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INJUNÇÕES DA ALEGORIA NA ARTE CONTEMPORÂNEA

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Academic year: 2019

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DEBORAH ALICE BRUEL GEMIN

| CAETANO DE ALMEIDA |

INJUNÇÕES DA ALEGORIA NA ARTE CONTEMPORÂNEA

FLORIANÓPOLIS SC

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC

CENTRO DE ARTES – CEART

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS

DEBORAH ALICE BRUEL GEMIN

CAETANO DE ALMEIDA

INJUNÇÕES DA ALEGORIA NA ARTE CONTEMPORÂNEA

Dissertação de Mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do CEART/UDESC, para obtenção

do título de Mestre em Artes Visuais.

Orientador: Drª Rosangela Miranda Cherem

FLORIANOPOLIS SC

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DEBORAH ALICE BRUEL GEMIN

CAETANO DE ALMEIDA

INJUNÇÕES DA ALEGORIA NA ARTE CONTEMPORÂNEA

Dissertação de Mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do CEART/ UDESC, para obtenção do título de Mestre em Artes Visuais, na linha de pesquisa de Teoria e História da Arte.

Banca examinadora:

Orientador: ___________________________________________________ Profª. Drª. Rosangela Miranda Cherem

CEART/UDESC

Membro: ____________________________________________________ Profª. Drª. Dária Goreti Jaremtchuk

EACH/USP

Membro: _____________________________________________________ Profª. Drª. Teresinha Sueli Franz

CEART/UDESC

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| AGRADECIMENTOS |

Agradeço em especial à professora Rosangela Cherem, a quem devo a erudita orientação, o acompanhamento sério e generoso, dando-me autonomia e liberdade.

Reconheço a importância das questões levantadas pela banca de qualificação. Sou grata a Dária Jaremtchuk por suas importantes sugestões, e pelo incentivo desde o início desta trajetória. Agradeço a Teresinha Franz pelas respeitáveis considerações.

Agradeço ao Caetano de Almeida pela generosidade e acesso às suas obras.

Não posso deixar de mencionar a importância do corpo docente do PPGAV – UDESC, para o amadurecimento da pesquisa.

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Agradeço em especial aos amigos que me incentivaram indicando caminhos. A Fabio Noronha e Juliana Gisi pelo constante estímulo e interlocuções. Ao Atila Regiani pelas infinitas e interessantes conversas. A Marisa Weber por sua sensibilidade e sincera amizade.

Sou muito grata aos amigos e familiares que possibilitaram a realização deste projeto. Agradeço a Jeane e Aurêa por sua generosidade e apoio. Aos amigos Ana Paula, Zé e Chico pela afetuosa acolhida.

Agradeço as amigas de todas as horas Patrícia, Letícia e Rosangela, por seus ouvidos alugados por tanto tempo. A Camilla e Marice pela amizade construída nas estradas desta jornada. E a todos aqueles que me ajudaram, por estarem sempre por perto: Beto, Aline, Assis, Maria Rita, Stephanie, Paulo, Carol, Cris, Maria Bernadete, Vanessa, Luana, Alice, Patrícia, Sônia e Lu.

Agradeço ao querido Hector por nutrir meu corpo e meu coração com tanto desprendimento e serenidade.

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|RESUMO|

O reaparecimento do debate sobre a alegoria na arte contemporânea pode ser encarado como retorno de uma questão recalcada, que embora já anunciada por Walter Benjamin, desde então pouco avançou. Neste sentido, a produção artística de Caetano de Almeida, colocada em diálogo com trabalhos de outros artistas e textos teóricos, permite que se retome uma problemática pertinente à História, Teoria e Crítica de arte, atualizando-a, especialmente no que se refere à natureza da imagem e sua relação com a temporalidade. No sentido mais convencional, uma definição de alegoria advém tanto da filosofia de Platão como da literatura, sendo considerada como uma figura de linguagem onde é possível dizer uma coisa através da outra. Na arte, trata-se de uma noção, atributo ou possibilidade da obra dizer outra coisa para além dela mesma, ou seja, a alegoria comparece como recurso destinado a ultrapassar o que apresenta como mais visível ou imediato. Problematizar este conceito para além de uma mera definição, constitui-se num modo de abordar a imagem artística não somente como aquilo que é olhado, mas também como algo que olha e faz pensar para além de sua visibilidade evidente. Trata-se menos de propor axiomas e mais de discutir suas reverberações e rebatimentos, especialmente considerando três aspectos: a anacronia, a duplicação e a visualidade. O primeiro discute a montagem como procedimento presente nos trabalhos da série Mundo Plano, considerando as ações de fragmentação e justaposição, bem como possibilitando a ressignificação e constituição de uma cartografia anacrônica da história da pintura moderna. O segundo aspecto propõe a duplicação como uma operação que revela a diferença presente nas séries As Madames e Exposição de Quadros, sendo que ambas têm como ponto de partida a apropriação de imagens da história da arte, as quais afirmando a reduplicação colocam em xeque os princípios valorativos da originalidade contrapostos aos da repetição como diferença. No último aspecto, discute-se a carne da pintura, ou seja, a própria constituição da visualidade artística como uma alegoria. Têm-se então os vestígios da busca do artista desvelada sob a superfície pictórica, questão presente na exposição Borda, assim como nos trabalhos de Adriana Varejão, Nuno Ramos e Dudi Maia Rosa. Estes três aspectos permitem considerar que a obra fala nos seus próprios termos, sendo portanto, criação de um mundo que aponta sempre em duas direções, onde a alegoria possibilita a fala, tanto para um dentro a partir de um fora, como de um interior lançado para além de seus limites.

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| ABSTRACT |

The reappearing of the debate about allegory in the contemporary art may be faced as the return of a reiterated question, although already announced by Walter Benjamin, since then little advanced. In this sense, the artistic production of Caetano de Almeida, in dialogue with other artists` works and theoretical texts, allows that a problematic pertinent to Art History, Theory and Critics, modernizing it, especially in what refers to the nature of image in its relation to temporality. In the more conventional way, a definition of allegory comes such from the philosophy of Plato as from literature, being considered as a figure of speech where is possible to say one thing through another. In art, this is about a notion, attribute or possibility of the work to say another thing to beyond itself, it means, the allegory appears as a resource destined to surpass what presents as the most visible or immediate. To problematize this concept to beyond a simple definition is constituted in a way of approaching the artistic image, not only as what is looked, but also as something that looks and makes to think beyond its evident visibility. This about less proposing axioms and more discussing its reverberations and rebuts, especially considering three aspects: the anachrony, the duplication and the visuality. The first one discusses the assembly as procedure present in the works of the series Mundo Plano, considering the actions of fragmentation and juxtaposition, as well as allowing the resignification and constitution of an anachronical cartography of the modern painting history. The second aspect proposes the duplication as an operation that reveals the difference present in the series As Madames and Exposição de Quadros, in which both have as starting point the appropriation of images of the art history, which affirming the reduplication bounce the appraised principles of originality opposed to the ones of repetition as difference. In the last aspect, it is discussed the meat of the painting, it means, the very own constitution of the artistic visuality as an allegory. There are then the vestiges of the artist’s search unveiled under the pictorial surface, present question in the exposition Borda, as well as in Adriana Varejão, Nuno Ramos and Dudi Maia Rosa’s works. These three aspects allow considering that the work speaks in its own terms, being therefore, creation of a world that points always in two directions, where the allegory allows the speech, such as to an inside from an outside, as from an interior launched to beyond its limits.

