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A liminaridade na profissão do ator = a experiência do LUME-UNICAMP

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Academic year: 2021

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Universidade Estadual de Campinas

Doutorado

Instituto de Artes

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LUIZ FERNANDO NÖTHLICH DE ANDRADE

A LIMINARIDADE NA PROFISSÃO DO ATOR:

A EXPERIÊNCIA DO LUME-UNICAMP.

Tese apresentada ao Instituto de Artes, da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do Título de Doutor em Artes.

Orientadora: Profa. Dra. Suzi Frankl Sperber.

CAMPINAS

2010

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Dedico esse trabalho a todos aqueles, homens e mulheres, que, através dos tempos, buscaram ou buscam pelos práticos motivos e reais significados

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Agradecimentos

Na ordem cronológica dos eventos curvo-me repetidamente e agradeço infinitamente: À minha irmã Adriana de Andrade que, num dia de 1989, vendo-me largado assistindo televisão, convidou-me – gentilmente – para participar de um encontro do seu grupo de teatro amador.

À Marcelo Gianini, primeiro mestre, que me fez conhecer o teatro a partir da sua essência: o jogo.

Aos meus pais, Mauro Villela e Gerda Nöthlich, por me permitirem escolher e experimentar o Teatro e a Vida. E por me apoiarem e por compartilharem sobre as nossas descobertas, sempre.

Aos meus irmãos Carlos Eduardo de Andrade e Paulo Márcio de Andrade. Pela Amizade construída e compartilhada.

À Maria Thaís Lima Santos pela Escola Livre de Teatro de Santo André, pelos anos na Unicamp e por fazer Vsevolod Meyerhold reviver entre nós.

Ao Jean Pierre Kaletrianos, pelos anos na E.L.T e no E.T.R.A. Agradeço-lhe, eternamente, pela ‘História das Mariposas’ que nos contou e propôs para encenar, numa noite de 1991, durante o curso de formação da E.L.T..

Ao Carlos Augusto Carvalho, pelos ensinamentos na E.L.T. e pelos ‘Anos de Aprendizado’ que se seguiram.

À Andreia Almeida, primeira companheira de Viagem. Pela transformação conquistada. Aos Amigos Fraternais, à Robert Burton e à todos os outros buscadores: tanto os que se foram quanto os que permanecem.

À Joana Lopes pelos anos de trabalho no Grupo Interdisciplinar de Teatro e Dança na Unicamp.

À Marcos de Souza Queiroz pelos anos de orientação acadêmica e intelectual na iniciação científica dos tempos da Graduação e pela colaboração no Mestrado.

À Theda Cabrera. Por aquilo que aprendemos juntos e sozinhos.

À João Araújo. Pelo ‘Princípio do Espanto’, pela Grande Amizade e pelos anos de aventuras através do Teatro de Bonecos junto com ‘Jacó’, ‘Robertinho’ e companhia.

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À Rosângela Pedroso. Pelas aulas de Yoga Clássico, pelas conversas inspiradoras e pelo Amor compartilhado.

À familia Burg pela amigável e sempre excelente vizinhança: Guga, Brisa, Rosa, Ivens, Joana, Anaí e Maria.Também ao Guga e à Brisa pelas conversas artísticas e pelos auxílios acadêmicos.

À Tatiana Motta Lima, por acolher de forma tão receptiva aos meus interesses sobre a sua pesquisa e pelos seus admiráveis esforços na concretização do Congresso Grotowski 2009 na UNIRIO.

Aos colegas do grupo de literatura e dramaturgia coordenado por Suzi Sperber: Régis Closel, Liliane Negrão, Marília Gomes Henrique, Jorge Henrique Romero e Jaqueline Castilho que, juntos e a seus modos, se dispuseram a participar dessa fantastica aventura que é estudar a obra de William Shakespeare. Algo que, por vias indiretas, muito contribuiu para a finalização desse texto.

À Suzi Frankl Sperber. Pela Orientação, pela Sabedoria, pela Coragem e acima de tudo pela sua Dignidade Humana.

Agradeço muito à José Barbosa e à todos os funcionários do LUME que, atenciosamente, sempre se colocaram à disposição quando se fez necessário à pesquisa.

