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MESTRADO EM DIREITO São Paulo 2012

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(1)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP

Vianey Mreis Lopes Junior

A Vítima no Processo Penal e a Reparação

do Dano pelo Juízo Criminal

MESTRADO EM DIREITO

(2)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP

Vianey Mreis Lopes Junior

A Vítima no Processo Penal e a Reparação

do Dano pelo Juízo Criminal

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação de Mestrado apresentada à

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –

PUC/SP, como exigência parcial para

aprovação e obtenção do Título de Mestre em

Direito Processual Penal sob orientação do

Professor Doutor Cláudio José Langroiva

Pereira.

(3)

Banca examinadora

________________________________________

________________________________________

(4)

Dedicatória

Dedico este trabalho a Silmara, minha amada

esposa, mãe dos meus filhos, colega de escritório,

que tornou possível a realização deste sonho.

Também à memória de meu pai, pelo exemplo

de combatividade e determinação e a minha mãe por

(5)

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, por ter me conduzido até aqui e colocado pessoas

maravilhosas em meu caminho, que me abriram portas inimagináveis.

Agradeço profundamente ao meu orientador Professor Cláudio José

Langroiva Pereira, pela paciência e sabedoria.

Agradeço aos Professores da Pós-Graduação da PUC-SP, pelo muito que

me ensinaram, em especial aos Professores: Claudio de Cicco, Álvaro de Azevedo

Gonzaga, Márcia Alvim, Gabriel Chalita, Marco Antonio Marques da Silva e Oswaldo

Henrique Duek Marques.

Agradeço ao Professor Benedito Roberto Garcia Pozzer, por sua amizade,

por suas palavras, rogando a Deus que o proteja no cumprimento de sua missão.

Agradeço ao Professor Roberto Ferreira Archanjo da Silva, por sua amizade,

seu inestimável incentivo e por ter me levado para a Pós-Graduação.

Agradeço ao inesquecível Professor Hermínio Alberto Marques Porto (in

(6)

“Vinde a mim todos os que estais cansados sob

o peso do vosso fardo e vos darei descanso.

Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de

mim, porque sou manso e humilde de coração,

e encontrareis descanso para vossas almas,

pois meu jugo é suave e meu fardo é leve.”

Jesus Cristo

(7)

RESUMO

O presente trabalho analisa a posição da vítima ao longo da história, ora como

principal protagonista do processo, ora afastada e substituída pelo Estado Juiz.

A Constituição Federal de 1988, ao eleger o Estado Democrático de Direito sob a luz

do Princípio da Dignidade Humana após estabelecer inúmeras garantias, revalorizou

a vítima da criminalidade violenta, trazendo explicitamente a obrigação de amparo e

assistência.

A vítima foi revalorizada por extensa legislação ordinária posterior à Constituição e

finalmente com a Lei 11.719/2008 de 11/06 de 2008 que tratou de sua indenização

em sede do Juízo Criminal, na busca por reparação de danos sofridos em virtude do

crime.

A reparação agora determinada pelo Juízo Criminal com evidente intenção de

celeridade e eficiência, aferindo o dano e estipulando a indenização, com evidente

alargamento de sua competência. Neste diapasão ainda estuda-se a forte corrente

que gradativamente propõe ser o Estado concorrente e solidário na responsabilidade

pela reparação dos danos decorrentes dos danos sofridos pela vítima oriundos da

criminalidade violenta.

Palavras-chave: Vítima; Reparação; Juízo Criminal, Estado Democrático de Direito e

(8)

ABSTRACT

The present paper intends to demonstrate the victim´s historical position in the penal

process and their evolution as a character in the penal process, starting at the time of

their greatest protagonism, with the revenge, up to their present situation at the time

of the State´s monopoly, where the victim must be supported by the State and

compensated by the delinquent for the crime.

We intend to demonstrate that the victim, under the protection of the Rule of Law

and the Principle of the Dignity of the Human Being, which are eternity clauses in the

federal Constitution of 1988 and guiding lines of this study, in face of the moral and

material damages suffered as a result of the crime needs to have those damages,

both moral and material, repaired, the delinquent being required to do so as well as

the State, which must provide the conditions for their total rehabilitation.

The study of the legislative reform introduced by Law 11.719/2008, interpreted under

the constitutional realm, supported by principles and jurisprudence, still incipient,

proves those aspects with their clear re-valuation, in this context.

Furthermore, we point out the need for extensive action by the Criminal Court, which

had added to its scope of actions the ascertainment of the defendant´s responsibility

as related to the victim´s damages, with no offense to the already accomplished

constitutional principles of the penal process, and the need for the consequent

determination of an effective compensation so that the victim´s claims can be

satisfied, so that the international treaties can be validated, and so that the civil court

can be released of the extra burden of unnecessary filing for new requests of

compensation.

(9)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 11

1. A VÍTIMA NO PROCESSO PENAL E SUA REPARAÇÃO PELO JUÍZO CRIMINAL ... 12

1.1. A Vítima, conceito ... 12

1.2. Contexto histórico ... 18

1.2.1 Civilizações da antiguidade posteriores à ordem tribal ... 23

1.2.2 Código de Hammurabi ... 26

1.2.3 Direito hebreu ... 28

1.2.4 Direito Romano ... 30

1.2.5 Antigo Direito Penal Germânico ... 32

1.2.6 Direito canônico ... 35

1.2.7 Estado Moderno ... 37

1.3. Tendências de revalorização da vítima na legislação ... 40

2. A VÍTIMA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ... 52

2.1. A vítima na Constituição Federal Brasileira de 1988 ... 55

2.2. Do Princípio da Dignidade humana, um retrospecto histórico filosófico do conceito ... 58

2.3. Do Princípio da Dignidade humana, conceito atual, vigência na ordem Constitucional e sua aplicabilidade em face das vítimas de delitos ... 64

3. A REPARAÇÃO DO DANO CAUSADO PELO DELITO ... 70

3.1. Uma visão constitucional sobre a reparação de danos ... 70

3.2. A reparação dos danos com a atuação do Juízo Criminal em face da Lei nº 11.719/2008 de 11/06/2008 ... 74

(10)

4. A QUESTÃO DA RESPONSABILIDADE DO ESTADO E A FIXAÇÃO DA

INDENIZAÇÃO ... 89

4.1. A responsabilidade concorrente do Estado pelo ato criminoso ... 89

CONCLUSÃO ... 98

(11)

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por escopo demonstrar a posição histórica da

vítima no processo penal e sua evolução como personagem do processo penal,

iniciando na era de seu maior protagonismo, com a vingança propriamente até sua

posição atual diante da era do monopólio Estatal na aplicação e distribuição da

Justiça, em que a vítima deve ser amparada pelo Estado e indenizada pelo

delinquente em face do crime.

Pretendemos demonstrar que a vítima, sob a égide do Estado

Democrático de Direito e do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, cláusulas

pétreas da Constituição Federal de 1988 e linhas mestras deste estudo, em face dos

danos materiais e morais que sofreu em virtude do crime, necessita ver reparados os

danos não somente materiais como também morais, obrigando-se o delinquente a

reparar e de forma concorrente e solidária o Estado, que deve prover condições para

sua perfeita reabilitação.

O estudo da reforma legislativa introduzida pela Lei nº 11.719/2008, com

interpretação sob a égide constitucional, amparado pela doutrina e pela

jurisprudência, ainda incipiente, demonstram esses aspectos com a clara

revalorização da vítima neste contexto.