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| LISTA DE ILUSTRAÇÕES |

fig. 1 | Caetano de Almeida, Anfitrite da série Mundo Plano, 2001.____________ 29 fig. 2 | Caetano de Almeida, Sala dos Espelhos da série Mundo Plano, 2003. ___ 32 fig. 3 | Kurt Schwitters, Merz Picture 32A (Cherry Picture). 1921 _____________ 38 fig. 4 | John Heartfield, The Meaning of the Hitler Salute: Little man asks for big

gifts. Motto: Millions Stand Behind Me! 1932. _______________________ 39 fig. 5 | Vik Muniz, Jorge da série Retratos de Revista, 2003. ________________ 42 fig. 6 | Vik Muniz, sem título da série Pictures of Dust, 2000. ________________ 44 fig. 7 | Caetano de Almeida, As Madames, 1999._________________________ 50 fig. 8 | Jean-Marc Nattier, Madame Louise-Elisabeth, 1751._________________ 51 fig. 9 | Caetano de Almeida, Madame Louise-Elisabeth Duchesse de Parme

(Madame L'Infante), La Terre, da série As Madames, 2000. ____________ 51 fig. 10 | Jean-Marc Nattier, Madame Marie-Louise-Thérèse-Victoire de France

1751._______________________________________________________ 55 fig. 11 | Caetano de Almeida, Madame Marie-Louise-Thérèse-Victoire de France,

L'Eau, 1999. _________________________________________________ 55 fig. 12 | Jean-Marc Nattier, Madame Anne Henriette de France,1751._________ 56 fig. 13 | Caetano de Almeida, Madame Anne-Henriette de France, Le Feu 1999. 56 fig. 14 | Walker Evans Hale County - Alabama, 1936.(esquerda) / Sherrie Levine

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fig. 16 | Caetano de Almeida, Madame Marie Adelaide de France, L Air, da série As Madames, 1999. ______________________________________________ 59 fig. 17 | Honoré Fragonard, O progresso do amor: perseguição, 1771-73.______ 61 fig. 18 | Gerhard Richter, Tote (morta), da série 18 Oktober, 1988. ___________ 63 fig. 19 | Caetano de Almeida, Frutas (detalhe), da série Exposição de Quadros,

1997._______________________________________________________ 64 fig. 20 | Pablo Chiuminatto, Biblioteca do artista, 2006. ____________________ 66 fig. 21 | Pablo Chiuminatto, sem título, 2006. ____________________________66 fig. 22 | Caetano de Almeida, Retratos das crianças de Eduard Holden Cruttenden

da série Exposição de Quadros, 1996. ______________________________70 fig. 23 | Caetano de Almeida, Frutas da série Exposição de quadros, 1999. ____ 71 fig. 24 | Vik Muniz, Still life with lemons, oranges and a cup of water, after Francisco

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| Sumário |

| Introdução | ____________________________________________________ 11

| Capítulo I | _____________________________________________________ 20 A montagem ou a alegoria como procedimento de criação e pensamento

1 | Walter Benjamin e a alegoria como possibilidade no re-pensar a história 21 2 | Caetano de Almeida e a alegoria como procedimento pictórico_______ 27 3 | A arte contemporânea e o recurso da alegoria____________________ 33 4 | Montagem contemporânea ou alegoria do pensamento pictórico______ 41

| Capítulo II |_____________________________________________________ 46 O duplo ou a alegoria do procedimento que re-vela a diferença

1 | A re-apresentação da diferença na repetição_____________________ 47 2 | A série As Madames e a duplicação como re-velação da obra _______ 53 3 | Exposição de Quadros e o duplo sem original ____________________ 64

| Capítulo III |____________________________________________________ 76 A carne da pintura ou a alegoria da arte desvelada sob a superfície da pele da pintura

1 | A constituição da pintura: o paradoxo de jamais ser o que alega______ 77 2 | Pintura moderna: autotelia como discussão da carne da pintura______ 86 3 | A exposição Borda: desfazendo a trama para revelar a carne________ 93 4 | O campo expandido e sua relação com o outro ___________________ 98

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| Introdução |

É que existe, talvez uma invisibilidade que é ainda uma maneira de deixar-se ver, e uma outra que se afasta de todo o visível e de todo o invisível. Maurice Blanchot

A arte apresenta imagens, objetos, pensamentos e mundos criados e re-descobertos à maneira do artista, inventando e propondo desdobramentos da realidade por meios que lhes são próprios e problematizando questões que parecem se repetir no decorrer da história. Como se as inquietações ou o que interessa ser discutido, ou ainda, aquilo que não se pode realmente acessar e responder, fosse sempre o mesmo objeto de impulso criativo. Assim, o artista, através de seu processo de trabalho re-apresenta e re-configura a matéria artística, num sistema aberto, onde não existe início e fim, onde o novo é sempre uma re-construção, não se trata da volta do idêntico mas do que se faz diverso, tal como a diferença e repetição de Deleuze que estabelecem o desvio no retorno.1 O retorno que acontece no rasgo atemporal que se abre a partir da imagem, na cintilação de sua potência como obra. E, o artista opera re-criando mundos, na busca desse movimento, ou seja, cria porque esquece, sendo que o retorno do recalque não se dá pelo idêntico nem pela generalização, mas pelo que volta como deslocamento e lapso.

A alegoria ressurge, portanto, como uma necessidade posto que possibilita falar uma coisa através de outra, então, o que pode ser descrito de acordo com as técnicas, os modos e os processos estabelecidos, passa a ocultar-se por trás dos véus da alegoria, para assim se tornar mais visível. Ela tornou-se inevitável nos tempos atuais, pois para alcançar as complexidades vividas talvez seja preciso pensá-las de outro modo. Pressuposto que funciona como um gatilho para o estudo que segue, por entender que à arte cabe sempre a alegação de um outro. Desta forma propõe-se uma abordagem alargada deste conceito, que permita tangenciar as questões contemporâneas, que vão além das postulações tradicionais da alegoria, e ultrapassam as discussões formais dos processos artísticos, considerando a imagem como limite que não se fecha em si, mas aponta

1 DELEUZE, 1988.

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aquém e para além de si. Portanto, problematizar a alegoria constitui-se num modo de abordar a imagem artística não como aquilo que é olhado, mas considerando que ela também olha e faz pensar, e isso diz respeito à sua vocação essencial2 para além de sua visibilidade evidente. Assim, questões se colocam: como a arte contemporânea opera para dizer o outro? O que se pode considerar como alegoria, ou seja, o que vem a ser na atualidade aquilo que a obra alega?

Alegoria um conceito, um rótulo, um assunto, que desde a antiguidade vem sendo usado, discutido, codificado, e como todo conceito até mesmo esquecido ou rechaçado em outros momentos. A definição de alegoria advém da filosofia de Platão, e também da literatura, como uma figura de linguagem onde é possível dizer uma coisa através da outra, encontrando-se muito próxima do sentido de metáfora. Enfim, trata-se de uma noção, atributo ou possibilidade da obra de arte em dizer outra coisa além dela mesma, de ultrapassar o que apresenta como visível. Uma potência de arremesso para além da imagem explorada pelos artistas, através da mescla de linguagens, materiais, técnicas e procedimentos. Capacidade problematizada por Caetano de Almeida, artista cujos trabalhos permitem reconhecer possíveis presenças da alegoria na arte contemporânea, por dirigirem-se a questões caras à arte moderna e contemporânea, como originalidade, duplicação e visualidade.

Este estudo foi realizado levando em consideração as reflexões de Didi-Huberman, para quem uma investigação teórica sobre imagens não deve apresentar axiomas, mas sim refletir sobre os aspectos heurísticos da experiência, quer dizer, por em dúvida as evidências do método quando se multiplicam as exceções, os sintomas, os casos que deveriam ser ilegítimos e que sempre demonstram ser fecundos.3 Neste sentido esta pesquisa apóia-se em reflexões e análises das obras de Caetano de Almeida, propondo inter-relações entre as mesmas e analogias com os textos teóricos sobre a alegoria em arte. Acrescentando diálogos com obras de outros artistas que contribuem para a discussão, ora por apresentarem semelhanças em relação aos procedimentos, como nos trabalhos de Vik Muniz; ora por apresentarem diferenças como é o caso de Adriana Varejão e Nuno Ramos, cujos processos são divergentes entre si e em relação a Caetano de Almeida. Todavia trata-se de repertórios que enriquecem a

2 DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 87.

3 Id, 2006, p.26-27.

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pesquisa, pois alargam as possibilidades do raciocínio. Foram também incluídas conexões com obras de tempos distintos da história da arte, como as colagens dadás de Kurt Schwitters, cujo procedimento de montagem revela forte indício alegórico, num momento onde o conceito de alegoria não tinha espaço dentre digressões teóricas. Sendo assim, a partir de certas aproximações empáticas, trata-se de uma pesquisa caracterizada pela análise dos processos empregados por Caetano de Almeida, encontrando reverberações em outras obras de arte, apoiando-se nos escritos de Walter Benjamin, importante teórico que tem servido de base a historiadores e teóricos da arte para abordar o conceito da alegoria desde a modernidade4, e aproximando-se de certas noções operatórias contidas no pensamento de Gilles Deleuze, Rosalind Krauss e George Didi-Huberman.

