m ais populares em qualquer idiom a, a redondilha m enor e a redondilha m aior, não serás capaz de senti-lo com o a “em ergência do im ediato absoluto” (Roland Barthes, Paris, em aula de 13 de j aneiro de 1979).

Aliás, quanto m ais sim ples as form as literárias, m ais eficientes seus efeitos poéticos. No entanto, a ilum inação, a com preensão profunda, requer um a leitura desarm ada, um a leitura sem arrogância.

Fazê-los nós m esm os, segundo Barthes, é um a prova de am or. Porque o haicai é desej ado, gera o desej o de produção. Fiz três, depois de ler grandes haicaístas j aponeses. Ei-los, e sem títulos. Para que m ais sintéticos sej am , e m ais preciosos:

Infância tem disso: Um m enino, um caniço. E três peixes m ortos.

Vovô avisava: Olho de boi, olho d´água. Só o tem po se afogou.

A pitanga tom ba N´água fria do riacho. E o Verão na som bra...

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H

ouve um tem po em que eu visitava cem itérios e frequentava velórios. À m edida que os segundos foram se m ultiplicando, fui rareando as visitações aos prim eiros.

Gosto da arte m ortuária e, especialm ente, da refinada arte dos epitáfios. E o m elhor lugar do m undo para se conhecer tais expressões artísticas é, exatam ente, a necrópole. Para consum o interno, autoj ustificação, sei lá, inventei que, depois de conhecer a cidade dos vivos, era preciso hom enagear, tam bém , a cidade dos m ortos. Assim , sem pre que eu chegava a um novo burgo, povoado ou aldeia, lá corria eu à cidade-dos-pés-j untos.

Num a dessas viagens-de-escritor, que se resum em a hospedar-se num hotelzinho, fazer a palestra no clube, na escola ou na faculdade e correr para a rodoviária, encontrei o Carlos Carvalho, contista e dram aturgo.

Depois de cum prido o ritual de encontro com os alunos, a professora de literatura, não tendo m uito que m ostrar aos dois visitantes, levou-nos a um alto cam panário, de onde se avistava quase toda a cidade. De lá, vim os o dormitório (em grego, koimetérion).

Voltei-m e para Carlos e disparei: — Vam os visitar os m ortos...

— De j eito nenhum ... – ele disse – Quem não é visto não é lem brado... Dias depois, j á em Porto Alegre, o coração de Carlos Carvalho parou. Hoj e pela m anhã, deteve-se tam bém o generoso e doce coração de Rovílio Costa, m eu prim eiro editor. Na últim a Feira do Livro, m ais um a vez e inutilm ente, com binam os de nos encontrar, para colocarm os a conversa em dia.

Não fui ao velório, nem irei ao enterro. Com o o velho Carlinhos, ando m e esquivando de esquifes, cam pas e alam edas estreitas.

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inguém nasce escritor, torna-se escritor. E, às vezes, plagiando outros escritores. Com o eu m esm o faço, neste instante, com a frase aí acim a, surrupiada de Sim one de Beauvoir, que afirm ava que ninguém nascia m ulher, tornava-se m ulher.

Bem , m as a frase inicial de m eu texto não é um plágio, ou é apenas um plágio parcial. A esses, cham am os de pastichos, releituras, paráfrases. E eles são m uito bem -vindos na área da literatura. São até um índice de pós-m odernidade.

E o plágio-plágio, o que seria? Aquilo que fez Paulo Coelho, denunciado por Moacy r Scliar? O m ago publicou um conto de Franz Kafka com o sendo dele, Coelho. Scliar não teve dúvida: publicou em fac-sím ile os dois textos, revelando a fraude.

Ou o que fez Shakespeare, que escreveu apenas 1.899 versos dos 6.043 que são tidos com o seus? Shakespeare não teve nenhum pudor em plagiar Robert Greene, Marlowe, Lodge, Peele, entre outros. E nem por isso o achincalham os. Certo, tem os um a confortável explicação sociológica: ao tem po do Bardo, o plágio não era crim e, pois não havia ainda a noção de propriedade intelectual, surgida com as leis de copyright. Plagiar, então, era um a hom enagem , um gesto de gratidão. Significava: gostei tanto do que escreveste que o tom ei para m im .

