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Narrativa e resistência

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Academic year: 2020

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N A R R A T I V A E R E S I S T Ê N C I A

A l f r e d o B O S I

a geometria irmã da liberdade ensina a árvore a pular o muro cansado de esperar revolta-se o relógio

e começa a marcar as horas do futuro José Paulo Paes, "Eluardiana" A eu meu esmo - poemas desgarrados

R e s i s t ê n c i a é um conceito originariamente é t i c o , e n ã o e s t é t i c o .

O seu sentido mais profundo apela para a força da vontade que resiste a outra força, exterior ao sujeito. Resistir é opor a força p r ó p r i a à força alheia. O cognato p r ó x i m o é i n / s i s t i r ; o a n t ô n i m o familiar é de/sistir.

A e x p e r i ê n c i a dos artistas e o seu testemunho dizem, em geral, que a arte n ã o é uma atividade que n a s ç a da força de vontade. Esta vem depois. A arte teria a ver primariamente com as p o t ê n c i a s do conhecimento: a i n t u i ç ã o , a i m a g i n a ç ã o , a p e r c e p ç ã o e a m e m ó r i a .

Recorro à p a r t i ç ã o proposta por Benedetto Croce no contexto da sua d i a l é t i c a das d i s t i n ç õ e s , que reelabora conceitos hegelianos.

* Departamento de Letras Clássicas e Vernáculos - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP - 05508-900 - Sao Paulo - SP.

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(1) A s p o t ê n c i a s cognitivas s ã o a i n t u i ç ã o e a r a z ã o ; o que distingue uma da outra é a e x i g ê n c i a de um critério de realidade, peculiar à r a z ã o , mas indiferente à intuição.

(2) A s p o t ê n c i a s da vida prática (praxis) s ã o o desejo e a vontade; o que distingue a vontade do desejo é a e x i s t ê n c i a de um c r i t é r i o de c o e r ê n c i a ética peculiar à s a ç õ e s v o l u n t á r i a s , mas que n ã o regeria, em p r i n c í p i o , os movimentos da libido.

N o universo harmonioso da filosofia de Croce, a i n t u i ç ã o é o fundamento da arte, e as suas imagens n ã o precisam passar pelo teste de v e r i f i c a ç ã o da realidade, dita e m p í r i c a ou factual. Quanto à r a z ã o , o seu enfrentamento n e c e s s á r i o com a realidade permite-lhe fundamentar as c i ê n c i a s e a filosofia.

Na ordem da praxis: o desejo governa o mundo da s a t i s f a ç ã o das necessidades ditas p r i m á r i a s ligadas à s o b r e v i v ê n c i a do i n d i v í d u o e da e s p é c i e . E a vontade seria, enfim, a mola das a ç õ e s livres e r e s p o n s á v e i s que constituem as esferas é t i c a e política.

Eis o quadro das d i s t i n ç õ e s e das suas respectivas o b j e t i v a ç õ e s no curso da História: MOMENTOS COGNITIVOS I N T U I Ç Ã O / A r t e * R A Z Ã O / T e o r i a : c i ê n c i a s , filosofia. MOMENTOS PRÁTICOS D E S E J O / " E c o n o m i a " ( o r d e m dos processos b i o p s i q u i c o s ) * V O N T A D E / É t i c a , p o l í t i c a .

Postas as coisas assim, em nível abstrato, n ã o se deveriam misturar conceitos p r ó p r i o s da arte e conceitos p r ó p r i o s da ética e da p o l í t i c a ; c o n f u s ã o 1 2

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-que ocorreria em e x p r e s s õ e s como poesia de r e s i s t ê n c i a e n a r r a t i v a de r e s i s t ê n c i a .

N o entanto, como sempre acontece, no fazer-se concreto e multiplamente determinado da e x i s t ê n c i a pessoal, fios s u b t e r r â n e o s poderosos amarram as p u l s õ e s e os signos, os desejos e as imagens, os projetos p o l í t i c o s e as teorias, as a ç õ e s e os conceitos. Mais do que um acaso de c o m b i n a ç õ e s , essa i n t e r a ç ã o é a garantia da vitalidade mesma das esferas artística e t e ó r i c a .

O reconhecimento dessas r e l a ç õ e s levou o mesmo Croce a teorizar, a certa altura do seu longo percurso, sobre a totalidade vigente em toda grande obra de arte. O pensador que soube distinguir com clareza os momentos de um processo soube t a m b é m encontrar os liames significativos entre uma i n s t â n c i a e outra.

* » *

Quando se poderia dizer, metaforicamente, que h á uma poesia de r e s i s t ê n c i a ? Ocupei-me com esse conceito nos anos 70 quando lhe dediquei um c a p í t u l o de O ser e o tempo da poesia, e n ã o j u l g o n e c e s s á r i o repetir o que lá e s t á dito. Prefiro explorar o tema afim de narrativa e r e s i s t ê n c i a .

Arriscando um caminho e x p l o r a t ó r i o , eu diria que a idéia de r e s i s t ê n c i a , quando conjugada à de narrativa, tem sido realizada de duas maneiras que n ã o se excluem necessariamente:

(a) a r e s i s t ê n c i a se d á como tema;

(b) a r e s i s t ê n c i a se d á como processo inerente à escrita.

O ROMANCE E O TRATAMENTO DOS VALORES

A t r a n s l a ç ã o de sentido da esfera é t i c a para a e s t é t i c a é p o s s í v e l , e j á deu resultados n o t á v e i s , quando o narrador se p õ e a explorar uma força catalisadora da v i d a em sociedade: os seus valores. A força desse í m ã n ã o podem subtrair-se os escritores enquanto fazem parte do tecido v i v o de qualquer cultura.