Caetano de Almeida demonstra em seus trabalhos uma preocupação com a imagem da arte, em discutir seu poder de cintilação e acesso, de que maneiras ela tem sido apresentada na história da arte e como suas recepção e distribuição têm sido exploradas pelos meios culturais. Portanto, seus trabalhos permitem pensar a alegoria como a potência da imagem em não convergir e nem divergir, mas tangenciar a contemporaneidade. Por suas características, a alegoria, destrói o conceito de originalidade e unicidade do trabalho de arte, porque permite e trabalha com o impostor, com aquele que se passa por, que se disfarça de diverso para continuar. Esse caráter de impostura, de aproximação pela distância é o que atualiza sua contemporaneidade, possibilitando relações anacrônicas, fragmentadas e justapostas.

Em relação às imagens de uma maneira geral, sejam elas artísticas ou não, a alegoria pode se configurar de maneiras distintas. Quando a imagem é representação, o outro da imagem é o referente, ela remete a um outro que está ausente, mas que se faz presente por esta aparição, que o representa pelas suas características físicas. E, nisto consiste o potencial alegórico da fotografia. O mesmo ocorre em outros processos que circundam a produção artística, como curadorias e edições curatoriais para livros, catálogos e impressos. Porém, esta alegação do ausente por uma figuração dele mesmo, não é da mesma ordem ontológica da alegoria presente numa obra de arte.

4 Existem outras leituras alegóricas e usos da alegoria possíveis para trabalhos artísticos, é preciso

esclarecer que a alegoria é uma das alternativas para se pensar a arte contemporânea. Este estudo não pretende apontá-la como única possibilidade ou como aquilo que figura entra as mais novas descobertas da teoria da arte contemporânea.

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A alegoria entendida de maneira clássica e histórica, situa-se num tempo onde a arte almejava o sublime e o transcendente via cenas históricas, religiosas e mitológicas. Esta configuração alegórica servia-se do poder de representação legado à imagem. O que seria evitado enfaticamente pelas vanguardas modernas. No entanto, baseando-se nos escritos de Walter Benjamin sobre o impulso alegórico, constata-se que este passa a ser reconhecido nos procedimentos e processos artísticos, os quais dão características alegóricas às obras de arte modernas e contemporâneas. Ou seja, as maneiras de construção do trabalho de arte, tornam-se juntamente com sua visualidade, fundadoras de significado.

Nos trabalhos conceituais, o outro é o conceito da obra, é aquilo que ela indica a partir de sua constituição, nas relações que estabelece intrinsecamente, para dentro de si, ou externamente, com o mundo alheio ao meio artístico. Onde o contexto completa o seu existir, como o urinol de Duchamp, cuja história e conjuntura são imprescindíveis para se chegar ao outro5, ou seja, aquilo que a obra alega. Porém, na presente pesquisa, ao contexto será dada pouca importância, não por considerá-lo irrelevante, mas porque este estudo pretende pensar a alegoria a partir das estruturas e procedimentos dos trabalhos de arte. Isto significa, pensá-la através dos processos que engendram a obra, pelas relações que propõe, abrindo-se para tempos distintos e contextos diversos. Sendo assim, encontra-se em Caetano de Almeida, uma produção artística que postula preocupações dessa ordem. Seus trabalhos propõem questões que apontam possibilidades de entendimento da alegoria na arte contemporânea, porque vão além da sua identificação nos procedimentos alegóricos, suscitando um pensamento sobre a imagem, para antes e depois de seu tempo, para aquém e além de sua aparência figural, para fora e para dentro de seu corpo pictórico.

Algumas séries de trabalhos de Caetano de Almeida revelam características e procedimentos que possibilitam pontuar a alegoria na arte contemporânea a partir de três eixos: a anacronia, aparente nos procedimentos de montagem como alegoria do pensamento; a duplicação, presente nas citações e

5 O outro é aquilo a que a obra remete, o querer dizer da obra. Não se caracteriza por algo

inalcançável, nem tem um caráter de transcendência ou essência, mesmo porque esse caráter mítico ou religioso ficou suprimido desde a arte moderna. A escolha deste termo se dá justamente

pela própria indefinição que seu significado confere. Outro pode ser alguém, algo, coisa, ser ou

idéia, portanto é próprio para a indicação das possibilidades de fruição do objeto artístico.

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cópias, como alegoria do duplo; e a configuração do corpo, revelada na constituição da matéria pictórica, como a alegoria da carne.

Essa tríade da alegoria é pertinente à definição dos níveis de leitura de Orígenes6, um erudito da igreja antiga, que definiu três níveis de leitura para as

escrituras, que se referiam à capacidade de compreensão: o literal, o moral e o alegórico ou místico. Naquele período somente os mais preparados espiritualmente chegariam ao último nível, ou seja, o alegórico. Para justificar essa classificação Orígenes recorre a uma metáfora: o sentido literal corresponde ao corpo, o sentido moral à alma, e o sentido místico ou alegórico ao espírito da escrita, pois a escrita é composta pelos mesmos elementos que o ser humano: corpo, alma e espírito. O corpo é o literal, ou seja, a aparência, a superfície, a pele, o que podemos ver; para a arte é o corpo do trabalho que contém as operações do artista e que configura sua superfície. A alma é a subjetividade, a narrativa, o sentido do discurso empregado, que na arte se revela nos procedimentos e processos usados pelo artista. E o espírito, que é a transcendência no sentido religioso, na arte é a potência de reverberação, aquilo que se tenta definir em conceitos, mas que sempre escapa ao limitado recurso teórico e lingüístico, pois só a obra é capaz de dizer per si e em si 7; é portanto, o que torna a imagem obra, o que faz o objeto pertencer à ordem do extraordinário.

Porém, a relação aqui estabelecida entre esses níveis de leitura das escrituras e as três maneiras de pensar a alegoria se dá pelo entendimento de que assim como as escrituras se referem ao sublime, aos mistérios da fé e foram escritas para se dizer o Outro, aquele que não pode ser tocado e nem visto no plano real mas que o transcende, o outro ao qual a arte se refere, historicamente pertenceu ao sublime, já foi chamado de aura, e é aquilo pelo qual, artistas e teóricos ainda se debruçam em suas buscas, questionamentos e discussões. No entanto, diferentemente dos níveis de leitura de Orígenes, que se referem a uma codificação e leitura verdadeira das Escrituras, na tríade da alegoria proposta neste estudo, não existe nenhuma valoração ou hierarquia entre os eixos abordados, pode-se entendê-los como categorias e não como níveis, posto que não se referem

6 Orígenes (185 –253 d.C.), escritor cristão e teólogo que estudou as escrituras bíblicas e seus

significados morais, éticos e religiosos, definindo níveis de apreensão e entendimento dos ensinamentos da Bíblia de acordo com a capacidade de interpretação destes escritos. In:GAGNEBIN, 1994, p. 38.

7 PONTY, 2007, p. 133.

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à leitura ou entendimento do texto poético, mas a diferentes possibilidades de abordagem da presença alegórica na arte, quer pelo ponto de vista teórico-metodológico, quer na relação entre poética e forma, história e crítica. Portanto, numa possível aproximação entre a arte e os níveis de leitura de Orígenes, propõe-se que o propõe-sentido literal propõe-se refere à alegoria da carne como a matéria, o corpo do trabalho e a sua visualidade sendo objetos do pensamento plástico. O sentido moral à alegoria do duplo e que se dirige à representação e ao entendimento de imagem construída. O sentido alegórico ou místico relacionado à alegoria como pensamento, relativo à dimensão discursiva do pensamento plástico e que acontece na relação estabelecida pelo recurso narrativo ou processual.

A alegoria do pensamento apresentada no primeiro capítulo, discute a montagem, que para Benjamin é o emblema da alegoria por agregar todas as suas características, tornando-se o procedimento contemporâneo por excelência8. Sua utilização permite a junção de tempos distintos, renovando percepções e propondo novas relações entre presente e passado. É possivelmente isto que faz Caetano de Almeida na série Mundo Plano, executada entre os anos de 2000 e 2003, suscitando a discussão da montagem como o que remete ao conceito da obra pelo seu poder de cintilação anacrônica, propondo um olhar distinto sobre a pintura abstrata do século XX e seu conceito de planaridade.

Para dialogar com estes trabalhos deste artista, aponta-se outra via de montagem na arte contemporânea, como a série Retratos de Revista de Vik Muniz, trabalhos cuja fatura congrega fragmentação, justaposição e montagem. Embora sua produção seja fotográfica, este artista utiliza processos plásticos como desenho e pintura, sobrepondo camadas de técnicas e procedimentos. Caracterizando a montagem como um procedimento genuinamente alegórico da anacronia contemporânea.