Mas os tem pos m udaram . Hoj e, Shakespeare seria processado e certam ente pagaria pesadas indenizações.

Às vezes, apanho m eus alunos de Escrita Criativa com a m ão na m assa. Aliás, com a m ão no texto (alheio)! São j ovens, estão açodados pelo excesso de atividades acadêm icas, vivem num m undo que lhes facilita o cut and paste. E supõem , ingenuam ente, que eu não vá perceber. Aí, aproveito para lhes dar noções básicas sobre a Convenção de Genebra, a de Paris, a Lei Brasileira de Direito Autoral. Mostro-lhes o Código Penal, que tipifica o crim e.

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Atsilut: Mundo da Em anação

1. Tem -se um a ideia geral, ainda indefinida. A ideia está o m ais perto possível da fonte de criação. A fonte pode ser o Grande Arquiteto, o Inconsciente, a Musa, a Paixão.

Beriá: Mundo da Criação

2. Já se tem um a ideia definida do que se fará. Nesse m om ento, o desej o vira palavra. Aqui entra a vontade, o querer fazer. É o m om ento de se apanhar um papel e um a caneta, ou o teclado de um com putador, e deixar as palavras fluírem , sem censura, sem policiam ento.

Yetsirá: Mundo da Form ação

3. Mom ento de se fazer um plano ou um desenho arquitético daquilo que se pretende. O proj eto com eça a se consolidar, a se sedim entar. Consegue-se ver o vir-a-ser. A im agem m ental com eça a se tornar realidade obj etual.

Assiyá: Mundo da Ação

4. Nesse m om ento, com eça a construção em si. Aqui, o fazer se retroalim enta. Quanto m ais se investir energia libidinal nessa fase sobre o obj eto, m ais ele brilhará depois. É o estágio final do processo criador.

Obs.: entre cada um dos m undos, há graus infinitos. Cada pessoa dem ora-se m ais ou m enos em cada um deles.

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M

eu prim eiro livro cham ou-se O lírio do vale. Um livro m edíocre, m al-acabado, de poem as prem aturos e inconsistentes. Eu tinha 17 anos e im aginava que escrever fosse despej ar sobre o papel os m eus sentim entos, as m inhas em oções e os m eus desej os com a m aior sinceridade possível.

Retirei o título de um a fam osa passagem bíblica que afirm a que devem os olhar os lírios do cam po, que não tecem , não fiam , não fazem nada e m esm o assim Deus os sustenta – ou algo assim , a depender da tradução.

Certam ente eu j á conhecia Olhai os lírios do campo, de Erico Verissim o, e por isso devo ter im aginado, tolam ente, que, se o m eu “lírio” fosse do “vale”, seria m ais profundam ente m eu.

Muitos anos depois, descobri que Honoré de Balzac havia publicado um rom ance com o m esm o nom e, exatam ente O lírio do vale, em 1835. Jam ais o li, m as sei que descreve o am or platônico de Madam e de Mortsauf por Félix Vandenesse.

O episódio rendeu-m e um a prem atura, e nunca superada, conclusão: não há originalidade. E m ais – que a literatura é um am ontoado de lugares com uns, e que os tem as, na literatura, se repetem infinitam ente.

Luigi Pirandello, o autor de Seis personagens em busca de um autor, dedicou-se a vida inteira a pesquisar os principais tem as da literatura ocidental ao longo de 2.500 anos. Encontrou cinco.

O que não se repete é a voz, o uso particular que o escritor faz da língua, do léxico de que dispõe em seu idiom a. E a essa voz, a esse tim bre, um escritor pode acrescentar m odulações, titubeios, trej eitos que constituem o seu estilo, que é irrepetível, irreprodutível e único.

Liberar dos om bros o peso da obrigação de ser original libera espaço para coisas m ais im portantes.

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Referências

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