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O homem de a ç ã o , o educador ou o p o l í t i c o que interfere diretamente na trama social, julgando-a e, n ã o raro, pelejando para alterá-la, s ó o faz enquanto é m o v i d o por valores. Estes, por seu turno, repelem e combatem os antivalores respectivos. O valor é objeto da intencionalidade da vontade, é a força propulsora das suas a ç õ e s . O valor e s t á no f i m da a ç ã o , como seu objetivo; e está no c o m e ç o dela enquanto é sua m o t i v a ç ã o .

Exemplos de valores e antivalores s ã o : liberdade e despotismo; igualdade e i n i q ü i d a d e ; sinceridade e hipocrisia; coragem e covardia; fidelidade e t r a i ç ã o , etc.

Valores e antivalores n ã o existem em abstrato, isto é, absolutamente. T ê m todos, para cada um de n ó s , e de modo intenso para o artista, uma f i s i o n o m i a . Os poetas os captam e os exprimem mediante imagens, figuras, timbres de vozes, gestos, formas portadoras de sentimentos que experimentamos em n ó s ou pressentimos no outro.

S ó para ilustrar: o despotismo traduz-se por atos a r b i t r á r i o s e tons de voz a u t o r i t á r i o s daquele que d e t é m poder. Leia-se Balzac descrevendo com vivacidade a conduta d o m é s t i c a t i r â n i c a de um c a s t e l ã o decadente, um emigrado da R e s t a u r a ç ã o , o conde de Mortsauf, que inferniza a esposa e os criados (Le lys de la vallée). Que riqueza de pormenores e de matizes a p r o x i m á v e i s pela categoria do despotismo patriarcal!

Outros exemplos: a vilania se revela na palavra injuriosa l a n ç a d a em rosto a um inocente; a t r a i ç ã o se faz com sorrisos c ú m p l i c e s , meias palavras. Nas t r a g é d i a s de Shakespeare h á uma r i q u í s s i m a messe de s i t u a ç õ e s em que os antivalores tomam corpo. A cupidez das filhas traidoras do Rei Lear, Goneril e Regane, é contrastada com a lealdade discreta da filha mais m o ç a , C o r d é l i a : o antivalor nas primeiras e o valor na ú l t i m a tem voz, tem gesto, tem rosto. Mesmo que Shakespeare n ã o sublinhasse, mediante frases sentenciosas ditas por outras personagens, a fealdade de umas e a beleza da outra, a r e s i s t ê n c i a ao mal foi trabalhada de tal maneira que o é t i c o e o e s t é t i c o se converteram mutuamente.

É preciso levar adiante a a n á l i s e diferencial do termo "valor". N o homem de a ç ã o , a r e a l i z a ç ã o dos valores tem um compromisso com a verdade das suas r e p r e s e n t a ç õ e s . Para condenar um ato como injusto, é i n d i s p e n s á v e l , ao ser é t i c o , saber se, efetivamente, o seu sentimento de i n d i g n a ç ã o e s t á fundado

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em uma p e r c e p ç ã o correta dos fatos e das i n t e n ç õ e s dos sujeitos. O valor, nessa esfera da p r á x i s , se p r o v a r á pela c o e r ê n c i a com que o homem j u s t o se comporta a partir da sua d e c i s ã o . Os o b s t á c u l o s à sua vontade v i r ã o de fora, p e r t e n c e r ã o à lei da necessidade natural ou à surpresa das c o n t i n g ê n c i a s , mas, dentro dele, no seu chamado foro í n t i m o , o imperativo do dever se m a n t e r á intacto. De todo modo, é o p r i n c í p i o d a realidade com toda a sua dureza que rege a r e a l i z a ç ã o dos valores no campo é t i c o .

A s i t u a ç ã o do romancista é outra. Ele d i s p õ e de um e s p a ç o amplo de liberdade inventiva. A escrita trabalha n ã o s ó com a m e m ó r i a das coisas realmente acontecidas, mas,com todo o reino do possível e do i m a g i n á v e l .

O narrador cria, segundo o seu desejo, r e p r e s e n t a ç õ e s do bem, r e p r e s e n t a ç õ e s do mal ou r e p r e s e n t a ç õ e s ambivalentes. G r a ç a s à e x p l o r a ç ã o das t é c n i c a s do foco narrativo, o romancista p o d e r á levar ao primeiro plano do texto ficcional toda uma fenomenologia de r e s i s t ê n c i a do eu aos valores ou antivalores do seu meio. D á - s e assim uma s u b j e t i v a ç ã o intensa do f e n ô m e n o é t i c o da r e s i s t ê n c i a , o que é a figura moderna do herói antigo. Esse tratamento livre e diferenciado permite que o leitor acompanhe os movimentos n ã o raro c o n t r a d i t ó r i o s da c o n s c i ê n c i a , quer das personagens, quer do narrador em primeira pessoa.

O exemplo de Os Irmãos Karamázovi de D o s t o i é v s k i , estudado por Bakhtin em termos de polifonia, ilustra bem a r e l a ç ã o entre i n s t â n c i a s é t i c a s e formas de c o n s t r u ç ã o narrativa. A s vozes das personagens s ã o pontos-de-vista cruzados que trazem à superfície da escrita o n ú c l e o moral onipresente em D o s t o i é v s k i : o n ó t e m á t i c o inextricável de bem e m a l , de i n o c ê n c i a e culpa, de vontade e destino.

Ivan e Aliosha. Cada um resiste, a seu modo, à p r e s s ã o i d e o l ó g i c a que lhe parece mais adversa. Ivan prega o nihilismo radical c o m o a n t í d o t o à hipocrisia do c l ã familiar e das p o t ê n c i a s e c l e s i á s t i c a s ainda vigentes na R ú s s i a dos czares e dos popes. Seu i r m ã o Aliosha, que ele ama ternamente, e s c o l h e r á outro caminho: c a v a r á fundo a sua fé c r i s t ã ortodoxa e a l i m e n t a r á sentimentos de amor fraterno e universal que o p r e s e r v a r ã o da frieza cruel, cerebrina, dos intelectuais ateus que D o s t o i é v s k i j á descrevera em Os Possessos. A r e s i s t ê n c i a de ambos é a u t ê n t i c a . Mas os alvos s ã o diversos, e diversos s ã o os tons de voz. As duas trajetórias se encontram e definem uma das vertentes de Os Irmãos Karamázovi. Valor é t i c o e ficção romanesca buscam-se mutuamente.