Observamos ainda a necessidade de ampla atuação do Juízo Criminal

que teve sua competência acrescida na apuração da responsabilidade do réu no que

toca ao prejuízo da vítima, sem nenhuma ofensa aos princípios constitucionais do

processo penal já conquistados e consequente fixação de efetiva reparação para

que se atenda aos reclamos da vítima, para que se de efetividade aos tratados

internacionais e desafogue a esfera civil, tornando desnecessária a vítima

(12)

1. A VÍTIMA NO PROCESSO PENAL E SUA REPARAÇÃO PELO

JUÌZO CRIMINAL

1.1. A vítima, conceito

Paulatinamente, com o progresso e a evolução dos Estados modernos e

com a consolidação do monopólio estatal na aplicação da Justiça, o criminoso

transformou-se no personagem central do processo penal, a vítima, por sua vez, foi

quase que esquecida no cenário processual, sendo utilizada durante muito tempo

como meio de prova meramente. No entanto, nos últimos tempos, vem sendo

redescoberta em todo o mundo, sendo que a revalorização da vítima inicia sua

vigorosa caminhada com o fim da Segunda Guerra Mundial, com a atuação dos

organismos internacionais e com o desenvolvimento da vitimologia propriamente,

como ciência autônoma.

Foram feitos intensos estudos sobre a vítima no direito e em outros ramos

do conhecimento humano, como a sociologia, filosofia, psicologia, psiquiatria, dentre

outros, motivando movimentos em inúmeros países, levando à criação de

associações internacionais e nacionais preocupadas em assegurar os direitos da

vítima, sendo inclusive aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas – ONU,

em 29 de novembro de 1985, a Declaração dos Direitos Fundamentais da Vítima.1

Etimologicamente a palavra vítima vem do latim2, contudo há diferentes explicações sobre seus significados, posto que se prendem às variações culturais de

acordo com uma determinada época, influência religiosa, inicialmente pagã e

posteriormente cristã.

Este trabalho não mergulha no universo da vitimologia, pois não busca a

análise da vítima em amplo aspecto, mas utiliza-se de alguns conceitos desta

ciência para discutir a sua reparação.

1

FERNANDES, Antonio Scarance.O papel da vítima no processo criminal. São Paulo: Malheiros Editores, 1995, p. 11.

2

(13)

Para Plácido e Silva, a palavra vítima derivaria de victima, do latim, em

que geralmente se entende que é toda pessoa sacrificada em seus interesses, que

sofre um dano ou é atingida por qualquer mal3.

Do ponto de vista histórico, chamava-se vítima, entre os povos da

antiguidade de modo geral, o animal a ser sacrificado para aplacar a ira divina ou

ainda oferecido em ação de graças por benefícios recebidos. No primeiro caso em

latim empregava-se a palavra hóstia e diferenciava-se no segundo caso com a

palavra victima4.

Edgard de Moura Bittencourt aduz, já com base numa visão religiosa

cristã calcada na Bíblia, que a palavra vítima tem origem no verbo latino vincere,

sendo o ser vivo que se imola em sacrifício. Esse autor ainda afirma que há o

sentido jurídico genérico representando aquele que é atingido diretamente pela

ofensa ou ameaça ao bem jurídico tutelado pelo direito. Num sentido jurídico penal

estrito, a palavra designa o indivíduo que sofre diretamente as consequências da

violação da norma penal e em sentido penal amplo abrange o indivíduo e a

comunidade que suportam diretamente as consequências do crime.5

Ainda, com forte influência religiosa cristã, o vocábulo ganhou significado

amplo em nossos dias, pois vítima não significa somente o animal abatido em

sacrifício, mas todo ser vivo que sofre qualquer espécie de dano, que pode resultar

por ação de outrem ou por fatos da natureza, sendo este o significado literário ou

gramatical da palavra vítima.6

José Frederico Marques, referindo-se à vítima, fala em ”sujeitos principais

do processo e em sujeitos secundários”, considerando o ofendido e o prejudicado

como terceiros “que funcionam no processo penal como interessados em questões

3

SILVA, De Plácido e Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Cia Editora Forense, 2000, p. 870. 4

MASON, Sean F. História da Ciência.Trad. de José Vellinho de Lacerda. Porto Alegre: Editora Globo, 1957 apud em OLIVEIRA, Edmundo.Vitimologia e direito penal: o crime precipitado ou programado pela vítima. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005, p. 7.

5

BITTENCOURT, Edgard de Moura. Vitimologia como Ciência. Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal, ano 1, nº 1, p. 480, abril/maio de 1963.

6

(14)

acessórias que se contêm na relação processual penal. Tais são o ofendido ou a

pessoa prejudicada pelo crime”.7

É evidente o caráter acessório que tais personagens processuais

possuem na visão de José Frederico Marques retratando de certa forma a visão

doutrinaria de uma época acerca da vítima.

Os estudos da vitimologia, ciência nascida com o fim da Segunda Guerra

Mundial, são relevantes e influenciam na definição jurídica de vítima, sendo

considerado “vítima penal quem sofre as consequências de violação de uma norma

penal, podendo, no processo, contudo, defender interesses criminais e não

criminais, o primeiro objeto de indagação consiste em saber se essa vítima penal se

identifica com a figura do sujeito passivo da infração penal.”8

Fernando da Costa Tourinho Filho define vítima ou ofendido como ”o

sujeito passivo da infração penal. E sujeito passivo é o titular do direito lesado ou

posto em perigo pelo crime”.9

Antonio Scarance Fernandes complementa o conceito:

A vítima criminal é, assim, o sujeito passivo da infração penal, principal ou secundário. Contudo, importa salientar que, assim como o réu não poder ser considerado objeto do processo e sim um sujeito dotado de direitos, também a vítima deve ser vista no processo não apenas abstratamente como sujeito passivo do delito, mas como alguém concretamente dotado de direitos. Sujeito prejudicado. Não corresponde ele ao sujeito passivo do delito. Este é o titular do direito protegido pela norma penal. O sujeito prejudicado é o titular do direito à indenização civil, ou seja, aquele que, em razão de um ilícito civil, tem direito a pleitear a reparação do dano sofrido.

Pode, contudo, a mesma pessoa ser sujeito passivo e sujeito prejudicado. Isso acontece quando, em decorrência de um fato criminoso, o sujeito passivo tenha sofrido lesão e, pelos termos da lei civil, possa pleitear a reparação do dano. Em conclusão, sem avançar para o extenso conceito vitimológico, considera-se vítima o sujeito

7

MARQUES, José Frederico.Elementos de direito processual penal, v. I, Campinas, SP: Editora Bookseller, 2000.

8

FERNANDES, Antonio Scarance.O papel da vítima no processo criminal. São Paulo: Malheiros Editores, 1995, pp. 40-43.

9

(15)

passivo, principal ou secundário. O prejudicado só será vítima quando ostente também a qualidade de sujeito passivo. Assim, todo sujeito passivo será vítima, mas não todo prejudicado.10

O conceito de prejudicado foi extraído das normas de direito civil e, como

sustentado por Antonio Scarance Fernandes, nem todo sujeito passivo é prejudicado

e se a lei processual penal permitir que o simples prejudicado possa no juízo criminal

defender seus interesses civis estará admitindo a participação de outras pessoas,

além da vítima, mas se limitar essa intervenção à vítima criminal será legitimado

somente o prejudicado que tenha ao mesmo tempo a posição jurídica de sujeito

passivo de infração penal.11O Código de Processo Penal usa as palavras vítima, ofendido, pessoa ofendida e lesado, sem rigor terminológico, mas, para Antonio

Scarance Fernandes, é possível extrair algumas conclusões:

O vocábulo vítima aparece com o significado de vítima penal, ou seja, de

sujeito passivo da infração penal. Assim no artigo 187, § 2º, inciso V, consta que o

“réu será interrogado sobre se conhece a vítima”; no artigo 240, § 1º, letra ‘g’,

admite-se busca domiciliar para apreender pessoas vítimas de crimes. Não é a

palavra usada para se referir à vítima como sujeito da relação jurídica

processual.Lesado corresponde no Código ao que sofreu prejuízo em decorrência

do crime. Está referido nos diversos artigos em que são previstas formas de

reparação do dano ao prejudicado: restituição de coisa apreendida no artigo 119,

ressarcimento com o dinheiro arrecadado na venda em leilão público das coisas

apreendidas, artigo 122, parágrafo único, ressarcimento com o dinheiro arrecadado

na venda de bens sequestrados em leilão público, artigo 133, parágrafo único.