Agradeço, muitíssimo, a todos os atores-pesquisadores do LUME junto dos quais essa pesquisa pôde ser realizada: Luís Otávio Burnier (em memória), Carlos Simioni, Ricardo Puccetti, Ana Cristina Colla, Jesser de Souza, Raquel Hirson, Renato Ferracini e Naomi Silman. Ao Tadashi Endo também e à Suzi Sperber novamente.

Agradeço, em especial, à FAPESP, pelo auxílio financeiro que permitiu que prosseguíssemos a pesquisa até o ponto requerido.

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“Como olhar para o outro com este aspecto “nunca antes”, este aspecto momentâneo, instantâneo, com essa atenção que não comporta nenhum julgamento,

mas que é imediata: você é tal como você é ? Só se o outro não se esconder, em nenhum sentido da palavra,

quer psíquico, corporal ou carnal; e se nós mesmos não nos escondermos.”

(Conferência de Jerzy Grotowski no Teatro Nacional de Comédia – Rio de Janeiro, 1974.)

A história das Mariposas.

Uma noite as mariposas reuniram-se atormentadas pelo desejo de unir-se à vela. Disseram todas: "Temos de encontrar alguém que possa dar-nos notícias do objeto de nossa busca amorosa". Uma mariposa foi então até um distante castelo e avistou no interior a luz de uma vela. Ela retornou e contou o que havia visto; pôs-se a fazer a descrição da vela de acordo com sua inteligência. Porém a sábia mariposa que presidia a reunião advertiu que a mariposa exploradora nada sabia sobre a vela. Outra mariposa aproximou-se da luz e tocou com suas asas a chama: a vela foi vitoriosa, e a mariposa vencida. Esta última também re-tornou e revelou qualquer coisa a respeito do mistério; explicou, segundo sua própria experiência, em que consistia a união com a vela. Porém a sábia mariposa lhe disse: "Tua explicação não é melhor que aquela que foi dada por tua companheira".

Uma terceira mariposa voou, ébria de amor, e atirou-se violentamente contra a chama da vela: impulsionada por suas patas traseiras, ela estendeu ao mesmo tempo suas patas dianteiras em direção à chama. Perdeu a si mesma e identificou-se alegremente com a chama; abraçou-a por completo e seus membros tornaram-se vermelhos como o fogo. Quando a sábia mariposa, chefe da reunião, viu ao longe que a vela havia identificado o inseto consigo mesma e lhe havia dado sua aparência, disse: "A mariposa conheceu o que queria saber; porém somente ela o compreende, e eis tudo". (A linguagem dos Pássaros – Farid ud-Din Attar – século XII

d.C.)

À escuridão estão destinados os que cultuam somente o corpo, e a uma escuridão ainda maior os que veneram apenas o espírito. Cultuar somente o corpo leva a um resultado, venerar apenas o espírito leva a outro. Assim falaram os sábios. Os que veneram tanto o corpo como o espírito, pelo corpo vencem a morte, e pelo espírito atingem a imortalidade.

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Resumo da Tese

Resumo - “Utilizando e desenvolvendo o conceito de “liminaridade” e “communitas” de Victor Turner, estuda-se o processo pelo qual um ator se afasta da sua personalidade social cotidiana e descobre, nele mesmo, novas perspectivas e qualidades de

ser e estar até então desconhecidas ou esquecidas, que o capacitam ao processo criativo.

Procura na filosofia e na religião (oriental e ocidental) e em algumas tradições esotéricas (em Gurdjieff e na Yoga, por exemplo) registros que possivelmente sejam precursores deste processo que, não sendo propriamente do teatro, chegou ao teatro em alguns momentos da sua história.

Investiga-se sobre a existência e a importância desse processo dentro da pesquisa artística desenvolvida pelo LUME - Unicamp, a qual foi vivenciada na prática e na teoria. Luís Otávio Burnier – fundador do LUME - em sua tese, por exemplo, fala em acordar a ‘pessoa’ do ator e dinamizar suas ‘energias potenciais’ mais profundas utilizando o ‘treinamento energético’. Procurando estudar o processo psicofísico que está por detrás do trabalho com a exaustão física promovido por este ‘treinamento energético’ investiga-se a razão pela qual ele poderia ser chamado de uma espécie de técnica psicofísica vertical. Estudando os contextos e experiências através dos quais essa técnica foi transmitida a Burnier, investiga-se também como este interesse por técnicas verticais, que promovem a dimensão criativa do ator, esteve presente em diversas pesquisas cênicas do século XX.