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A partir do momento em que o romancista molda a personagem, dando-lhe aquele tanto de c a r á t e r que lhe confere alguma identidade no interior da trama, todo o e s f o r ç o da escrita se v o l t a r á para conquistar a verdade da e x p r e s s ã o . A e x i g ê n c i a estética assume, no caso, uma g e n u í n a face ética. Escrever bem passa a ser um imperativo moral na medida em que o sentido requer uma rede de signos que o tragam à luz da c o m u n i c a ç ã o .

Em p r i n c í p i o , a margem de escolha do artista é maior do que a do h o m e m - e m - s i t u a ç ã o , ser amarrado ao cotidiano. A o c o n t r á r i o da literatura de propaganda - que tem uma ú n i c a escolha, a de apresentar a mercadoria ou a política oficial sob as e s p é c i e s da alegoria do bem -, a arte pode escolher tudo quanto a ideologia dominante esquece, evita ou repele. Embora possa partilhar os mesmos valores de outros homens, t a m b é m engajados na r e s i s t ê n c i a a antivalores, o narrador trabalha a sua m a t é r i a de modo peculiar; o que lhe é garantido pelo e x e r c í c i o da fantasia, da m e m ó r i a , das p o t ê n c i a s expressivas e estilizadores. N ã o s ã o os valores em si que distinguem um narrador resistente e um militante da mesma ideologia. S ã o os modos p r ó p r i o s de realizar esses valores.

Consideremos os riscos que corremos quando borramos essa d i s t i n ç ã o . O primeiro risco ocorre quando se exige que o escritor se engaje, ao c o m p o r sua o b r a , na propaganda de movimentos sociais ou de campanhas políticas que pretendem realizar determinados valores ou combater os seus respectivos antivalores. É o famoso "patrulhamento i d e o l ó g i c o " que acaba turvando a v i s ã o critica. Assim fazem liberais e esquerdistas quando j u l g a m e condenam a obra de Ezra Pound, que teve um momento de simpatia por Mussolini. Ou acusam a a l i e n a ç ã o presente na obra de Borges, que na vida p ú b l i c a foi indulgente com a ditadura sangrenta do general Pinochet. O u lembram que Fernando Pessoa tangenciou a política cultural nacionalista e saudosista de Salazar nos anos Trinta. Os exemplos s ã o , a l i á s , mais numerosos do que seria de desejar.

Deploremos, sim, as o p ç õ e s infelizes desses escritores, enquanto c i d a d ã o s , mas guardemos em face dos seus textos uma i n d e p e n d ê n c i a de vistas e uma largueza de julgamento que saiba enfrentar o á r d u o problema das r e l a ç õ e s entre poesia e ideologia. Ou faremos como G i o s u è Carducci que, segundo consta, teria recusado a oferta de reger uma C á t e d r a Dante A l i g h i e r i

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alegando que, para aceitá-la, seria preciso ser c a t ó l i c o , monarquista e florentino?

O segundo risco, t ã o ou mais funesto, se d á quando leitores ultra ideologizantes condenam antivalores supostamente representados o u promovidos pelas imagens do poema.

Lembro, a p r o p ó s i t o , o experimento de Richards em seu Practica! Criticism t ã o bem comentado entre n ó s por Otto M a r i a Carpeaux no ensaio "Poesia e ideologia" escrito em 1943. Richards submeteu a alguns renomados c r í t i c o s e jornalistas ingleses uma bateria de textos literários, o m i t i n d o o nome dos seus autores, entre os quais havia alguns c l á s s i c o s , outros apenas e s t i m á v e i s , outros enfim tirados de almanaques comerciais. A s r e a ç õ e s dos sujeitos do experimento foram pesadamente i d e o l ó g i c a s . Houve casos de grandes poetas m e t a f í s i c o s do s é c u l o X V I I cujos versos foram acidamente criticados porque i n c l u í a m imagens da realeza ou da divindade, figuras que irritaram a sensibilidade republicana ou a g n ó s t i c a do leitor. O u , no outro extremo, versos de poetastros de jornalecos suburbanos que foram calorosamente elogiados porque traziam mensagens liberais ou progressistas.

Richards operou uma verdadeira d e s m i s t i f i c a ç ã o da c r í t i c a ideologizante que se mostra cega ao modo de ser do poema, cujos significados s ã o expressos em linguagem figurai e s i m b ó l i c a : logo, p o l i s s ê m i c a .

Essa atitude desequilibrada tem chegado recentemente ao paroxismo quando a m i l i t â n c i a de grupos de raça, de g ê n e r o ou de o p i n i ã o se e n c a r n i ç a na d e s t r u i ç ã o do c â n o n tradicional. Por o c a s i ã o de um debate que se seguiu a uma c o n f e r ê n c i a de Jean-Pierre Vernant sobre o homem grego, uma assistente, indignada, interpelou o mestre querendo saber porque este n ã o dera ê n f a s e à m i s o g í n i a de H e s í o d o , ou seja, n ã o condenara a v i s ã o da mulher que sai da obra do poeta. Vernant reconheceu cordatamente que, de fato, H e s í o d o refletia uma mentalidade patriarcal e lembrou que nos Estados Unidos, h á poucos anos, uma editora feminista se recusara a incluir entre os seus t í t u l o s uma t r a d u ç ã o dos poemas de H e s í o d o , precisamente porque as suas idéias eram "descaradamente machistas", r e a c i o n á r i a s e ofensivas à imagem da mulher. A s militantes americanas exigiam do poeta uma imediata, i n e q u í v o c a e p ú b l i c a r e t r a t a ç ã o ; e foi um custo explicar à consultora da casa editorial que H e s í o d o n ã o estava em c o n d i ç õ e s de satisifazer a essa e x i g ê n c i a , pois morrera fazia mais de vinte e cinco s é c u l o s .