É como ofendido ou pessoa ofendida que o Código se refere à vítima no

sentido processual: artigos 5º, II e ‘caput’; 6º, IV; 14; 19; 24, ‘caput’ e parágrafo

único; 30; 31; 32, § 2º; 33; 34; 38; 39, § 1º; 45; 50, ‘caput’; 63; 127; 134; 140; 142;

201 e parágrafo único; 229, ‘caput’; 268; 373; 526; 529, ‘caput’ e parágrafo único;

598.”12

10

FERNANDES, Antonio Scarance. O papel da vítima no processo criminal. São Paulo: Malheiros Editores, 1995, pp. 48-50.

11

Ibidem, p. 50. 12

(16)

José Frederico Marques faz uma distinção entre vítima e prejudicado

propriamente destacando a diferença com o exemplo do crime de homicídio em que

a vítima seria a pessoa assassinada e os prejudicados seriam seus familiares que

tinham uma dependência financeira em relação ao falecido, ou seja, a primeira sofre

as consequências diretas do ato criminoso em si mesmo e as segundas sofrem as

consequências patrimoniais e morais.13

As expressões sujeito passivo e titular do bem jurídico não compõem a

nossa legislação penal e são efetivamente uma criação doutrinaria quando se

referem à expressão vítima. Há quem entenda incabível a expressão sujeito passivo,

pois, numa visão vitimológica, a vítima interage com o agente e com o meio, não

estando desta forma passiva.14 Para se identificar o sujeito passivo principal e secundário,faz-se necessário analisar a norma que define o crime e se sobrevier

dúvida, deve se optar por orientações mais abrangentes, desde que seja para fins

processuais, pois o Código de Processo Penal não adotou posição restritiva sobre

quem é ofendido.15

Os diversos sistemas processuais não adotaram o mesmo conceito de

ofendido, o nosso Código não define especificamente o que seja ofendido, não

acolheu uma posição restritiva que só considere ofendido o sujeito passivo principal,

sendo o vocábulo usado para se referir ao titular do direito de ação penal privada, ao

titular do direito de representação, ao assistente do Ministério Público ou ao

legitimado para requerer providências cautelares civis.

Com a finalidade de finalizarmos o conceito de vítima se faz ainda

necessário abordar o conceito do instituto da autocolocação da vítima em risco,

consoante a lição de Alessandra Orcesi Pedro Greco fixando as distinções

relevantes classificando as vítimas em dois grupos:

13

MARQUES, José Frederico. Curso de Processo Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 1956, volume II, p. 56.

14

GRECO, Alessandra Orcesi Pedro. A autocolocação da vítima em risco. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 24.

15

(17)

Aquelas vítimas que criaram o risco para si, ou que consentiram para que outro a criasse; e aquelas que não tiveram nenhuma colaboração no risco para si próprias.16

Ao tratarmos de reparação da vítima em face do delito, a aplicação do

conceito mencionado anteriormente se torna importante para fixação do valor a ser

pago a título de indenização, pois é evidente que o comportamento da vítima no

cenário delitivo terá o condão de tornar maior ou menor a responsabilidade do réu

no que tange à indenização. Importa salientarmos que o artigo 59 do Código Penal

pátrio já faz menção ao comportamento da vítima para dosimetria da pena a ser

aplicada,adiante desenvolveremos melhor essa questão.

16

(18)

1.2. Conceito histórico

O estudo histórico não tem por escopo abordar toda a matéria referente à

evolução do papel da vítima, mas trazer uma visão dos principais momentos

históricos da vítima em face do processo penal.

A vítima nos primórdios da civilização teve relevante papel, como

protagonista da relação processual na punição dos autores dos crimes atuando até

mesmo em causa própria com legitimidade para punir o infrator, pois a própria vítima

ou suas famílias tinham o direito de prosseguir com a vingança, inicialmente privada

e depois, regulamentada e pública ou posteriormente obter uma compensação

financeira com a composição. Nos sistemas de justiça da antiguidade a

compensação era uma das medidas mais comuns na reparação da vítima ou de

seus familiares.

A princípio é preciso reafirmar que a fase cunhada como “Idade de Ouro”

da vítima não é expressão que indique período histórico determinado e circunscrito

no tempo, pois não há historicamente comprovado um termo inicial ou um final

preciso do período em questão. Pode-se apenas estabelecer um marco temporal ao

final desta fase, mais ou menos preciso, considerando-se o início de sua decadência

com a formação dos estados e sua exclusividade no exercício da jurisdição e

consequente diminuição do papel da vítima.

A importância de estabelecer as características principais desse período é

evidenciada quando se vislumbra atualmente a já citada revalorização da vítima, que

significa uma retomada de um conceito de valor que já existira no passado e depois

sofreu uma mudança drástica de paradigma levando a vítima ao esquecimento como

personagem processual e sujeito de direito, bem como enquanto ser humano.

É comum na doutrina a afirmação de que a vítima viveu, nos primórdios

da civilização, sua “Idade de Ouro”, identificando-se esta fase com o período da

vingança e posteriormente vingança pública, em que se entende que a vítima

vingava-se com fulcro exclusivo na sua dor. Entretanto, não é possível afirmar que a

vítima tinha a exclusividade do interesse do direito penal à época, Giuseppe Bettiol

alerta para o risco de se fazer uma afirmação peremptória e precipitada nesse

(19)

do direito penal na fase histórica, que antecedeu à constituição do Estado que

conhecemos, o poder punitivo do pater famílias repousava numa justificação de

natureza pública,17 pois este não agia como depositário de um poder privado, mas era uma autoridade política, de natureza pública, sendo a família a primeira forma de

organização política, quando o estado não existia ou era ainda muito rudimentar.

A vingança privada era de fato a prática utilizada pelos povos primitivos,

entretanto, como afirma Alexandra Orcesi Pedro Greco, tal prática consistia num

poder dever que o ofendido ou seus familiares deveriam exercer, com fundamento

em bases morais, mágicas e religiosas, possuindo esta atuação o caráter divino, na

busca da reparação e restabelecimento da paz social, abalada pelo delito.18

Erich Fromm, por sua vez, descreve a vingança como uma instituição

social aceita e organizada, tendo-a observado entre diversas etnias da Índia,

Polinésia, Córsega e dos índios americanos que a definem como um dever sagrado

que recai sobre um membro de determinada família, clã ou de uma tribo que tem

que matar um membro de uma unidade familiar correspondente, se um de seus

companheiros tiver sido morto.19

Tal revide, sem guardar qualquer proporcionalidade, era pessoal, de

indivíduo para indivíduo, de grupo para grupo, sem qualquer regulação, pois quando

a vingança passa ser regulada por qualquer tradição, costume ou lei, com a

supervisão de um líder político ou religioso, passa à categoria de vingança pública.

Por sua vez, Edgar Magalhães Noronha aduz que o caráter

preponderantemente privado ou público das regras de natureza penal de um

determinado povo não segue uma rigorosa evolução cronológica no sentido da

transmudação do privado para o público.20Tais observações norteiam a necessidade de especial cuidado para não se adotar categorias e períodos históricos estanques e

definidos em algumas noções que efetivamente transcendem limites culturais e

temporais estritos.

17

BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. Tradução e notas de Paulo José da Costa Junior e de Alberto Silva Franco. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, volume I.

18

GRECO, Alessandra Orcesi Pedro. A autocolocação da vítima em risco. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 28.