Ainda no primeiro capítulo é feito um apanhado da tipologia histórica da alegoria. Tendo sua origem na linguagem a alegoria aparece como gênero da arte desde o séc XIII, porém seu conceito sofre transformações na arte moderna e contemporânea, que se baseiam nos estudos de Benjamin sobre o impulso alegórico. Esta análise das modificações da alegoria no decorrer da história faz-se necessária para tornar evidente a abordagem sobre a alegoria que se propõe neste

8 BENJAMIN, 1984.

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estudo, e como esta pode servir de indicativo dum modus operandi contemporâneo.

O capítulo seguinte trata da alegoria do duplo: a imagem como re-apresentação, discutida em dois momentos da produção artística de Caetano de Almeida. Na série As Madames de 1999, réplicas de pinturas do século XVIII, Caetano de Almeida discute a re-apresentação e a instituição do gosto e da identidade da pintura na contemporaneidade, e problematiza a duplicação da imagem, pela sua força em dizer o outro, seu potencial alegórico. Essa operação de retorno e repetição encontra eco no discurso de Gilles Deleuze em Diferença e Repetição, como aquele que retorna como recalque, porém sempre diferente. Aqui a interlocução é feita com Gehard Richter, artista cuja obra está pautada na operação de pintura da pintura, de duplicação da imagem, e ajuda a pensar a duplicação por um viés bastante conceitual.

Este conceito se encontra também nos trabalhos da série Exposição de Quadros de Caetano de Almeida que consistem em pinturas que simulam reproduções de pinturas exemplares da história da arte. A operação que imita a técnica de impressão nas retículas aparentes, propõe a questão da réplica sem original, encontrada nas discussões sobre o mito da originalidade das vanguardas de Rosalind Krauss9. Novamente os trabalhos de Vik Muniz, servem para uma

relativização do processo de duplicação, para pensar o original e o duplo como diferenças, e enfatizar as questões de percepção sobre a construção das imagens da arte.

A alegoria da carne como matéria e espírito da pintura será argumentada no terceiro e último capítulo. A carne entendida como a constituição do corpo da pintura a partir dos trabalhos de Adriana Varejão e Nuno Ramos, que discutem a materialidade da arte estruturando um corpo para a pintura, utilizando cada um, procedimentos diferentes. A alegoria pensada não apenas como procedimento, mas como corpo da arte, como aquilo que funda o fazer artístico. Retoma-se a discussão sobre a constituição da pintura moderna, das questões da auto-referência e da presença alegórica num período onde este conceito foi ignorado por seus teóricos. E propõe-se a autotelia como um significativo exemplo da

9 Um dos principais exemplos usados por Rosalind Krauss para argumentar a falácia da

originalidade das vanguardas é aatitude de Rodin em autorizar a produção em bronze a partir das

peças em gesso legadas por ele ao Estado francês atitude que coloca em cheque a noção de originalidade. In: KRAUSS, 1996, p.165-175.

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discussão da carne da pintura. A essa problemática soma-se o trabalho de Dudi Maia Rosa, artista contemporâneo que reconstrói alegoricamente o corpo da pintura em seus trabalhos, por uma acumulação de camadas, que começam pela superfície/pele pictórica e migram para dentro do chassi/corpo.

O corpo da pintura que se estabelece na trama como carne e na superfície como pele, configura a exposição Borda de Caetano de Almeida como uma alegoria da pintura, que remete às questões da superfície pictórica cujas dobras e rasgos convidam ao atravessamento do olhar, para que este enxergue seu verdadeiro corpo. Tendo como interlocutor o livro La Pintura Encarnada de Didi-Huberman, que propõe a superfície da pintura como a pele que contém seu corpo, e enfim, o corpo da arte, vislumbra-se nestes trabalhos de Borda uma vocação alegórica que perpassa seus procedimentos e se instala além da trama, e neste jogo da mirada revela que existem sempre dois caminhos, um, do olhar que observa, rasga a pele e ao expor a carne revela o corpo, o outro da mirada que volta das entranhas do trabalho, que se abre para além do visível.

Este potencial dialético da imagem requer do observador percepção e olhar ativos que reflitam para além da sua visibilidade, e por isso o último item deste estudo congrega as intenções destas abordagens alegóricas, numa terceira possibilidade de outro, que é o espaço que se estabelece com o espectador. Como o outro que acontece a partir da obra como dispositivo, quando ela só se completa nessa relação. Momento onde a alegoria se apresenta e manifesta seu enigma, ponto em que a obra pensa e faz pensar.

Embora, o texto se estruture em capítulos onde são abordadas características e facetas da alegoria, há uma interface e trama que se constitui contaminando-os mutuamente, sem a qual o raciocínio sobre o trabalho deste artista ficaria fragmentado e incompleto. O que interlaça estas questões são os procedimentos e processos utilizados pelo artista, que instauram marcas nos corpos dos trabalhos, as quais permitem as fendas e dobras por onde o espectador percebe sua fala. Para Derrida é preciso considerar a obra como um cheque ao portador, a obra fala nos seus termos.10 A pintura/obra só vale pelo que está pintado e não o que diz seu executor ou a quem ela se destina. Por esse motivo é que o olhar lançado sobre os trabalhos de Caetano de Almeida respeita as

10 DERRIDA, s/d, p. 294.

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questões que eles apresentam, embora em alguns casos o próprio artista as negue como intenção. Por entender que a obra tem uma potencialidade intrínseca de falar por si é que a escolha metodológica deste estudo foi por uma análise da visualidade e procedimentos, não inserindo o contexto e a biografia, como causas ou sintomas mais importantes.

Acreditando que esta pesquisa não encerra as questões que postula e igualmente não pretende determinar axiomas sobre a presença da alegoria no trabalho de Caetano de Almeida e por conseqüência na arte contemporânea, a reflexão não demandou uma conclusão sobre o tema, no seu sentido mais definido e rigoroso. Entende-se que cada capítulo discute um ângulo possível da alegoria na contemporaneidade, partindo das operações as quais recorre o artista e atentando para certas possibilidades contidas na sua obra, bem como buscando a interlocução com outros trabalhos, enriquecendo e ampliando o conceito da alegoria e sua apresentação na arte contemporânea.

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| Capítulo I |

A montagem ou a alegoria como procedimento de criação e pensamento

As alegorias são no reino dos pensamentos o que são as ruínas no reino das coisas. Walter Benjamin

Como pensar uma obra de arte reconhecendo-a numa série sem contudo diluí-la em mero contexto ou incorrer na simples generalização que tudo equivale, ignorando as diferenças que lhe são próprias? Para encarar esta questão este capítulo discorre uma análise sobre as séries Mundo Plano e Exposição de Quadros de Caetano de Almeida, considerando-as através de quatro desdobramentos. No primeiro aborda a montagem como um procedimento referenciado em Walter Benjamim e que se constitui como o procedimento que contém seu conceito de história a-sistêmica e anacrônica. O segundo discute como a montagem, procedimento operatório das obras da série Mundo Plano de Caetano de Almeida, deflagra a possibilidade de uma leitura atemporal da história da arte. O terceiro item discorre como teóricos contemporâneos reconhecem as características da alegoria estabelecidas por Walter Benjamin como fundadoras de um pensamento que vai além da auto-referência modernista, e assim estabelecem os procedimentos de montagem, apropriação e colagem como impulsos alegóricos da arte contemporânea. Incluindo a discussão das colagens e fotomontagens dadás como a grande presença alegórica na arte moderna, e como estes procedimentos deixaram heranças aos artistas contemporâneos. O quarto item propõe explorar as possibilidades da montagem como procedimento pictórico na arte contemporânea, através do diálogo entre Mundo Plano e a série Retratos de Revista de Vik Muniz, cujos processos de produção pressupõem camadas, enriquecendo assim a discussão da montagem como procedimento que indica um fazer alegórico.

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1 | Walter Benjamin e a alegoria como possibilidade no re-pensar a história

As séries de trabalhos de Caetano de Almeida: Mundo Plano e Exposição de Quadros remetem a uma história da arte que segue sendo referência através de padrões estéticos representados e obras emblemáticas que se multiplicam em reproduções nos livros e catálogos – principais meios de divulgação dessa história eucrônica, cuja pretensão envolve uma abrangência ocidental, linear e verticalizada. Como exemplo: algumas pinturas expoentes do período Modernista, onde a planaridade foi mestra e a auto-referência vigorou, re-aparecem nos trabalhos da série Mundo Plano, de Caetano de Almeida, com seus padrões pictóricos re-combinados, como uma história a ser recontada. A supremacia da planaridade e autotelia aqui referida reproduz um pensamento hegemônico sobre a pintura moderna que foi, até as últimas décadas do século XX, imposto pela teoria e história da arte, mas que, desde então vem sendo repensado no intuito de resgatar a diversidade de questões presentes no referido momento que haviam sido ignoradas por aquela teoria. Esta discussão será retomada no último capítulo, aprofundando as questões sobre a presença alegórica na arte moderna, ainda que à revelia do pensamento greenberguiano. Neste momento interessa pensar como Caetano de Almeida resgata imagens da história da pintura e atualiza suas presenças através de procedimentos de fragmentação e montagem, recombinando-as.