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A t é aqui, os riscos da i n d i s t i n ç ã o .

* * *

Mas voltemos de novo a olhar para as a p r o x i m a ç õ e s entre narrativa e r e s i s t ê n c i a , e certamente é a história da r e a l i z a ç ã o dos valores que nos s e r v i r á de guia.

H á momentos coletivos em que o e l ã r e v o l u c i o n á r i o polariza e comove tanto os homens de a ç ã o quanto os criadores de ficção. E h á momentos, mais numerosos e longos, em que prevalece a descontinuidade da vida social sobre o toque de reunir, ocorrendo e n t ã o uma d i s p e r s ã o e d i f e r e n c i a ç ã o aguda dos p a p é i s sociais. Neste caso, o artista da palavra pode desenvolver, solitária e independentemente, a sua resistência aos antivalores do meio. S e r á o " c o r a ç ã o oposto ao m u n d o " do poeta.

Aclarar a d i f e r e n ç a entre tempos de a c e l e r a ç ã o da luta social e tempos lentos e difusos de aparente e s t a g n a ç ã o política ajuda-nos a compreender a d i s t i n ç ã o , entre resistência como tema da narrativa e resistência como processo constitutivo de uma certa escrita.

I - RESISTÊNCIA COMO TEMA DA NARRATIVA

O termo R e s i s t ê n c i a e suas a p r o x i m a ç õ e s com os termos "cultura", "arte", "narrativa" foram pensados e formulados no p e r í o d o que corre, aproximadamente, entre 1930 e 1950, quando numerosos intelectuais se engajaram no combate ao fascismo, ao nazismo e às suas formas aparentadas, o franquismo e o salazarismo. O que os italianos chamavam de partigiani e os franceses logo traduziram como partisans, significava p a r t i c i p a ç ã o , partido, luta de uma f a c ç ã o que se rebelou contra as m i l í c i a s nazifascistas que a m e a ç a r a m apossar-se da Europa no f i m dos anos 30 e s ó foram derrotadas em 1945. Firmou-se ao longo desses anos sombrios uma frente de c a r á t e r libertador que, em luta de guerrilhas e emboscadas, o maquis (de macchia, no sentido corso de

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moita onde se entocaiavam os resistentes), disputava palmo a palmo as á r e a s invadidas.

Foi um tempo excepcional, um tempo quente de u n i ã o de f o r ç a s populares e intelectuais progressistas. Tempo que perdurou na m e m ó r i a dos narradores do imediato p ó s - g u e r r a , e que produziu o cerne da chamada literatura de r e s i s t ê n c i a , coincidente, e n ã o por acaso.com o ponto de vista e s t é t i c o neo-realista. U m l i v r o candente como Se questo è un uomo, de P r i m o L e v i , testemunhando a sua e x p e r i ê n c i a de j u d e u l a n ç a d o em um campo de c o n c e n t r a ç ã o , é perfeito exemplo desse c l i m a é t i c o e da o p ç ã o por uma linguagem s ó b r i a e depurada de todo convencionalismo. A obra-prima veio antes: Conversazione in Sicilia de E l i o V i t o r i n i .

N o Brasil, as Memórias do cárcere de Graciliano Ramos, obra que n ã o quis ser nem ficcional, nem documental, mas testemunhal, corresponde à literatura de r e s i s t ê n c i a que tem em alguns poemas de D r u m m o n d o seu ponto alto. A rosa do povo é de 45.

A o tomar contacto com essas obras, o leitor politizado do p ó s - g u e r r a s u p ô s que a natureza mesma do f e n ô m e n o literário houvesse mudado radicalmente; e que, a partir da luta contra os regimes t o t a l i t á r i o s e belicistas, a escrita passara a ter a mesma s u b s t â n c i a cognitiva e é t i c a da linguagem de c o m u n i c a ç ã o , que é o nosso p ã o cotidiano quer na vida p ú b l i c a , quer na vida privada. A escrita ficcional teria passado a ser uma variante e, n ã o raro, uma t r a n s c r i ç ã o do discurso p o l í t i c o ou da linguagem oral, de p r e f e r ê n c i a popular.

A descoberta que se fez e n t ã o na Itália dos cadernos de c á r c e r e de u m pensador marxista original, Antonio Gramsci, morto em 1937 depois de dez anos de p r i s ã o decretada pelo fascismo, estimulou a c r í t i c a de esquerda a construir o t i p o ideal do "intelectual o r g â n i c o " da classe o p e r á r i a , isto é , o escritor que se despe dos preconceitos e do i m a g i n á r i o b u r g u ê s para plasmar uma linguagem aderente ao real e aos valores de progresso, j u s t i ç a e liberdade. O cinema neo-realista de Rossellini, de V i t t o r i o De Sica e do p r i m e i r o V i s c o n t i parecia ilustrar admiravelmente essa nova t e n d ê n c i a que povoou a cultura ocidental de e s p e r a n ç a s no poder transformador da palavra narrativa e da sua imagem.

C o n v é m salientar que essa narrativa, sobretudo a de E l i o V i t t o r i n i e a de Cesare Pavese, autor de um d i á r i o b e l í s s i m o , I I mestiere di vivere (O oficio

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de viver), tinha por modelo uma obra norte-americana, o Adeus às armas de Ernest Hemingway. A prosa direta, aparentemente j o r n a l í s t i c a , deste grande escritor seduzia aqueles intelectuais europeus nutridos de uma cultura literária milenar refinada e devedora de onerosas t r a d i ç õ e s c l á s s i c a s , r o m â n t i c a s , simbolistas... A proposta neo-realista passava t a m b é m a significar a l i b e r t a ç ã o de uma p r á t i c a de escrita que estaria, por sua p r ó p r i a ancianidade e s t é t i c a , vinculada a ideais e valores j á ultrapassados. Novamente, a r e s i s t ê n c i a é t i c o -p o l í t i c a buscava traduzir-se em uma r e s i s t ê n c i a no -plano das o -p ç õ e s narrativas e estilísticas.