19

FROMM, Erich. Anatomia da destrutividade humana. Tradução de Marco Aurélio de Moura Matos, Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 1975, p. 364.

20

(20)

É importante salientar que os estudos da evolução histórica do direito

penal tratam, com frequência, de quatro fases distintas:vingança privada, identificada

com o período primitivo da humanidade; vingança pública, quando o Estado ou a

organização social existente passa a regular os casos de vingança e aplicar a pena;

fase da humanização, a partir do século XVIII; e a etapa atual, em que há diversas

correntes com seus próprios pontos de vista.

Nesse sentido, há vários exemplos históricos demonstrando que a

evolução não obedece a um sentido linear cronológico e que tendências

humanitárias, bem como a vingança pública ou privada, são marcas que estiveram

presentes em diversas épocas, com avanços e retrocessos ao longo da história.21

Edgar Magalhães Noronha também assevera no mesmo diapasão que

esses períodos não se sucedem integralmente, ou melhor, advindo um, nem por isso

o outro desaparece logo, ocorrendo, então, a existência concomitante dos princípios

característicos de cada um, uma fase interpenetra a outra, havendo verdadeira

intersecção, e durante tempos esta ainda permanece ao seu lado.22

Com o estabelecimento dessa premissa, pode-se, então, falar do período

identificado como a “Idade de Ouro” da vítima, como sendo aquele que compreende

desde os primórdios da civilização até o fim da Alta Idade Média. Com o início da

Baixa Idade Média (século XII), período este marcado pela crise do feudalismo,

pelas cruzadas e surgimento do processo inquisitivo na igreja católica, sendo que

neste período a vítima inicia seu caminho rumo ao ostracismo, sendo substituída, no

conflito de natureza criminal, pelo soberano e mais adiante pelo Estado.

Como podemos inferir, trata-se de um período histórico muito amplo, o

que torna temerária qualquer classificação taxativa e dificulta a exata compreensão

da evolução do direito penal no que tange ao tratamento à vítima se buscarmos um

sentido linear, tanto de forma cronológica, como também axiológica.

Ana Sofia Schmidt de Oliveira23 lembra ainda no sentido de desmistificar a fase da idade de ouro da vítima, no que tange à crença de que a vítima agia

21

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, volume I, p. 181.

22

NORONHA, Edgar Magalhães. Direito penal. São Paulo: Editora Saraiva, 1968. p. 21. 23

(21)

livremente e sem quaisquer parâmetros, afirmando que se o direito penal adquiriu

definitivamente seu caráter publicístico com surgimento dos métodos inquisitivos por

volta do século XII, não é correto afirmar que até então a justiça penal esteve nas

mãos da vítima, pois as práticas penais das civilizações mais remotas guardavam

uma forte marca mágica e teocrática, que implicava nítida identificação entre crime e

pecado, o que de per si transcende o interesse exclusivo das partes de pura

vingança, substituído pela necessidade em apaziguar os deuses, que sobrepunham.

Nesses períodos mais remotos da humanidade, a vítima agia por suas

próprias forças ou com o apoio do clã familiar, com forte componente de caráter

mágico e religioso sempre presente como já dito. As consequências do crime não

ficavam, normalmente, adstritas aos indivíduos envolvidos na ação delituosa,

alcançando suas famílias e seu clã, pois a ofensa a um membro da tribo repercutia

em todos, o que gerava lutas sangrentas e infindáveis, responsáveis pelo extermínio

de clãs e comunidades inteiras. Nesse ambiente, onde não havia ainda sistemas

sociais mais organizados política e juridicamente, cabia à vítima e sua tribo punir o

ofensor e seu clã. Tudo dependia da força pessoal da vítima ou de seu grupo para

se impor sobre o criminoso e puni-lo.

A vingança de sangue de forma mágica e simbólica tinha o poder de

desfazer o mal praticado pelo criminoso, por meio de sua própria destruição ou

banimento do grupo. Tal ato vinculado a um poder dever expressava a repulsa ao

agressor, gerada pela ofensa.24

Apesar do todo trazido sobre as vinganças e práticas nas sociedades

primitivas e nas sociedades tribais, o crime não era e ainda hoje não é fenômeno

comum, pois há um alto grau de coesão social, com o ajustamento do homem

comum às tradições da tribo e do clã, também as normas do grupo fixadas há

tempos e de caráter consuetudinário, e a quase ausência de competição social,as

poucas tensões da vida consistentes no suprir das necessidades básicas da

subsistência contribuem para a quase total ausência de delitos. Ademais as

sociedades tribais possuíam formas diversas de esvaziamento das tensões antes da

eclosão da prática de qualquer violência que delas pudessem decorrer, tais como

24

(22)

rituais de sacrifícios e ritualizações da guerra com jogos e lutas corporais,tudo

contribuindo para a quase ausência de conflitos internos.25

A punição do homem, autor efetivamente do crime, só era exigida quando

a agressão fosse mais grave e tinha por finalidade purgar o clã da indignidade do

ato. Recaía sobre o culpado ou, na sua falta, sobre quem viesse a ser apontado pela

vítima ou até por seus parentes, por reconhecimento ou procedimentos mágicos

realizados em cerimônias de julgamento, é a responsabilidade flutuante que busca

um responsável para a pena, que libertará o clã da impureza com que o crime o

contaminou.26

Portanto, ainda que a vítima participasse dos rituais punitivos e pudesse

até mesmo golpear pessoalmente o criminoso, a finalidade maior de tais práticas era

restabelecer a coesão social abalada pela prática do crime e da harmonização do

clã em face das divindades. O interesse do grupo na manutenção da coesão social,

especialmente por suas raízes religiosas, sobrepunha-se ao interesse individual da

pura vingança, que terminava por ser alcançada, mas possuía um significado cultural

muito diferente daquela que o homem moderno pode ter hoje.

Assim, nesse mundo mágico e simbólico do paganismo tribal, em que

imperava a ausência de leis causais, em que a contradição não só era possível

como aceitável, é mais importante saber que a ofensa foi dissipada sem provocar a

ira divina, do que propriamente determinar a exata e pessoal responsabilidade pela

infração, ou sua motivação.

Todos como indivíduos, o clã e a comunidade como um todo eram

agredidos pelo delito e a situação anterior a prática do delito, de harmonia

social,deveria ser restabelecida em respeito às divindades ofendidas e não só em

face da vítima, muito embora esta tivesse atuação pessoal intensa como já exposto.

25

GONZAGA, João Bernardino. O direito penal indígena à época do descobrimento. São Paulo: Editora Max Limonad, 1970, pp. 18-19.

26

(23)

1.2.1 Civilizações da antiguidade posteriores à ordem tribal

O mesmo forte sentimento comunitário que se apontou anteriormente nas

sociedades tribais encontra-se presente também na formação das antigas

civilizações, mais populosas, heterogêneas, complexas e organizadas cujas leis

escritas chegaram até nós. A elas, em regra, retrocede a análise histórica do direito

penal e processual e, por isso, merece citação.

Logo que surgiram as primeiras organizações sociais mais estruturadas,

percebeu-se que não interessava a ninguém a vingança sem medida, tampouco as

rixas infindáveis entre os clãs, seguidas também de uma resposta sempre

desproporcionada, pois, isso implicava o empobrecimento e dizimação dos clãs,com

grande desestruturação social. Diante da necessidade de se limitar a reação à

agressão, passou-se da chamada fase da vingança privada à fase da vingança

pública limitada e regulada, pela autoridade constituída.

Assim, quando a vítima e seus parentes pretendiam punir o autor do

crime, deviam se dirigir a um representante do clã, da comunidade ou autoridade

pública, incumbido de verificar se eram obedecidas determinadas regras formais e

se a vingança não ultrapassava os limites estabelecidos nas normas então em vigor,

fossem ela de índole religiosa ou de direito.