As obras referenciais de Turner, Velázquez, Pollock e outros importantes artistas também retornam na série Exposição de Quadros como uma constatação de Caetano de Almeida de que delas se conhece apenas a aparência, mediada pelas técnicas de reprodução, e que dessa forma o conhecimento da história da arte se dá permeado por uma espécie de velamento, o que assinala um conhecimento e familiaridade sobre a obra sem nunca se ter estado diante dela. Por sua vez, este mesmo repertório europeu advindo desde os renascentistas parece despontar como pilar de fundamentação de teorias e conceitos de arte. O que se conhece da história é o que se conta dela, o que se cria no presente é a história do passado,...a arte pode intervir na história, se não para redimir (...), então

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talvez ao alegorizá-la, para devolver um passado ao presente.1 Neste sentido o presente refaz o passado, e nessas duas séries o artista retoma estéticas e padrões sedimentados e reconhecidos, para através de sua fragmentação e recombinação constatar que a história pode ser sempre revisitada e ter seus conteúdos renovados, e em arte esta re-criação acontece pela operação de montagem – a noção operatória benjaminiana por excelência.

Por entender que o historicismo procura manter a coerência dos fatos através de uma homogeneidade e continuidade cronológica sem abranger o acúmulo das camadas sobrepostas, e que se sustenta como história pela ótica do vencedor, Walter Benjamin fez uma crítica à perspectiva monocular, reta e fixa, predominante na história clássica e início da moderna, e propõe que se considere a anacronia dos fatos. Importante lembrar que para as vanguardas modernas, o movimento da arte aconteceu no sentido de ruptura com essa tradição linear e cronológica, e se caracteriza pela busca da originalidade da obra, perdida pela repetição, pela duplicação, pela dissolução da aura, conseqüências das novas técnicas de fotografia e cinema, tendo como concepção uma crítica à sociedade de consumo. A transformação do sujeito e do objeto em mercadoria, próprio do regime capitalista, é responsável também pela desvalorização do mundo dos fenômenos, igual acontecimento ocorreu no barroco durante o século XVII. Este é o impulso que levou Benjamin a pensar no barroco os fragmentos de valores que ele via perdidos na rapidez e instantaneidade da vida moderna. Considerando a catástrofe e a melancolia, o autor usou a literatura barroca alemã e as ruínas como alegorias da modernidade, reconhecendo-as na fragmentação do mundo moderno e pelos cacos da história, num período saturnino e marcado por trágicas mudanças. Nesse palco incontestável e com os fragmentos que recolhe e acumula2, o homem

moderno constrói sua história, encenando-a como uma operação de montagem. A alegoria que ocupou um lugar privilegiado na história da religião cristã, posteriormente foi igualmente utilizada como gênero da literatura e da arte. Na pintura foi assumida como a possibilidade de fazer ver o que não poderia ser abordado de outra forma, ou seja, a alegoria permitiu encarar conceitos abstratos como liberdade, pureza, honra e humildade, através das histórias bíblicas ou mitológicas, das quais não existiam testemunhas, mas que se tornaram fundadoras

1 WOOD, et al., 1998, p. 249.

2 BENJAMIN, 1984, p. 247.

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de ideais de conduta e virtuosidade. É o caso da obra renascentista de Rafael, Escola de Atenas (1509-11), uma alegoria do conhecimento e do próprio saber na história ocidental, onde o artista agrega todos os pensadores importantes desde Platão, une diversos momentos históricos distintos, desfaz o tempo que os separa e apresenta o saber do seu tempo recombinado com a tradição dos antigos. Pelo uso do empilhamento de tempos distintos e da montagem cria uma cenografia impossível que alega o conhecimento humano.

No entanto, para o pensamento iluminista o registro alegórico passou a não oferecer um fundamento seguro e foi sendo repelido em favor de uma interpretação mais literal e científica, passível de comprovação. Pela dificuldade de interpretação que a alegoria impõe, nos séculos XVII e XVIII passa-se a usar o conceito de símbolo, que permite uma significação mais direta e imutável. Para Walter Benjamin este conceito, utilizado por muito tempo, e que denomina como usurpador da filosofia da arte, nada tem em comum com seu conceito autêntico que está situado na esfera da teologia, e é incapaz de dar conta das questões da arte, porque aponta para a eternidade da beleza enquanto a alegoria permite pensar a temporalidade como transitória. O problema desta visão equivocada de símbolo, é que embora seu conceito aponte imperiosamente para a indissociabilidade de forma e conteúdo, o uso fraudulento do simbólico passa a funcionar como legitimação filosófica da impotência crítica, que por falta de rigor dialético perde de vista o conteúdo na análise formal, e a forma na estética do conteúdo.3 Benjamin desenvolve seu raciocínio levando em conta a indissolução

das relações de forma/conteúdo, sensível/supra-sensível e fenômeno/idéia, que são interdependentes, e mostra onde reside a falha da crítica moderna, no privilégio ora da forma e ora do conteúdo. O símbolo é instantâneo e eterno na instantaneidade, e a alegoria é sucessiva, é acúmulo, sobreposição de camadas, de sentido e saberes. A alegoria possibilita a reabilitação da temporalidade e da historicidade em oposição ao símbolo que encarna um ideal de eternidade.

Se o objeto se torna alegórico sob o olhar da melancolia, ela o priva de sua vida, a coisa jaz como se estivesse morta, mas segura por toda a eternidade, entregue incondicionalmente ao alegorista, exposta à sua graça ou à sua desgraça. Vale dizer, o objeto é incapaz, a partir desse momento, de ter uma significação, de irradiar um sentido; ele só dispõe de

3 BENJAMIN, op.cit., p. 182.

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significação que lhe foi atribuída pelo alegorista. Este a coloca dentro dele e chega até seu fundo: isto não é uma realidade psicológica, mas sim ontológica.4

A alegoria possibilita a representação, no sentido de re-apresentar; sugere outra leitura, impõe outro significado, enquanto o símbolo implica em sentidos narrativos compartilhados e permanentes, não cambiantes, fixos. Por estas características é que Benjamin entende a alegoria a partir dos procedimentos, pois estes é que vão unir forma e conteúdo. A tentativa de Benjamin em estabelecer as características da alegoria, demonstra uma preocupação em dar aos procedimentos da arte maneiras de interpretação. Uma forma de ler a história da arte, porém a contrapelo. Esta analogia é feita por Didi-Huberman no livro Ante el tiempo, onde assinala que Benjamin equivocadamente tentou uma aproximação com Erwin Panofsky no sentido de validar sua teoria. O filósofo alemão queria de Panofsky senão a aprovação plena de suas idéias, pelo menos uma apreciação sobre sua visão da melancolia, mas não conseguiu nada além de uma resposta mal-humorada. Ao passo que deveria, no entender do teórico francês, ter se aproximado de Abi Warburg, quem com certeza entenderia e assumiria suas idéias para o repensar a história.5

O que Benjamin propôs provavelmente não passou despercebido ou mesmo menosprezado por Panofsky, que talvez o tenha ignorado justamente por compreender que sua aceitação resultaria num repensar a história, alargando os métodos e assumindo a limitação da iconologia proposta por ele até então. Para Didi-Huberman a antropologia benjaminiana e a iconologia panofskiana são antitéticas, porque assim como Warburg, Benjamin colocou a imagem como centro nevrálgico da história: la imagem no está en la história como um punto sobre uma línea; a imagem produz uma temporalidade de dupla face, de polaridade para Warburg e dialética para Benjamin, ou seja, produtora de uma historicidade anacrônica e de uma significação sintomática.6

O modelo dialético de Benjamin prevê no lugar de uma linha única e progressiva, rizomas de bifurcação, onde ao objeto do passado se relaciona uma história anterior e uma história ulterior, todo objeto de cultura e objeto de barbárie, e todo progresso histórico e a catástrofe. Portanto ele rechaça o mito

4 BENJAMIN, op.cit., p. 205-206.

5 DIDI-HUBERMAN, 2006, p.132.

6 Ibid, p. 125.

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epistemológico, que se resume em: achar, isolar e fazer o relato causal. Para Benjamin um fato objetivo do passado é um fato de memória, portanto um fato em movimento. Para ele não existe história sem teoria da memória, a história para ele não parte dos fatos do passado em si mesmos (uma ilusão teórica), e sim do movimento que os recorda e os constrói no saber presente do historiador. Não existe história senão a partir do presente, este é o princípio dinâmico da memória a partir do qual o historiador deve fazer a vez do receptor, do sonhador e do intérprete.7 A memória está certamente nos vestígios que atualizam a escavação arqueológica, mas também está na matéria do solo revolto, nos sedimentos, nos rastros do escavador, enfim está no presente mesmo da arqueologia, en sua mirada,8 seus métodos de busca, em sua capacidade para ler o passado do objeto no solo atual.