N a F r a n ç a , o itinerário exemplar de Albert Carnus fez a ponte de dupla m ã o entre o existencialismo e o marxismo. E o Sartre filósofo, narrador e dramaturgo f o i o maitre-à-penser de mais de uma g e r a ç ã o e sobreviveu bravamente à c i r c u n s t â n c i a do momento "partisan". O seu m a g i s t é r i o estendeu-se dos anos 40 ao f i m dos anos 60 e s ó f o i perdendo terreno quando a cultura ao mesmo tempo massificada e atomizada do p ó s - m o d e r n i s m o voltou as costas para todo projeto de vida imantado por valores é t i c o - p o l i t i c o s . Sartre diria que essa d e s i s t ê n c i a de todo projeto é t a m b é m projeto - da m á fé ou da a l i e n a ç ã o . D e s i s t ê n c i a , a n t ô n i m o de r e s i s t ê n c i a .

Quem quiser conhecer uma das i n t e r p r e t a ç õ e s mais densas e e m p á t i c a s da literatura de r e s i s t ê n c i a na F r a n ç a , lerá com proveito o ensaio de A l b é r è s , La revolte des écrivains d'au Jourď hui, obra que saiu e m 1949, no auge portanto do que o seu autor chama de P r o m e t e í s m o . O m i t o de Prometeu seria a perfeita alegoria da revolta do ser humano contra o destino, palavra que a b r a ç a as forças naturais, o leviatã social e tudo quanto transcende a vontade individual. A rebeldia p r o m e t é i c a n ã o trouxe apenas a d i m e n s ã o do desafio à s p o t ê n c i a s do O l i m p o . Trouxe t a m b é m a contraparte da solidariedade com os mortais a quem o titã ensinou o uso do fogo que, arrebatado aos c é u s , se fez instrumento da t é c n i c a e moveu os homens a se libertarem da o n i p o t ê n c i a da natureza.

P r o m e t é i c a s seriam, para A l b é r è s , algumas obras que, vale a pena sublinhar, exerceriam poderosa influência sobre intelectuais brasileiros que j á ultrapassaram, neste f i m de s é c u l o , a casa dos cinquenta anos. A peste, obra-prima de Albert Carnus, é de 47, e pode ser lida como a s ú m u l a de um p r o m e t e í s m o e s t ó i c o e ao mesmo tempo fraterno: no perigo coletivo da epidemia o homem descobre que a sua s o l i d ã o é a s o l i d ã o de cada u m , logo de

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todos. " O existencialismo", d i r á Sartre, " é um humanismo". Lembro As moscas e a t r i l o g i a dos Caminhos da liberdade, que Sartre escreveu entre 45 e 49, reunindo A idade da razão, Sursis e Morte na alma. A s t r a g é d i a s de A n o u i l h r e p õ e m no c e n á r i o moderno as mulheres resistentes por e x c e l ê n c i a do teatro grego, M e d é i a e A n t í g o n a . E, numa perspectiva cristã, igualmente avessa ao conformismo, à m o r n i d ã o burguesa e a todo f a r i s a í s m o , leram-se os romances de Bernanos em que o anti-herói t a m b é m se engaja escolhendo animosa e sofridamente a " e x i s t ê n c i a a u t ê n t i c a " contra tudo o que é falso epífio: penso no Journal d'un curé de campagne, l i v r o de cabeceira dos nossos poetas Jorge de L i m a e M u r i l o Mendes. Enfim, os livros que nos ensinaram o valor de uma coragem que recusa a d e m ê n c i a da guerra e se exerce t ã o s ó na c o n s t r u ç ã o de uma c o n v i v ê n c i a sem pregas, simples, generosa: Vol de nuit, Terre des hommes, Le petit prince, de Antoine de S a i n t - E x u p é r y , piloto de a v i ã o abatido pelos nazistas em pleno mar da C ó r s e g a em 1944.

Carnus, Sartre, A n o u i l h , Bernanos, S a i n t - E x u p é r y . Era c o m o se o espirito inquieto das vanguardas do c o m e ç o do s é c u l o voltasse a soprar na c a b e ç a dos escritores, mas agora, depois da e x p e r i ê n c i a da I I Guerra, exigisse uma escolha s ó b r i a , lúcida, sem i l u s õ e s literárias, sem individualismos extremados, e comprometida t ã o s ó com o que libera o homem j u n t o com o semelhante. Existencialismo e marxismo irão encontrarse no imediato p ó s -guerra para propor uma arte empenhada e ao mesmo tempo implacavelmente a n a l í t i c a dos m í n i m o s movimentos da o n i s c i ê n c i a .

N ã o cabe aqui reconstruir o f i o t e ó r i c o do pensamento existencialista esticado na d i r e ç ã o do engajamento p o l í t i c o de esquerda. Os numerosos textos de Sartre dos anos 50 e 60, as suas p o l ê m i c a s com Merleau-Ponty, a batalha das idéias libertárias que preparou o degelo s o v i é t i c o de 56: tudo isto fez uma h i s t ó r i a densa que s ó a incultura da b a r b á r i e p o d e r á ignorar ou esquecer. Em termos de p r o d u ç ã o narrativa, o importante é ressaltar a c o e x i s t ê n c i a de absurdo e c o n s t r u ç ã o de sentido, de desespero individual e e s p e r a n ç a coletiva; em suma, de escolha social arrancada do mais fundo sentimento da i m p o t ê n c i a individual. Sísifo é o m i t o e a imagem exemplar: Sísifo, retomando a subida da montanha, n ã o c e d e r á à o n i p o t ê n c i a do rochedo. A gravidade do mundo o p o r á pela liberdade do e s p í r i t o , figura da g r a ç a divina laicizada por uma cultura sem deuses.