Entretanto, como assevera Osvaldo Henrique Duek Marques, a

transferência da vingança do particular para um poder central perdurava em algumas

sociedades ainda como vingança privada, porém regulamentada, pois mantinha

todas as características da vingança de sangue, como na aplicação do talião entre

os hebreus.Também nas sociedades primitivas em que o poder central assumia

integralmente o dever de punir, persistia o sentimento vingativo, embora abrandado,

como no caso do talião aplicado pelo código de Hammurabi.27

Nesse sentido, René Girard explica que os sistemas e organizações

judiciárias:

Não suprimem, mas apenas limitam a uma represália única, cujo exercício é confiado a uma autoridade soberana e especializada em seu

27

(24)

domínio. Estas decisões da autoridade judiciária afirmam-se sempre como a última palavra da vingança’.28

Portanto, como se pode inferir, mesmo quando há sistemas de justiça

retirando ou limitando ao particular o protagonismo da vingança, dando a esta uma

regulamentação e uma feição pública, ainda assim remanesce o sentimento da

prática de vingança.

A esse respeito, esclarece ainda Oswaldo Henrique Duek Marques que,

embora o sistema judiciário almeje racionalizar toda sede de vingança expressada

no contexto social, a experiência demonstra, nos casos concretos de crimes graves,

que muitas vezes os indivíduos não se satisfazem com a expectativa de punição

decorrente de um processo judicial e cita exemplo emprestado de Hans Von Hentig,

em que os parentes das vítimas requerem o direito de assistirem às execuções dos

criminosos, fato este corriqueiro nos Estados Unidos da América, ainda nos dias de

hoje.29

As antigas legislações das civilizações da antiguidade denotam este

aspecto claramente.Essas legislações e codificações que chegaram aos nossos dias

constituem importante fonte histórica de informações sobre o papel da vítima nos

primórdios da civilização. Entretanto, cabe ainda fazer mais uma ressalva. Tais

codificações não devem ser superestimadas, pois não se deve, por meio delas,

cunhar afirmações absolutas acerca das relações sociais e jurídicas em determinado

tempo e lugar. Isso ocorre porque, apesar da importância desses documentos, eles

não representam, por si só,integralmente, todo um sistema social efetivamente

vigente, pois havia inúmeras interações com o divino, com a natureza, com os

costumes e com a cultura de forma geral.

Nesse sentido, consoante Aníbal Bruno, o estudo dos sistemas de penas

e de castigos nas sociedades primitivas, faz-se necessário, além da análise jurídica

dos antigos documentos, um exame comparativo, de ordem antropológica do

homem arcaico com o homem atual, levando-se em conta a realidade simbólica,

mágica e primitiva para termos uma ideia mais acertada de como viviam tais homens

28

GIRARD, René. A violência e o Sagrado. 3. ed. Tradução de Martha Conceição Gambini. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2008, pp. 29-30.

29

(25)

no que se refere à tutela social e a garantia de permanência da comunidade por

meio de imposição de penas as transgressões.30

Ana Sofia Schmidt de Oliveira exemplifica que para verificar a limitação da

relevância desses documentos, basta um exercício de imaginação, e que em alguns

milhares de anos, antropólogos de uma civilização futura venham achar a nossa Lei

de Execução Penal nº 7.210/84. Neste contexto histórico, se não contarem com

outras fontes de informações e consultas, é possível que escrevam tratados sobre o

alto grau de humanização vigente nos presídios brasileiros no final do século XX.31 Portanto, nesse sentido é necessária certa restrição na análise pura das legislações

arcaicas.

30

BRUNO, Aníbal. Direito Penal, parte geral. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1967, tomo I, pp. 54-55.

31

(26)

1.2.2 Código de Hammurabi

Com efeito, o Código de Hammurabi, uma das mais antigas codificações

conhecidas, vem da Babilônia, civilização da região da mesopotâmia e data,

aproximadamente, o século XVIII antes de Cristo. Hammurabi foi um dos primeiros

reis babilônicos e, de acordo com o prólogo da legislação, foi chamado pelos

principais deuses “para fazer surgir a justiça na terra”32, tendo, assim, recebido a codificação que possuía evidente origem divina.

Neste código, gravado em placas cuneiformes, constam disposições

penais muito rigorosas. Além da previsão da pena de morte e penas de lesões

corporais ou mutilações (aplicadas segundo o princípio de Talião), que eram muito

frequentes, havia também a previsão da pena de composição para os crimes de

natureza simplesmente patrimonial.

Em alguns casos era prevista a pena de talião e a composição

cumulativamente para o mesmo delito. A utilização de uma ou outra dependia da

qualificação social do ofensor e do ofendido e nesse ponto observa-se o preconceito

de classes explicito no texto. A lei babilônica fazia evidente distinção entre o awilum

e o muskênum, sendo o primeiro aquele cidadão na plenitude de seus direitos,

aristocratas e nobres em geral e, o segundo, o integrante de uma classe

intermediária composta de homens livres e pobres, artesãos, agricultores, pequenos

comerciantes, enfim, sendo esta a classe social intermediária entre a nobreza e os

escravos, que não possuíam qualquer direito.

Nesse período, a lei de Talião foi considerada como um grande progresso

jurídico, pois era conhecida pelo povo pelos preceitos de igualdade e

proporcionalidade que impunha entre a ofensa praticada e a pena imposta, ou seja:

“olho por olho, dente por dente”, portanto impertinente qualquer assertiva sobre

eventual barbárie de tal método, posto que teve ampla aceitação social à época.

Notamos ainda que, embora fosse reconhecido o direito da vítima e de

sua família à aplicação do talião e ao recebimento do preço da composição, o

32

(27)

exercício de tal direito encontrava limites legais, não podendo ser

indiscriminadamente exercido sem a intervenção do Estado teocrático.

Vejamos parte do Epílogo:

Que o homem oprimido, que está implicado em um processo, venha diante de minha estátua de rei da justiça e leia atentamente minha estela escrita e ouça minhas palavras preciosas. Que minha Estela resolva sua questão, ele veja o seu direito, o seu coração se dilate!33

Nesse sentido, não há que se falar em vingança privada, mas aqui já há a

efetiva aplicação de um sistema de justiça organizado, de cunho teocrático, ainda

que ungido de um sentimento vingativo, mas que já buscava a recomposição do

dano patrimonial da vítima, além da punição do criminoso em que pese à punição ter

motivação religiosa, mágica e com grande carga simbólica.

33

(28)

1.2.3 Direito hebreu

No direito hebreu também são inúmeras as passagens do Antigo

Testamento que demonstram a aplicação do talião.Assim, como o sistema

Babilônico e no antiquíssimo sistema Indiano (Código de Manu), o direito penal

hebreu estava fundado em concepções religiosas e sua origem era divina. Os Dez

Mandamentos foram recebidos no Monte Sinai por Moisés diretamente de Deus,

como símbolo da aliança sagrada entre Deus e o homem e constituem a fonte do

direito penal mosaico até os dias de hoje. O direito hebreu nasce com Moisés, após

a libertação do povo hebreu do Egito, onde eram escravos e viviam em estado de

total desorganização social e religiosa.