Assim como o historiador é para Benjamin aquele que vive sobre um monte de trapos e cacos da memória, o artista contemporâneo intuitivamente trabalha com fragmentos e restos, em procedimentos de montagem e justaposição. Para Benjamin a montagem é o emblema da alegoria, ela é anacrônica, fragmentada, faz cintilar tempos diferentes, e Caetano de Almeida em seus trabalhos resgata esse processo bem ao modo benjaminiano. Embora este artista não trabalhe com cacos e trapos da memória, no sentido da ruína, seus fragmentos resultam da precariedade do gosto e do olhar do homem comum à história da arte. Não significa colocar as séries de trabalhos acima citadas como documentos que resgatam ou demonstram o ideal de história proposto por Benjamin, mas sem dúvida, a noção operatória da montagem presente nos trabalhos de Caetano de Almeida é sintoma duma vontade em repensar a história da arte e seus dogmas fixos. Por quase todos o trabalhos deste artista perpassam questões das imagens da arte, seus padrões estéticos e as formas de sua distribuição e conhecimento. E a maneira pela qual o artista articula forma e conteúdo é exemplar do uso dos procedimentos pela ótica benjaminiana, que enxerga nas características de fragmentação e justaposição, próprias da montagem, as possibilidades de anacronismo e retorno.

A história em geral é construída e contada, por documentos e escritos que resultam em livros e enciclopédias, e a história da arte em particular está registrada

7 DIDI-HUBERMAN, op.cit., p. 136-137.

8 Ibid, p. 145.

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em livros específicos; porém a história das imagens da arte é contada pelas coleções ilustradas em livros/catálogos de museus, e também por catálogos devidamente categorizados por escolas e períodos definidos. No entanto essas classificações e arquivos de imagem sempre foram problemáticos, já que a imagem não oferece nenhuma facilidade de classificação, não existem dados claros que permitam classificá-las, nem ao menos por ordem alfabética. Michel Foucault e Michel De Certeau fizeram duras críticas ao arquivo, advertindo que o arquivo é algo construído e censurado, que está cheio de lacunas, que a classificação já é uma interpretação9 e que o arquivo, portanto, não é neutro e tampouco é ingênuo, ou seja, o arquivo não é um estado puro do documento. Para Didi-Hubermann o arquivo é fundamental porque determina a forma da historicidade, portanto não é possível fazer uma história das imagens seguindo uma crônica linear e sintagmática, porque segundo o teórico una sola imagen –al igual que un solo gesto–, reúne en sí misma varios tiempos heterogéneos.10

Neste sentido Didi-Hubermann aponta como uma época revolucionária, os anos 1920-1930, onde diversos historiadores colocaram a imagem como centro de seu pensamento sobre a história e conceberam sistemas de saber completamente novos, dentre eles estão: Warburg, Benjamin e Bataille, ao mesmo tempo em que no terreno artístico surgia um verdadeiro pensamento de montagem com Sergei Eisenstein, Bertold Brecht, os formalistas russos, podendo-se somar a este grupo os artistas dadás. Para Didi-Hubermann parece sintomático que num momento em que a história da Europa está sendo sacudida completamente, haja pensadores e artistas que expõem a história como estallido y reconstrucción, o que ele chama de conocimiento por el montaje.11 Para Benjamin uma verdadeira história da arte não

deve contar a história das imagens, mas acessar o inconsciente da visão, algo que não se dá através do relato ou crônica, senão pela montagem interpretativa, onde da junção de duas ou mais coisas distintas surge uma terceira que é o indício do que se busca.

Presente nas pinturas de Caetano de Almeida, a montagem, indica o conteúdo e propõe a forma, cuja interpretação vai além do apreço estético e da noção operatória pura. Mundo Plano se constitui em mosaicos, como uma

9 DIDI-HUBERMANN, em entrevista concedida a Pedro G. Romero, 2007. (tradução nossa)

10 Ibid. 11 Ibid.

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cartografia das superfícies pictóricas da história da arte moderna, o artista cria uma nova padronagem de estampas, uma estamparia pictórica dos padrões estéticos fixados pelo Modernismo. Essa série pode ser pensada como um catálogo da pintura moderna, mas com um viés esquizo, onde o gesto do artista, a expressividade, originalidade e unicidade, presentes nos trabalhos citados, perdem-se nos fragmentos e na nova composição. Em Exposição de Quadros o artista re-apresenta pinturas da história da arte enfatizando características formais, que não são próprias das originais, desconfiando da certeza sobre o conhecimento daquelas imagens, desestruturando o saber construído pela ótica linear e fixa, constatando a ilegitimidade das certezas históricas e dando à imagem a possibilidade de fala pela junção de conteúdo e forma, através de procedimentos alegóricos.

2 | Caetano de Almeida e a alegoria como procedimento pictórico

Pode-se considerar o procedimento operatório da montagem em arte através de três maneiras: mantendo vínculos e situando estilos e formas historicizadas; relendo e recombinando obras existentes; e fazendo uso dos símbolos e imagens de outras esferas como moda e mídia. Ou seja, é um procedimento que possibilita fazer conviver diferenças, mesclar tempos distintos, juntar coisas díspares, e/ou propor hiatos. A montagem para Benjamin é o grande emblema da alegoria, e o Livro das Passagens pode ser considerado o maior exemplo desse uso. Seu texto funciona sob o princípio da montagem, justapondo fragmentos textuais do passado e do presente na expectativa de que eles faiscando entre si iluminassem uns aos outros12.

Na série Mundo Plano, Caetano de Almeida recorre a citações e referências à história da arte, mas a fragmenta, justapõe tempos e estéticas distintas, e com isso instaura uma alegação histórica da imagem. A partir desses procedimentos retorna às formas de apresentação da imagem, e seus significados na história da arte. Para Benjamin as citações são como salteadores no caminho, que roubam a convicção daqueles que passeiam a esmo, não têm intenção de reverenciar o passado, já que a imagem recuperada do passado tem seu sentido destruído e

12 COETZEE, 2001, p. 110.

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passa a valer na maneira como se relaciona com o presente. Não há repetição vazia, mas destruição do sentido em seu contexto original; sentido que pode, porém ser redimido na condição que se constitui no presente.13

De acordo com Didi-Huberman, Benjamin faz da história uma arqueologia material e também psíquica, que retoma o feito, reatualizando-o como uma criança que brinca com los jirones del tiempo. Assim como o historiador de Benjamin que vive sobre um monte de trapos é o erudito das impurezas, dos resíduos da história, Caetano de Almeida trabalha com os restos e fragmentos da memória da imagem, com os vestígios da história oficial da arte, com as imagens que ela produziu, ou seja, opera con les despejos da memória da arte.14 Seu processo de trabalho compõe uma nova coleção de pensamentos sobre essa mesma história, enriquecendo a vivência da imagem. De acordo com Walter Benjamin, esses resíduos da história só oferecem o suporte sintomático da ignorância – verdade de um tempo reprimido da história – e também o lugar mesmo e a textura do contenido de las cosas e do trabajo sobre las cosas.15

Ainda que, sem aspirações idealistas, Caetano de Almeida nos apresente imagens/mosaicos, compostas com fragmentos de imagens saqueadas da história da arte, a leitura de seu trabalho à maneira de Warburg, permite entender que a potência está na imagem e não na intenção ou consciência critica do artista. Quer-se dizer que a crítica ou consciência histórica aparece como recalque nos trabalhos de Caetano, se esta não é sua declarada intenção. Mesmo que este artista seja um manipulador de signos, como Hal Foster denomina os artistas contemporâneos que utilizam apropriações e citações sem maiores questionamentos, suas ações, sejam de ordem crítica ou ética, assim como as de seus pares, resultam em imagens que permitem a um olhar crítico e atento fazer leituras mais complexas, estabelecendo relações anacrônicas como defende Didi-Hubermann inspirado em Warburg e Benjamin.