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Menos do que a prosa surrealista, em geral inferior à poesia, a matriz do romance existencial de Carnus f o i a obra de Franz Kafka, que o pós-guerra europeu descobriu com e s t u p e f a ç ã o . Carnus f o i , dos primeiros a explicar Kafka aos franceses, interpretando-o no Mythe de Sisyphe.

O tema da resistência se universaliza na cultura existencialista. Confere uma d i m e n s ã o ética a uma atitude que transcende o fato da o p o s i ç ã o direta ao nazifascismo. Trata-se, para Carnus e Sartre, de fundar uma palavra radicalmente antiburguesa, n ã o - c o n f o r m i s t a , r e v o l u c i o n á r i a , voltada para a c o n s t r u ç ã o do novo Homem em uma perspectiva imanente. Sartre, que viveu a t é o c o m e ç o dos anos 80, jamais abandonou essa proposta. Todas as suas personagens s ã o seres que recusam. E pretendem cumprir um passo a l é m do herói p r o b l e m á t i c o teorizado por L u k á c s como o limite da c o n s c i ê n c i a d i v i d i d a do protagonista no romance b u r g u ê s dos s é c u l o s X I X e X X .

I I - RESISTÊNCIA COMO FORMA IMANENTE DA ESCRITA

A t é aqui a r e l a ç ã o entre narrativa e resistência ética f o i descrita no interior de uma esfera de significados datada, historicamente enraizada, no caso dentro de uma cultura de r e s i s t ê n c i a política. As o p ç õ e s de cada escritor, por diferenciadas que fossem, se destacavam todas de um mesmo fundo a x i o l ó g i c o , que se pode qualificar de mentalidade antiburguesa gerada dialeticamente como um n ã o l a n ç a d o à ideologia dominante.

Deve-se, p o r é m , aprofundar o campo de v i s ã o . E detectar em certas obras, escritas independentemente de qualquer cultura política militante, uma t e n s ã o interna que as faz resistentes, enquanto escrita, e n ã o s ó , ou n ã o principalmente, enquanto tema. Quem diz escrita fala em categorias formadoras do texto narrativo, como o ponto de vista e a e s t i l i z a ç ã o d a linguagem. Vejo nesses dois processos uma i n t e r i o r i z a ç ã o do trabalho do narrador. A escrita resistente (aquela o p ç ã o que e s c o l h e r á afinal temas, s i t u a ç õ e s , personagens) decorre de um a priori é t i c o , um sentimento do bem e do m a l , uma i n t u i ç ã o do verdadeiro e do falso, que j á se p ô s em t e n s ã o com o estilo e a mentalidade dominantes.

Recorro a um conceito que subjaz à própria idéia de r e s i s t ê n c i a , o conceito de t e n s ã o . Já o utilizei para caracterizar algumas formas do romance

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brasileiro moderno. A matriz é a teoria de L u k á c s sobre o herói p r o b l e m á t i c o . A s suas r a m i f i c a ç õ e s se encontram principalmente nos estudos de Lucien Goldmann sobre as origens da t r a g é d i a jansenista de Racine (em Le dieucaché) e sobre as r e l a ç õ e s entre romance e classe em Pour une sociologie du roman .

Chega um momento em que a t e n s ã o eu/mundo se exprime mediante uma perspectiva crítica, imanente à escrita, o que torna o romance n ã o mais uma variante literária da rotina social, mas o seu avesso; logo, o oposto do discurso i d e o l ó g i c o do homem m é d i o . O romancista " i m i t a r i a " a vida, s i m , mas qual vida? Aquela cujo sentido d r a m á t i c o escapa a homens e mulheres entorpecidos ou automatizados por seus h á b i t o s cotidianos. A vida como objeto de busca e c o n s t r u ç ã o , e n ã o a vida como encadeamento de tempos vazios e inertes. Caso essa pobre vida-morte deva ser tematizada, ela a p a r e c e r á c o m o tal, degradada, sem a aura positiva com que as palavras "realismo" e "realidade" s ã o usadas nos discursos que fazem a apologia conformista da " v i d a como ela é"... A escrita de r e s i s t ê n c i a , a narrativa atravessada pela t e n s ã o crítica, mostra, sem r e t ó r i c a nem alarde i d e o l ó g i c o , que essa "vida como ela é " é. quase sempre, o r a m e r r ã o de um mecanismo alienante, precisamente o c o n t r á r i o da vida plena e digna de ser vivida.

Anos depois, pensando na i n t e r s e c ç ã o de poesia e r e s i s t ê n c i a , procurei explorar a fenomenologia das r e l a ç õ e s entre os dois campos de significado. Ganharam relevo as seguintes modalidades: a resistência da sátira e da p a r ó d i a , sem d ú v i d a as suas formas mais ostensivas; a r e s i s t ê n c i a profunda, à s vezes difícil de sondar, da poesia m í t i c a ; a r e s i s t ê n c i a interiorizada da lírica, que e n t r a n ç a os fios da m e m ó r i a com os das i m a g i n a ç ã o ; enfim, a r e s i s t ê n c i a que se faz projeto ou utopia no poema voltado para a d i m e n s ã o do futuro.

Essa gama de possibilidades p o d e r á t a m b é m ser testada nas r e l a ç õ e s que aproximam narrativa e r e s i s t ê n c i a , mesmo quando a i n t e r s e c ç ã o se d ê fora de um contexto de m i l i t â n c i a política.

Raul Pompeia, em O Ateneu, fez ora sátira direta, ora p a r ó d i a , da linguagem p e d a g ó g i c a e da retórica científica e literária predominante nas escolas para a elite de nosso Segundo I m p é r i o .

* Reporto-me às considerações sobre romance e graus de tensão que fiz no capítulo "As trilhas do romance: uma hipótese de trabalho" (História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1970. p427esegs).