Não obstante a regra fosse o talião, existiam exceções, distinguindo-se

entre dolo e culpa34, e cedendo, em alguns casos, lugar para uma pena de caráter indenizatório, cuja finalidade era compensar a vítima.Esta característica fica clara em

algumas passagens do Antigo Testamento como, por exemplo:

Se dois homens travarem de razões, e um ferir o outro com pedra, ou punhada, e o ferido não morrer, mas ficar precisado a estar de cama; se depois ele se levanta, e anda por fora firmando-se no seu bordão: aquele, que o feriu, será dado por inocente; mas ficará obrigado a lhe pagar perdas e danos à medida do tempo que o ferido não pôde trabalhar, e a dar-lhe tudo o que ele despendeu com os médicos.35

Se alguém furtar um boi, ou uma ovelha, e os matar, ou vender, restituirá cinco bois por um boi, e quatro ovelhas por uma ovelha. Se um ladrão for achado arrombando a porta duma casa, ou escavando a parede para entrar, e sendo ferido, morreu da ferida: aquele, que o feriu, não será culpado da sua morte. Se ele matou o ladrão já de dia, cometeu homicídio, e será punido de morte. Se o ladrão não tiver por donde pagar o furto, será vendido. Se aquilo, que ele roubou, se achar ainda vivo em sua casa, quer seja boi, quer seja jumento, quer seja ovelha, restituirá em dobro.36

34

Bíblia Sagrada, Livro do Êxodo, 21, 12-13. Bíblia de Jerusalém. Tradução em língua portuguesa diretamente dos originais. São Paulo: Editora Paulus, 2002.

35

Bíblia Sagrada, Livro do Êxodo, 21, 18-19. Bíblia de Jerusalém. Tradução em língua portuguesa diretamente dos originais. São Paulo: Editora Paulus, 2002.

36

(29)

Percebe-se no texto sagrado do antigo testamento a evidente

preocupação com o ressarcimento da vítima indo além da simples punição do

(30)

1.2.4 Direito Romano

Em Roma ocorreu algo raro entre os povos da antiguidade consistente na

secularização do direito penal com a fundação da república.A fundação da

República (509 A.C.) é o marco da separação entre a religião e o Estado. A marca

da laicização do direito romano está na lei das XII Tábuas que, promulgada em

453-451 antes de Cristo, contém diversas disposições penais. Difere a legislação

tabulária daquelas já mencionadas porque não foi outorgada pelos deuses, ou seja,

não tem origem divina, tampouco fundamentam penas em face da ira dos deuses,

tampouco seu procedimento jurídico se consubstanciasse numa liturgia religiosa.

A lei das XII Tábuas limita a vingança privada, distingue os delitos

privados dos públicos, sendo os primeiros sempre sujeitos a penas patrimoniais,

visando à reparação da vítima, prevê a possibilidade da composição como forma de

evitar a vingança e determina a pena de talião. Essa última característica fica

evidente no inciso II da Tábua VII – Dei delitti:

Contra aquele que destruiu o membro de outrem e não transigiu com o mutilado, seja aplicada a pena de talião.37

A lei tabulária teve o grande mérito de estabelecer uma inédita e ao

menos formal igualdade social, excluindo do direito penal qualquer distinção de

classes sociais e de ordem religiosa, além de estabelecer proporcionalidade entre o

delito e a pena e a possibilidade da reparação pecuniária da vítima. Ressalta ainda

Heleno Cláudio Fragoso que, em alguns casos menos graves, a vítima era mesmo

compelida a aceitar a compensação financeira oferecida pelo culpado.38

A lei tabulária significou também o marco inicial da primazia que se

estabeleceria do direito escrito nos sistemas jurídicos de origem latina.

Diversas leis foram substituindo a lei XII Tábuas, dentre as quais se

destacam as leis Corneliae e Juliae. A repressão dos delitos privados dependia da

iniciativa do ofendido e era realizada por um tribunal civil com imposição da pena

37

CRETELLA, Junior José. Curso de direito romano. 10 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1986, pp. 43 e seguintes.

38

(31)

pecuniária. Ao Estado, representado pelo magistrado, cabia à repressão dos delitos

públicos. Os delitos privados eram considerados fonte de obrigação e ao particular

cabia sua persecução, regulada, porém, também pelo Estado. A indenização fixada

pelo magistrado e paga ao particular era chamada de damnum.

Para certos delitos, o montante da prestação indenizatória era fixado

previamente pelo Estado.39 Interessante à distinção que se fazia entre o furto e o roubo. O autor do furto só seria punido se a vítima o trouxesse a juízo, ao passo que

o assaltante ficava sujeito à persecução pública, em razão da perturbação que

causava à ordem pública e ao perigo comum gerado.

Para os delitos públicos as sanções previstas eram a morte ou o desterro,

relacionando-se a gravidade da pena com a gravidade da ofensa.

Já no período do baixo império entre 284 e 565 depois de Cristo, o direito

penal romano passa a assumir um papel de instrumento a serviço da manutenção e

do reconhecimento da autoridade do Estado. Nesse diapasão, notamos a forte

perseguição aos cristãos, que se recusavam a adorar o imperador, que possuía

caráter divino, a realizar sacrifícios e ainda ousavam em considerar todos os homens

iguais, fossem escravos ou patrícios, sendo todos filhos do mesmo pai.

Nesta fase, os interesses particulares não são mais tutelados

publicamente, tendo os delitos privados sido praticamente absorvidos pela nova

categoria dos delitos chamados de extraordinários, destacando-se, entre eles, várias

espécies de furtos, o estelionato, o rapto e o aborto, entretanto a composição do

dano da vítima com a compensação pecuniária nos delitos patrimoniais e em alguns

outros delitos fixados previamente pelo Estado sempre estiveram presentes no

ornamento romano.40

39

MOREIRA Alves, José Carlos. Direito Romano. 13 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001. 40

(32)

1.2.5 Antigo Direito Penal Germânico

O período entre os séculos V e X foi marcado por encontros e conflitos de

dois sistemas. Enquanto o direito romano decaía, com a própria decadência de

Roma, que terminaria conquistada, firmava-se o direito germânico, que se tornou a

base do direito feudal.

Não há como negar que a assunção do direito germânico substituindo em

grande parte o direito romano foi um retrocesso de grandes proporções, posto que

trazia de volta as práticas mágicas, a responsabilidade objetiva sem maiores apuros

técnicos já outrora conquistados pelo direito romano, mas no que tange

especificamente ao atendimento da vítima, este ordenamento buscou também a

reparação, ainda que por motivos religiosos e místicos.

O direito bárbaro era baseado na vingança de sangue e na noção da

perda da paz em face da prática criminosa. A paz era a ordem imperante no âmbito

de uma tríplice relação: casa, família e comunidade. O direito identificava-se com a

ordem, com a paz; daí ser o crime identificado como a quebra da paz. A pena

conhecida como perda da paz era, portanto, consequência inevitável do princípio de

talião: quem quebrasse a paz, merecia perder a paz.

Como sistema de direito propriamente houve um retrocesso em relação

ao direito romano, que era escrito e laico e trazia uma igualdade ao menos formal

das partes, mas, a vítima voltaria ao papel de protagonista neste sistema.

Daí a concepção individualista do direito germânico, pois o delito dava

início a uma relação entre delinquente e vítima. O instrumento para a punição não

era o povo ou o estado, mas apenas o ofendido ou, se fosse o caso, de seus

parentes. Assim, embora a comunidade não tomasse diretamente parte da resposta

ao crime, permitia a agressão da vítima ao autor do delito41.

À medida que foi se fortalecendo o poder estatal, esta concepção

individualista foi sendo gradativamente mitigada, até alcançar a composição

obrigatória (compositio) num evidente retorno aos ideais romanos. Nela, ao invés da

41

(33)

aplicação do talião, o agressor era obrigado a compensar o dano com uma quantia

em dinheiro, gado ou outros bens.