13 BENJAMIN, op.cit., p. 205.

14 DIDI-HUBERMAN, op.cit., p. 141.

15 Ibid.

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fig. 1 | Caetano de Almeida, Anfitrite da série Mundo Plano, técnica mista sobre tela, 2001.Fonte: catálogo de exposição, 2003.

Caetano de Almeida utiliza procedimentos que não deixam dúvida quanto ao seu caráter alegórico do ponto de vista benjaminiano: apropriação das imagens, citação da técnica, justaposição e montagem dos elementos. A série Mundo Plano apresenta em seus trabalhos citações da pintura moderna e da constituição de um olhar moderno, que revelam a neutralidade incorpórea dos procedimentos, e propõem pensar no futuro da pintura e na sua potência de cintilação. Se a compreensão da história de que fala Benjamin é a compreensão da imagem, então pode se conceber que o entendimento se dá pela supervivência – Naschleben –, que é para ele o fundamento da história geral e expressa ao mesmo tempo um resultado e um processo: os rastros e o trabalho do tempo na história.16 A

sobrevivência da imagem se dá pelo rasgo no tempo, pela cintilação que ela provoca, e no processo de montagem que permite sua reaparição, no entanto,

16 DIDI-HUBERMAN, op.cit., p. 143.

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como uma permanência cambiante, que cintila diferente a cada época, dependendo das relações que estabelece com o tempo presente.

Enquanto se reconhece em Benjamin um sentimento melancólico no Drama Barroco Alemão, em relação às técnicas de reprodutibilidade, sua visão é moderna e positiva, ainda que catastrófica. Ele prevê que a relação com a imagem, no que tange sua aura e originalidade estaria irrevogavelmente transformada, o que realmente ocorre frente às novas tecnologias oriundas do cinema e da fotografia. Em Caetano de Almeida como em artistas contemporâneos já há uma assimilação dessas mudanças e o uso dos novos processos acontece sem uma ênfase crítica tão acentuada em relação a essas perdas essenciais da modernidade. Por uma vertente mais leve e irônica, porém não menos eficaz, os trabalhos deste artista apresentam rearranjos de imagens, como combinações possíveis, embora inesperadas, a partir de padrões de gosto estabelecidos e idealizados. Sua intenção é subversiva, mas não revolucionária, bem à maneira contemporânea.

Caetano de Almeida trabalha com a memória visual construída pela história da arte dos livros e museus, e a sua denúncia é justamente a arbitrariedade das normas de representação, que seguem sendo assimiladas e usadas como padrão, assumidas como gosto e como essenciais. Através dessas pinturas, ele constata como a imagem é uma questão de construção ideológica e histórica, e propõe que o olhar lançado sobre estes trabalhos descubra através da decifração do processo de empilhamento o conceito de imagem que se quer pensar na contemporaneidade. Sua discussão está relacionada ao gosto e padrão impostos, e não ao contexto histórico e crítico, é menos uma crítica revolucionária que uma atitude cínica. Seus trabalhos são mais uma constatação de que as coisas assim são e continuarão a ser, do que uma provocação à mudança.

Na série Mundo Plano, o artista prima pelo uso de uma técnica de pintura precisa, sobrepõe não apenas tempos distintos, mas fragmenta e justapõe poéticas dialéticas da pintura do século XX. O trabalho Anfitrite |2001| [fig 1], parece uma colcha de retalhos construída com estampas de Matisse, Volpi e Pollock. Sua composição remete ao construtivismo, formas hexagonais que lembram flores, que ora se sobrepõem, ora perfuram a pintura de Volpi, e nesses furos geométricos o padrão se intercala entre a pintura de Matisse e a de Pollock.

Essas sobreposições também atuam como acúmulos de saberes, que não reforçam uma linha temporal, mas propõem buracos que permitem relacionar

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distintas estampas pictóricas de diversos tempos. Uma operação que propõe novos enquadramentos, e faz com que fragmentos das imagens da pintura moderna cintilem como rasgos no tempo, e apareçam como um despertar para a noção de imagem que a história da arte descreve. Para Rodrigo Moura, Caetano de Almeida coloca questões cruciais para o espectador por conta da sua ambigüidade em aceitar e assumir seu aspecto citacionista, fruindo toda a abstração que marcou a arte do século 20 e que é revisitada de maneira tão evidente por suas telas e ao mesmo tempo em se preocupar com a questão que esta apropriação coloca: esvaziar o grande esforço de singularização dos mestres do século 20 que se apresentam ali misturados, corrompidos, rebaixados e ressignificados.17

O padrão que Caetano de Almeida constrói em Anfitrite |2001| nada tem da estética formalista e autônoma que vigorou no início de século XX, além da semelhança aparente em seus fragmentos. E, embora tenha sido feita de maneira cuidadosa com uma técnica pictórica impecável, sua composição inusitada descola estes trabalhos do seu lugar confortável na história, e os apresenta descombinados. O trabalho é sedutor porque a estética abstracionista ensinou que formas e cores podem ser combinadas no plano pictórico, e esse é o assunto da pintura abstrata. No entanto, cria um desvio quando se reconhecem nos padrões que compõem a montagem aqueles cânones imaculados da história da pintura. O artista demonstra entender que qualquer procedimento artístico, à medida que vai sendo assimilado, tem a tendência de se transformar em norma de atuação, em regra, e relembra, no entanto, que a arte não conta com nenhum procedimento específico e eterno.

Na obra Sala de Espelhos |2003| [fig.2], o artista instaura ainda outro desvio, quando distorce as formas, dando-lhes uma ilusão espacial. Cria um espaço convidativo à imersão como se o espectador pudesse ser envolvido pelos padrões. O título da obra dá pistas sobre essa intencionada imersão, Sala de Espelhos, refere-se àqueles espaços de parques ou circos, onde se tem a imagem distorcida por jogos de reflexos e ondulações da superfície espelhada. A maneira como os pequenos pedaços de superfície pictórica se sobrepõem criam relações de figura e fundo, onde as áreas em tons mais claros e planos avançam como se flutuassem

17 MOURA, 2003.

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sobre o fundo indefinido de plantas e espaço etéreo, ao mesmo tempo em que a perspectiva criada pela distorção destas formas faz surgir um espaço que se aprofunda para o interior da tela. O artista cita as possibilidades ilusórias da perspectiva renascentista, porém sem instaurar um plano figurativo.

fig. 2 | Caetano de Almeida, Sala dos Espelhos da série Mundo

Plano, técnica mista sobre tela, 2003.Fonte: catálogo de exposição.

Referindo-se à escrita alegórica benjaminiana como uma nova forma de composição materialista histórica Coetzee diz que, se o mosaico de citações é construído corretamente deve emergir um padrão, um padrão que é mais que a soma de suas partes, mas não pode existir independentemente delas.18 É como a constelação, impossível sem estrelas. A virtude da montagem está na relação que se estabelece entre suas partes, relação proposta pelo alegorista. O que Caetano de Almeida propõe é um olhar que procure combinar padrões já assumidos, dentro

18 COETZEE, op. cit., p. 111.

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de uma outra composição, que formalmente adquire vida própria como se fossem retalhos de uma estampa pictórica universal. Esses novos padrões de Caetano de Almeida da mesma maneira que interpelam o gosto com suas combinações aestéticas funcionam como uma cartografia das superfícies pictóricas da história da pintura moderna.