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Em outro extremo, f o i pela r e v i v e s c ê n c i a dos mitos d i o n i s í a c o s e a p o l í n e o s que Thomas Mann c o m p ô s , em registro moderno, a t e n s ã o entre romantismo e classicismo, irracionalismo e racionalismo, constitutiva da cultura a l e m ã da primeira metade do s é c u l o X X .

Marcel Proust fez o passado resistir em filigrana mediante a escrita infinitesimal da m e m ó r i a . A anamnese o salva do t é d i o do presente.

Em A paixão segundo G. H. de Clarice Lispector a narrativa oscila entre o confidencial e o m e t a f í s i c o . O tempo do r e l ó g i o é suspenso e a i m a g i n a ç ã o se projeta e se desdobra em um e s p a ç o fluido e sem margens.

Pedindo v é n i a para fazer minha p r ó p r i a anamnese crítica: se, a uma certa altura, eu me orientei por uma c o n c e p ç ã o estritamente política ("positiva", p r á t i c a e militante) de cultura, bebida em L u k á c s , em um segundo momento foram Benjamin e A d o r n o com a d i a l é t i c a negativa que me fizeram reencontrar as fontes hegelianas da primeira juventude, a d i a l é t i c a dos d i s t i n t o s de Croce. Esta filosofia t r a ç a v a com nitidez a d i f e r e n ç a entre a i n t u i ç ã o , que é pura i m p r e s s ã o e imagem, e o momento da reflexão. E distinguia, com a mesma clareza, sentimento e praxis coerente.

A poesia, forma aurorai da cultura, e s t á a q u é m da teoria e da a ç ã o ética, o que n ã o significa, p o r é m , que n ã o possa conter em si a sua v e r d a d e , a sua m o r a l ; e sobretudo, o seu modo, figurai e expressivo, de revelar a mentira da ideologia, a trampa do preconceito, as t e n t a ç õ e s do e s t e r e ó t i p o .

Haveria, portanto, a possibilidade de o ato intuitivo do conhecimento resistir à m á generalidade do pseudoconceito aprofundando a verdade imanente no momento da singularidade.

E se o termo correto é anamnese, cabe à m e m ó r i a descer mais fundo e perseguir, para a l é m das teorias e s t é t i c a s laboriosamente edificadas, as m o t i v a ç õ e s primeiras que me levaram (e ainda me levam) a tomar sempre um grande texto narrativo como uma f o r m a ç ã o s i m b ó l i c a g r á v i d a de sentimentos e valores de r e s i s t ê n c i a . E o que me traz essa descida à m e m ó r i a de leitor? M e u contacto j u v e n i l , fortemente emocional, com as novelas e os contos de Pirandello.

L u i g i Pirandello viveu uma s i t u a ç ã o cultural fecunda: a da crise ou " c o n v e r s ã o do naturalismo" (a e x p r e s s ã o é de Otto Maria Carpeaux) nos fins do

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X I X . U m a s i t u a ç ã o matricial cujos desdobramentos ainda n ã o se esgotaram cem anos depois. Dela participaram n ã o s ó Pirandello como t a m b é m os mestres da nossa modernidade: Marcel Proust, em r e l a ç ã o ao naturalismo do romance francês; James Joyce, em r e l a ç ã o ao realismo do romance i n g l ê s ; Franz Kafka, em r e l a ç ã o ao realismo do romance a l e m ã o e centro-europeu.

Proust, Pirandello, Joyce e Kafka s ã o os grandes superadores da tese oitocentista segundo a qual a literatura é o "espelho" da v i d a social, logo, o discurso da c o n v e n ç ã o realista.

A m i m atraiu-se, particularmente o olhar abissal que Pirandello l a n ç o u à complexidade da persona social.

À medida que o realismo, aliado ao cientificismo, ia construindo as p e ç a s dos tipos sociais como formas de d e s c r i ç ã o e entendimento das personagens da ficção, tornava-se p r o b l e m á t i c o desvendar, ao mesmo tempo, o que pulsava dentro do tipo e por t r á s da m á s c a r a . A persona s ó existia e ganhava s u b s t â n c i a e identidade à medida que era descrita por meio dos seus caracteres ostensivos e c l a s s i f i c á v e i s : a raça, a nacionalidade, a p r o c e d ê n c i a regional, a p r o f i s s ã o , o lugar social (classe), em suma, o geral e c o m u m que aproximava o i n d i v í d u o de outros i n d i v í d u o s e recebia um r ó t u l o . A personagem era a s o m a t ó r i a de atributos: o homem mais francês mais normando, mais trabalhador nas minas de c a r v ã o , a que se acrescentavam à s vezes t r a ç o s pertinentes à carga g e n é t i c a , em particular taras ou tiques herdados de pais e a v ó s . O naturalismo, endossando teorias fatalistas, carregava as tintas dessa r e i f i c a ç ã o do ser humano procurando mostrar a força dos condicionamentos como causa primeira das suas atitudes. Em uma palavra, fechava-se o horizonte de sentido do romance performando-se os gestos, as a ç õ e s , as palavras das personagens. Dava-se azo à a u t o m a t i z a ç ã o das expectativas do leitor.

Mas havia, j á no Pirandello j o v e m , em pleno ocaso do s é c u l o X I X , e na esteira do regionalismo siciliano, uma r e a ç ã o contra a literatura forjadora de e s t e r e ó t i p o s . Os seus primeiros "tipos" s ã o e n ã o s ã o naturalistas. Trata-se de homens e de mulheres que a sociedade provinciana marginalizou; mas, se ainda prevalece nessas tentativas j u v e n i s uma certa psicologia convencional, pois o eu dos sujeitos discriminados d i s p õ e de uma unidade, de uma identidade s ó l i d a que lhes d á um caráter, aquela mesma s i t u a ç ã o de marginalidade faz deles seres a t í p i c o s , excepcionais, surpreendentes, paradoxais. Aparentemente, loucos...