Louis Assier-Andrieu com fulcro em Tácito, historiador romano das tribos

bárbaras, assevera que as leis bárbaras nos primórdios da idade média são “tarifas

de composição” literalmente, pois havia listas com preços a serem pagos pelos

crimes cometidos. Tácito ainda relata que nelas se resgatava o homicida entregando

um certo número de cabeças de gado a família da vítima. A lei dos Burgúndios

estipulava que quem arrancasse os marcos de delimitação de um campo de plantio

teria uma de suas mãos cortadas, mas que o culpado poderia “resgatar a sua mão”

pagando a metade do que valia a sua própria pessoa. Já a lei lombarda preceituava

que um copista que alterasse uma escritura por ignorância seria condenado a pagar

pelo preço de sua própria pessoa para evitar a morte e que o homicídio era

resgatado em múltiplos do valor da vítima, sendo três vezes o valor entre os francos

e nove vezes o valor entre os alamanos.42

Evidente o caráter reparatório das penas mencionadas, ainda que se

argumente que possuíam discriminação em relação à posição social da vítima e do

agressor, o que influenciava de fato na definição do resgate a ser pago, ou mesmo

que tais medidas eram opções políticas a vingança de sangue desenfreada que se

instalara com o fim do império romano, não há como negar que as vítimas eram de

fato indenizadas evitando-se um problema de cunho social posterior ao delito.

Inobstante seja mesmo a composição a marca do direito germânico na

Alta Idade Média, existiam também outras penas, de caráter sacramental, impostas

aos delinquentes que afetavam a comunidade como um todo. Exemplos desses

delitos eram a traição e os delitos contra o culto. Observa-se, entretanto, que a

execução do criminoso não possuía caráter de pena, mas sim de sacrifício humano,

com grande conteúdo mágico e simbólico para toda a comunidade.

O predomínio do direito germânico estendeu-se até o final do século XI

em grande parte da Europa, ou seja, durante a Alta Idade Média. Algumas práticas

judiciárias desse período devem ser referidas pela forte marca que deixaram no

sistema penal.

42

(34)

Ainda nesta fase de vingança, os litígios eram resolvidos também na base

do jogo de provas. Não havia ninguém, nenhum representante do poder,

encarregado de formular as acusações contra o suposto autor de um dano. Quem se

apresentasse como vítima de um dano, ou algum familiar da vítima, deveria apontar

seu adversário e reclamar dele a reparação.

O procedimento era a ritualização da guerra particular entre os dois

contendores, que encontrou seu ápice com as ordálias ou duelos de Deus, mas

havia sempre a possibilidade de um acordo com fins a reparação, para impedir a

guerra ritualizada.

São vários os aspectos interessantes que merecem destaque neste

sistema judicial, dentre eles o fato de que não há qualquer preocupação com a

busca da verdade. O árbitro neste sistema não tem por função verificar quem tem

razão, mas apenas fazer observar o pacto estabelecido. A prova é a expressão de

força, o julgador reconhece o direito do mais forte.43

Ademais, o pagamento do preço do “resgate”, para fazer cessar a disputa,

apesar do nítido caráter indenizatório, tinha como foco principal ser uma forma do

“culpado” não pagar com seu próprio sangue pelo que supostamente causou à

vítima, sendo uma verdadeira “compra” do direito alheio de vingança.

As realização das provas, assim chamadas, não tinham como objetivo a

reconstituição dos fatos, mas sim verificar dentre os adversários quem possuía mais

força, mais peso e podiam ser de três ordens: testemunhais, em que as testemunhas

não depunham sobre os fatos, mas sobre a importância da pessoa, orais em que

cada um dos adversários tinha de recitar uma determinada fórmula corretamente

para vencer e, por último, as ordálias em que as partes combatiam até a morte.

Quanto a esta última espécie, eram provas de caráter mágico-religiosas. Como

exemplo, citamos o famoso exemplo de Michel Foucault quando foi realizada uma

prova no Império Carolíngio, no norte da França, onde o acusado de homicídio

deveria andar sobre fogo em brasa e, dois dias depois, se tivesse cicatrizes, seria

considerado culpado, pois Deus protegia sempre os inocentes.44

43

BRUNO, Aníbal. Direito penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1984. 44

(35)

1.2.6 Direito canônico

No período compreendido entre o fim do século IX e o século XIII, o direito

canônico constituiu se na principal fonte normativa escrita do mundo ocidental.

Inicialmente de ordem interna e com o objetivo de resolver apenas os

conflitos que surgissem entre os católicos, à jurisdição episcopal foi se afirmando e

conquistando espaço, a ponto de chegar a ser reconhecida oficialmente, a partir do

ano de 313, pelo Imperador Constantino. Com esse fortalecimento, a competência

da Igreja foi sendo alargada, até alcançar todas as infrações religiosas, mais as

matérias consideradas a elas conexas.

Os tribunais eclesiásticos atuavam em matéria penal, inicialmente, sob

provocação. O procedimento era o acusatório. Entretanto, a partir do final do século

XII, surgiu o processo oficioso, ordenado pelo juiz sempre que a prática de uma

infração chegasse a seu conhecimento por meio de qualquer pessoa. Passa então a

ser inquisitorial o procedimento, não tendo a vítima relevância alguma nele, sendo

mero meio de prova.

Com o direito canônico, a vingança de sangue do direito germânico foi

muito limitada, sendo ele uma das principais causas históricas da transmutação do

papel da vítima, que, de sujeito central do conflito penal, passa a ser vista sob um

enfoque utilitário. A vítima passou a servir apenas como um repositório de

informações na perseguição daquele que “pecava”.

O mecanismo que gerou tal afastamento da vítima não teve caminho de

volta. No fim da Idade Média o que se vê é o desenvolvimento dos Tribunais da

Inquisição. Os procedimentos dos Tribunais do Santo Ofício da Inquisição e a

adoção do método do inquérito, aproveitado pela justiça secular, confirmaram o

afastamento da vítima da solução do conflito penal. Confiscos e multas em favor do

estado passaram a ser importantes e cada vez mais comuns como medidas

penais.45

Sem entrar em maiores investigações referentes às Escolas Penais, no

iluminismo, cumpre apenas relembrar que a Escola Clássica e a Escola Positivista

45

(36)

centraram suas atenções, respectivamente, no crime e no criminoso, e a vítima não

ocupou, nelas, nenhum papel de destaque, sendo mero meio de prova.

A finalidade atribuída à pena pela Escola Clássica, dominada pela

influência iluminista, era, inicialmente, a prevenção do crime, evoluindo-se, mais

tarde, para uma metafísica jus naturalista, em que a pena assentou sua justificativa

na exigência ética da retribuição.46

Compreende-se, portanto, a ausência da preocupação com a vítima do

crime, na mediada em que o crime era essencialmente uma ofensa à ordem pública

e não a uma pessoa em especial.

Assim, nasce o conceito jurídico do delito, sem a necessidade de

referência à vítima, em seu maior ostracismo.

46

(37)

1.2.7 Estado Moderno

Com o fortalecimento das Monarquias e do Estado Moderno, a vítima foi

relegada, definitivamente a plano secundário. O direito penal passou a ser

considerando de ordem pública, sendo o crime visto como ofensa à boa ordem

social, cabendo ao soberano ou ao Estado reprimi-lo. Essa marginalização da vítima

deu-se em sincronia com a progressiva afirmação de que o direito penal e o

processual penal eram de interesse público.

Assim, o processo penal, fosse acusatório, inquisitório ou misto,

neutralizava a vítima, reduzindo seu papel a meio de prova. A relação jurídica que se

forma é entre juiz, réu e acusador. De regra, o acusador era um órgão do Estado,

despontando o Ministério Público como órgão encarregado de promover a ação

penal em quase todos os crimes.

Na França há a figura do Juiz em pé, ou seja, aquele que fica sob o

parquet’, referindo-se ao piso, de madeira envernizada da época, portanto daí

advém a figura do Juiz acusador que não tinha assento e mais tarde foi conhecido

como membro do ‘parquet’ ou promotor de justiça.

Até hoje há sistemas jurídicos, como o português que nomeia o órgão de

acusação não como promotores ou membros do ministério público, mas como

magistrados do ministério público em evidente identificação com o conceito Francês

do juiz em pé.