3 | A arte contemporânea e o recurso da alegoria

Compreender ou problematizar o mundo, desvendar ou renovar seus mistérios, situar-se ou propor maneiras de se relacionar com ele, estas são algumas das possibilidades encontradas pelo homem desde o momento em que o primeiro desenho foi feito numa caverna. Seus procedimentos artísticos envolvem poética e fatura, sendo estes os meios e recursos que usam para construir perceptos19, ou seja, materializar suas percepções e sensibilidades conferindo um corpo que se sustenta como obra, constituindo um ser que vale por si como um bloco, que pode ficar em pé sozinho e se conservar, posto que uma obra excede o vivido e está para além do registro biográfico, devendo legar ao mundo as sensações persistentes e assim acrescentando-lhes novas variedades. Ocorre que persiste na arte contemporânea um entendimento e uma vontade de tocar e trazer uma parte das afecções do mundo, numa empreitada para articular uma realidade alhures através da arte, concebendo o mundo como um imenso arsenal no qual o artista se serve como um espaço aberto e passível de reapropriações e ressignificações infinitas. Assim ao artista cabe re-elaborar o mundo, multiplicando sentidos e povoando-o com as imagens, pois é na imagem que el ser se disgrega: explota y, al hacerlo mostra – pero por muy poco tiempo – el material con que está hecho. 20

No entendimento de Didi-Huberman o essencial da imagem é seu potencial de liberar primeiro o despertar, ela cintila, não é imitação, não representa as coisas, é o intervalo feito visível. Benjamin propõe que a imagem seja o umbral como uma passagem que permite esse despertar, a entrada em um novo mundo, um outro espaço de conhecimento, ele a vê como o centro originário e turbulento

19 DELEUZE; GUATTARI, 1991.

20 DIDI-HUBERMAN, op.cit., p. 148-149.

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do processo histórico como tal. Para Benjamin a história se decompõe em imagens, não em narrativas, pois a história narrativa impõe causalidade e determinação a partir de fora, e as coisas deveriam ter a chance de falar por si mesmas. Não preciso ‘dizer’ apenas mostrar 21. Por isso a necessidade de usar termos como o da alegoria, que podem indicar questões e caminhos abordados pelo processo do artista, entendendo que a imagem não é imitação das coisas, é justamente o intervalo feito visível, ela pode ser ao mesmo tempo material e psíquica, externa e interna, espacial e da linguagem, morfológica e informe, plástica e descontínua.22 É criação de mundo, não representação dele.

Na arte contemporânea as ferramentas e técnicas se tornam cada vez mais os indicativos do conceito do trabalho. Porque mesmo que se considere apenas a ordem da tecnologia, os artistas são aqueles, que diferentemente dos cientistas, entendem que a técnica, ou melhor, sua escolha determina em grande parte o que é o trabalho, posto que cada linguagem visual, cada procedimento empregado, tem suas especificidades, e estas é que permitem ao artista alegar o que deseja. Tal é o caso de Andy Warhol que, além de chamar seu atelier de fábrica, produzia as serigrafias como uma linha de produção e se apropriava de imagens de ícones culturais – pessoas célebres ou produtos pop –, numa referência à banalização da imagem e ao poder que ela possui. Mesmo a fatura impessoal e nada artesanal da arte minimal indica a elaboração e o projeto como significados da obra, negando o caráter genial da fatura do artista. A montagem cenográfica que faz Cindy Sherman, bem como a apropriação de elementos do cotidiano das colagens de Braque e Picasso, e até o gesto duchampiano emblemático do Urinol são práticas onde se somam apropriação, deslocamento e justaposição de significados. Os processos escolhidos pelos artistas têm um significado maior do que apenas produzir o objeto, e neste sentido, uma apreciação unicamente retiniana fica impossibilitada, requerendo do processo de contemplação o entendimento do processo de criação como integrante da poética do trabalho. Assim, a análise dos procedimentos e noções operatórias supõe o encontro do outro a que a obra remete ou alega.

A partir da definição de alegoria de Walter Benjamin alguns teóricos, e dentre eles, Benjamin Buchloh e Craig Owens apontam como procedimentos

21 BENJAMIN apud COETZEE, op.cit., p. 110.

22 DIDI-HUBERMAN, op.cit., p. 148-149.

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alegóricos na arte contemporânea: a apropriação, a colagem e a montagem, por possuírem as características alegóricas apontadas por Benjamin, que são: apropriação e subtração do sentido; fragmentação e justaposição dialética dos fragmentos; e separação do significante e significado.23 Esta definição serve à arte

contemporânea por ser o meio através do qual se resgata a maneira de dizer o conceito, sem no entanto, voltar à narrativa tradicional de representação, pois o discurso se dá na noção operatória. Benjamin compara a alegoria à maneira como os hieróglifos estão para escrita, pois estes complexos de sinais é que garantem a validade sagrada -, pois a escrita alfabética, enquanto combinação de átomos gráficos está afastada (...) da escrita sagrada. O que vale dizer que quanto mais complexa a linguagem mais valor impõe ao sagrado. Externamente e estilisticamente – na contundência das formas tipográficas como no exagero das metáforas – a palavra escrita tende à expressão visual. Não se pode conceber nenhum contraste mais flagrante com o símbolo artístico, o símbolo plástico, a imagem da totalidade orgânica, que esse fragmento amorfo que constitui a escrita visual do alegórico.24

Na mão do alegorista a coisa se transforma em algo diferente, através da coisa o alegorista fala de algo diferente, ela se converte na chave de um saber oculto, e como emblema desse saber ele a venera. Nisso reside o caráter escritural da alegoria.25 Não se está afirmando que o artista é ou deva ser um alegorista,

mas as diversas possibilidades que ele encontra nestes procedimentos alegóricos o aproximam do alegorista de Benjamin, pois o artista lança mão de uma linguagem, a visual, que não conta a priore com um alfabeto decodificado. Embora no decorrer da teoria da arte encontrem-se inúmeras tentativas no sentido de se estabelecer codificações, há obras que sempre escapam ao entendimento que se apóia em regras estabelecidas. Didi-Huberman relembra que é a partir da situação do presente dialético que o passado mais longínquo deve atualizar-se em seus efeitos de auto-deciframento profético26, ou seja, essa re-atualização da imagem é fruto da alegoria como processo. Segundo Owens a capacidade para resgatar do

23 BUCHLOH, 2000, p. 197.

24 BENJAMIN, op.cit., p.197-198.

25 Ibid, p. 205.

26 DIDI-HUBERMAN, op.cit., p. 127.

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esquecimento histórico aquilo que ameaça desaparecer é a maior característica da alegoria.27

Portanto a alegoria aparece ora como sintoma, ora como causa, ou ainda efeito, denunciando a fragilidade dos dogmas incontestáveis de alguns momentos históricos da arte. Na arte contemporânea, esses processos artísticos cada vez mais são entendidos como estratégias de funcionamento da obra, e justamente nessas estratégias é que se encontram os procedimentos alegóricos discutidos por Benjamin e seus pares. As estratégias de suspensão, ou não enunciação, caracterizam a separação do significante e significado, enquanto as estratégias de deslocamento são referentes aos procedimentos de apropriação e caracterizam a subtração de sentido. E, finalmente, as estratégias de justaposição trabalham com a fragmentação das montagens e das instalações e se caracterizam pela justaposição dialética de seus fragmentos.

Estes tipos de estratégias vão receber nos anos setenta, pela primeira vez, a denominação de pós-modernismos pelo crítico americano Leo Steinberg, que se referia à arte dos anos cinqüenta, mais especificamente as pinturas mistas e combinadas de Rauschenberg. Este termo de maneira geral tem sido usado para fazer referência a uma série de práticas freqüentes a partir dos anos 70, que contestaram o paradigma Modernista da produção de arte.28 No entanto nas artes visuais este conceito de pós-modernismo aparece com certa importância primeiramente em Rosalind Krauss e Craig Owens29, e é justamente aqui que se

encontra fôlego para discutir a alegoria. Considerando a dificuldade e o caráter, muitas vezes vago, acerca de discussões sobre o conceito de pós-modernismo, Paul Wood e Charles Harrison isolam algumas tendências críticas e (...) apresentam uma divisão esquemática em três temas amplos com relação aos quais essa idéia tem sido orientada e discutida no campo das artes visuais. Onde eles apresentam o pós-modernismo como crítica de questões fundamentais do Modernismo grenberguiano: 1. Como crítica dos fundamentos da diferença: classe, raça e gênero; 2. Como crítica do mito da originalidade; 3. Como crítica das narrativas históricas.30

27 OWENS, 2004, p. 113.

28 WOOD. et al., op. cit., p. 237.

29 Ibid. O autor refere-se a Krauss em The originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths

e Owens em The Allegorical Impulse.

30 Ibid, p. 237-238.

Imagem

fig. 1 | Caetano de Almeida, Anfitrite da série Mundo Plano, técnica  mista sobre tela, 2001.Fonte: catálogo de exposição, 2003
fig. 2 | Caetano de Almeida, Sala dos Espelhos da série Mundo  Plano, técnica mista sobre tela, 2003.Fonte: catálogo de exposição
fig. 3 | Kurt Schwitters, Merz Picture 32A (Cherry Picture). 1921.
fig. 4 | John Heartfield, The Meaning of the Hitler Salute: Little man  asks for big gifts
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Referências

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