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C o m o tempo e, principalmente, a partir de / / fu Mattia Pascal, romance publicado em 1904, Pirandello vai descendo ao c o r a ç ã o da m a t é r i a . O protagonista, Mattia Pascal, desgostoso com o seu meio familiar e provinciano onde se sente cada vez mais um estranho, decide evadir-se de modo d r á s t i c o : desaparece da sua cidadezinha natal; pouco depois, aproveitando-se de um acaso p r o p í c i o (o achado de um c a d á v e r de suicida difícil de identificar), consegue passar por morto. U m a identidade se esvai, outra surge. N o v o acaso: ganha uma fortuna na roleta em Montecarlo e vai para Roma liberto de todas as amarras do passado. O romance mostra, nesse primeiro tempo, a possibilidade da morte da m á s c a r a social. Possibilidade que se revela, do meio para o f i m da n a r r a ç ã o , como algo p r e c á r i o e afinal ilusório: a nova personagem, nascida do nada, e que recebera o nome fictício de Adriano Meis, t a m b é m c o m e ç a a assumir, para os outros, uma determinada fisionomia pela qual s e r á vista, julgada e cristalizada na teia social. A f ô r m a social é uma fonte de e q u í v o c o e sofrimento, um mal i n s u p e r á v e l . Adriano Meis, envolvido em um caso amoroso sem s o l u ç ã o (pois, n ã o tendo identidade c i v i l , ele n ã o existe, n ã o podendo socializar sequer as r e l a ç õ e s naturais), resolve "suicidar-se", ou seja, fugir, deixando entender que se matara. O falecido Mattia Pascal tampouco sobrevivera. Retornando à sua cidadezinha, encontra a mulher casada com outro, e j á ocupado o seu modesto posto de b i b l i o t e c á r i o . A vida se recompusera, como sempre, à revelia dos mortos e dos ausentes. S ó resta ao fantasma c i v i l levar flores à p r ó p r i a tumba. A liberdade a-social é um m i t o . A narrativa c o m e ç a precisamente nesse momento em que a c o n s c i ê n c i a tenta realizar mediante a escrita (que é s í m b o l o e ficção) o que a m á q u i n a social condena à mera veleidade.

N o cotidiano, cada um de n ó s , conclui Mattia, precisa resignar-se a afivelar a m á s c a r a correspondente à q u i l o que, em italiano, se diz com p r e c i s ã o as nossas " g e n e r a l i t à " . Generalidades: é o que consta em nossa carteira de identidade, o registro c i v i l sem o qual n ã o temos nenhuma e x i s t ê n c i a i d ô n e a e c o n f i á v e l .

A r e s i s t ê n c i a é um movimento interno ao foco narrativo, uma luz que ilumina o n ó i n e x t r i c á v e l que ata o sujeito ao seu contexto existencial e h i s t ó r i c o . M o m e n t o negativo de um processo d i a l é t i c o no qual o sujeito, em vez de reproduzir mecanicamente o esquema das i n t e r a ç õ e s onde se insere, d á um salto para uma p o s i ç ã o de d i s t â n c i a e, deste â n g u l o , se v ê a si mesmo e reconhece e p õ e em crise os laços apertados que o prendem à teia das

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i n s t i t u i ç õ e s . Nos mesmos anos em que Pirandello desnudava o conflito entre a persona

e o

f l u x o subjetivo,

Emile

D u r k h e i m

e

toda

a

cultura positivista

do

Ocidente afirmavam que o Sistema Social tinha a c o n s i s t ê n c i a dura das coisas, e que esta sua objetividade era s i n ô n i m o perfeito do termo "realidade".

Caberia ao romance e ao teatro de Pirandello e à narrativa de Proust, de Joyce e de Kafka o papel r e v o l u c i o n á r i o de dizer que a escrita pode cavar um vazio nessa espessa materialidade. O vazio, negatividade g r á v i d a de um novo estado do ser, é a c o n s c i ê n c i a jamais preenchida pelo discurso especular das c o n v e n ç õ e s ditas realistas.

A escrita resistente do p ó s - n a t u r a l i s m o emprestou voz aos m ú l t i p l o s fantasmas do sujeito que estavam recobertos pela f ô r m a de gesso da m á s c a r a social.

A escrita resistente n ã o resgata apenas o que f o i dito uma s ó vez no passado distante e que, n ã o raro, f o i ouvido por uma ú n i c a testemunha, como se dá, por exemplo, no p r i m e i r o c a p í t u l o das Memórias do cárcere .

T a m b é m o que é calado no curso da c o n v e r s a ç ã o banal, por medo, a n g ú s t i a ou pudor, s o a r á no m o n ó l o g o narrativo, no d i á l o g o d r a m á t i c o . E aqui s ã o os valores mais a u t ê n t i c o s e mais sofridos que abrem caminho e conseguem aflorar à superfície do texto ficcional.

Por sua vez, a narrativa lírica, quando atinge certo grau de intensidade e profundidade, supera, a rotina da p e r c e p ç ã o cotidiana e liberta a voz de tudo quanto esta abafou o u apartou da conversa, a t é mesmo do d i á l o g o entre amantes, amigos, pais e filhos. Dois exemplos bastam: a abertura da Crônica da casa assassinada de L ú c i o Cardoso e toda A paixão segundo G. H. de Clarice Lispector.

É nesse sentido que se pode dizer que a narrativa descobre a v i d a verdadeira, e que esta a b r a ç a e transcende a vida real. A literatura, com ser f i c ç ã o , resiste à mentira. É nesse horizonte que o e s p a ç o da literatura, considerado em geral como o lugar da fantasia, pode ser o lugar da verdade mais exigente.

* Procurei entender melhor o discurso testemunhal, distinguindo-o da pura ficção e da pura historiografia no ensaio "A escrita do testemunho em Memórias do cárcere"-Estudos Avançados. n° 23, jan./abr., p. 309-322, 1995.

Referências

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