Importa, portanto, na administração da justiça penal, o interesse público e

não mais o privado, devendo a acusação ao acusado advir de um órgão marcado

pela imparcialidade e isento de paixões, voltado para a defesa da sociedade.

Observa-se, no que toca a este momento histórico, que enquanto

anteriormente o litígio era resolvido entre as partes, os métodos utilizados eram as

provas de força, os duelos verbais e as ordálias, no momento em que o

representante do ministério público substitui a vítima, aqueles métodos não mais

podem ser utilizados.

É preciso que se descubra outro método para alcançar a verdade e

(38)

eclesiásticos, a ‘inquisitio’. Foi esse o modelo inspirador do inquérito, método de

buscar a verdade, empregado para a reconstrução dos fatos sempre que o criminoso

não era flagrado no cometimento do crime.

Nessa evolução que tende a acabar com a justiça privada, fica bastante

restrito o papel da vítima que apenas pode acusar em um pequeno número de

casos, cabendo-lhe, nos demais, somente noticiar o fato e testemunhá-lo perante o

tribunal.

Chega-se, então, àquilo que parte da doutrina denomina de período de

ostracismo da vítima, quando ela ocupa posição periférica no sistema penal,

limitando-se a servir na produção da prova.

Três dispositivos do Código Penal pátrio ilustram bem o ponto a que

chegou a evolução desta concepção. Trata-se, a título de exemplo, do artigo 25, que

prevê a hipótese em que à vítima é lícito reagir por si, a uma agressão injusta;

regulando e delimitando a legitima defesa, nos seguintes termos:

Artigo 25 – Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. (Redação dada pela Lei nº 7.209 , de 11.7.1984).47

No mesmo sentido restritivo da atuação da vítima, temos o artigo 100, que

estabelece a excepcionalidade da ação promovida pelo ofendido nos seguintes

termos:

Artigo 100 – A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido. (Redação dada pela Lei nº 7.209 , de 11.7.1984).

§ 1º – A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça. (Redação dada pela Lei nº 7.209 , de 11.7.1984).

§ 2º – A ação de iniciativa privada é promovida mediante queixa do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo. (Redação dada pela Lei nº 7.209 , de 11.7.1984).48

47

Código Penal Brasileiro, artigo 25. 48

(39)

Também fazem parte do regramento da atuação da vítima os artigos 19 e

24 ambos do Código de Processo Penal, nos seguintes termos:

Artigo 19. Nos crimes em que não couber ação pública, os autos do inquérito serão remetidos ao juízo competente, onde aguardarão a iniciativa do ofendido ou de seu representante legal, ou serão entregues ao requerente, se o pedir, mediante traslado.

Artigo 24. Nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, mas dependerá, quando a lei o exigir, de requisição do Ministro da Justiça, ou de representação do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo.

Parágrafo único. No caso de morte do ofendido ou quando declarado ausente por decisão judicial, o direito de representação passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.

§ 1º No caso de morte do ofendido ou quando declarado ausente por decisão judicial, o direito de representação passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão. (Parágrafo único renumerado pela Lei nº 8.699 , de 27.8.1993).49

No mesmo sentido de regrar e limitar a atuação da vítima, ainda mais

paradigmático temos o artigo 345 do Código Penal, que estabelece o crime de

exercício arbitrário das próprias razões para aquele que faz justiça pelas próprias

mãos, nos seguintes termos:

Artigo 345 – Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite:

Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.

Parágrafo único – Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.50

Essa criminalização da atuação da vítima quando venha a agir ainda que

tenha razão, hoje, demonstra da forma mais cabal a referida evolução.51

49

Código de Processo Penal. Artigos 19 e 24. 50

(40)

1.3. Tendências de revalorização da vítima na legislação

A Constituição Federal brasileira de 1988, em seu artigo 245, ordena o

amparo aos herdeiros e familiares das vítimas de crimes dolosos, sendo este o

primeiro comando constitucional específico voltado para as vítimas de criminalidade,

desse artigo se originaram diversas iniciativas legislativas e medidas do poder

executivo, incluindo as próprias reformas do Código de Processo Penal.

O referido preceito será objeto de pormenorizado estudo mais adiante,

porém insta salientar alguns efeitos de sua prolação na legislação

infraconstitucional.

Nota-se, em face da longa caminhada da humanidade no que concerne à

humanização das penas, um afastamento gradativo da pessoa da vítima,

inicialmente pelo desejo de afastar-se a ideia de vingança. Com a feição pública e

impessoal do processo gerou-se uma despreocupação estatal com as vítimas dos

delitos de modo geral, entretanto a doutrina vem preconizando o atendimento às

vítimas da criminalidade, do abuso de poder, da violência de modo amplo.

Do imenso sofrimento deixado pela segunda guerra mundial propriamente

surge com maior ênfase na revalorização das vítimas, a própria ciência chamada

vitimologia, surgida do martírio do povo judeu nos campos de concentração de Adolf

Hitler, sendo reconhecido como fundador da doutrina vitimológica o advogado

israelita Binyamin Mendelsohn, professor emérito da universidade Hebraica de

Jerusalém, tendo como marco inicial histórico, sua conferência proferida na

universidade de Bucarest, em 1947, com o tema “Um Horizonte Novo na Ciência

Biopsicossocial: A Vitimologia”.52

A partir desse evento, com o desenvolvimento dos estudos da vitimologia

e com a participação dos organismos internacionais do pós-guerra, podemos dizer

que a surge o impulso maior na direção da revalorização da vítima na sociedades

democráticas ocidentais.

51

OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A vítima e o direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, pp. 32-33.

52

(41)

Entretanto, vale lembrar que historicamente a reparação do dano

decorrente de crime já esteve mais presente no Direito Brasileiro e foi

gradativamente perdendo seu espaço nas legislações mais contemporâneas.

Inicialmente, citando o Código Criminal do Império, temos em seu artigo

21, onde se ordenava peremptoriamente que o delinquente satisfará o dano que

causar com o delito. O artigo 22, por sua vez, previa que “a satisfação será sempre a

mais completa possível”. Note-se que em seu parágrafo único o referido artigo 22

discorria sobre a necessidade de instrução para aquilatar-se o dano causado à

pessoa e bens do ofendido nos seguintes termos:

Para este fim o mal que resultar à pessoa e bens do ofendido será avaliado em todas as suas partes e consequências.53

A Lei nº 261, de 3.12.1841, por sua vez, que reformou o código criminal

do império, revogou estes dispositivos, estabelecendo uma distinção clara entre a

matéria de jurisdição criminal da jurisdição civil, remetendo a indenização para ser

discutida no Juízo cível54. É interessante notar que este dispositivo legal, com pouca alteração, foi implantado no Código Civil Brasileiro de 1916, em seu artigo 1.525 e

ratificado no artigo 935 do novo código de 2002, vigente.55

O Código Penal brasileiro de 1890 não alterou a sistemática, pois, em seu

artigo 69, alínea b, onde fixava a obrigação de indenizar o dano, como um dos

efeitos da condenação com trânsito em julgado, mas não estabelecia qualquer

instrução do feito no sentido de efetivamente apurar-se o dano em Juízo, como no

vetusto Código Criminal do Império que determinava em seu artigo 22 anteriormente

citado.

A partir do novo Código Penal de 1940, as legislações se sucedem

afastado sempre a presença da vítima no que tange à indenização, preconizando, a

rigor, desde a reforma de 1841 a busca da jurisdição cível para a reparação do

53

PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil, evolução histórica. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 240.

54

Art. 68. A indenização em todos os casos será pedida por ação cível, ficando revogado o art. 31 do Código Criminal, e o § 5º do art. 269 do Código do Processo. Não se poderá, porém, questionar mais sobre a existência do fato, e sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no crime. Idem obra citada.

55

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