Nesse sentido, também é feito um breve estudo das trajetórias de Stanislavski, Grotowski e Peter Brook que, a seus modos, aproximaram a arte teatral de um trabalho sistemático de busca por uma qualidade humana no momento da realização do evento artístico. ”

Palavras-chave: Representação teatral, Criatividade, Atores – trabalho, Antropologia social, Espiritualidade.

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Abstract

Abstract - “Using and developing the concept of “liminality” and "communitas" by Victor Turner, this studies the process by which an actor departs from his daily and social personality, discovering in himself new perspectives and qualities of being, unknown or forgotten, that enable him in the creative process. Looking to philosophy and religion (Eastern and Western) and some esoteric traditions (Gurdjieff and Yoga, for example) we look for records that could be precursors of this process, which were not quite theater, but became theater in a few moments of its history

Then, we investigate the existence and importance of this process within the art research developed by LUME - Unicamp, which was experienced both practically and theoretically. Luís Otávio Burnier – the LUME founder - in his thesis, for example, talks about how to awaken the 'person' of the actor and how to activate his deeper 'potential of energy' using a kind of ‘energetic training’. By studying the psychophysical process that lies behind the work and the physical exhaustion entailed by this 'training', we realize why it could be called a kind of vertical psychophysical technique. Studying the context and the experiences through which this technique was passed on to Burnier, we see how this interest in vertical techniques, that promote the creative dimension of the actor, can be found in several studies of the performing arts in the twentieth century.

A brief study is also made of the trajectories of Stanislavski, Grotowski and Peter Brook who, in their own ways, brought theatrical art to a systematic search for a human

quality in the moment of the artistic event.

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Sumário

I - Introdução - LUME: como o conheci e como me propus a (re) conhecê-lo

1.1 Primórdios._________________________________________________________01 1.2 Objetivos.__________________________________________________________07

1.2.1 Sobre a representação no teatro e na vida. _________________07

1.2.2 O estudo do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais em sua dimensão artística. ______________________________________________________________09

1.2.3 O estudo do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais em sua dimensão institucional. ___________________________________________________10

Parte I – A liminaridade na Profissão do Ator II – O trabalho sobre si mesmo.

2.1 - Sobre a Arte do Ator. ________________________________________________12 2.2 - A Possível Mudança do Estado de Consciência. ___________________________17

2.2.1 - O mito da caverna de Platão.___________________________17 2.2.2 - George Gurdjieff e Peter Ouspensky. ____________________28

III - Liminaridade e “Communitas”.

Introdução_____________________________________________________________77 3.1 – Do Ritual ao Teatro. ________________________________________________79

3.1.1 - O Processo Ritual.___________________________________81 3.1.2 - O Ritual, a “Communitas”, a Liminaridade e o Teatro. ______84 3.1.3 - O Drama Social ou o Drama Ético.______________________98 3.1.4 - O Drama Social e o Drama Estético._____________________102

3.2 – Arte, Ciência, Filosofia e Religião. _____________________________________106

IV – O trabalho do ator sobre si mesmo.

4.1 – Konstantin Stanislavski.______________________________________________107 4.1.1 – Redescobrindo Stanislavski.___________________________107

4.1.2 Sobre a passagem da literatura dramática à cena viva do jogo teatral no último experimento de Stanislavski sobre “O Tartufo” de Molière.________116

4.2 – Jerzy Grotowski.____________________________________________________131 4.2.1 – Redescobrindo Grotowski.____________________________131

4.2.2 - Técnica 1 e Técnica 2.________________________________147

Parte II – A experiência do LUME – Unicamp.

Introdução.____________________________________________________________158 Material e Métodos._____________________________________________________159 V –- O LUME e a liminaridade – A perspectiva atual.

5.1 – “Você” ___________________________________________________________166 5.1.1 - Pequenas Notas sobre o “Butoh”. _____________________166

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5.1.2 - As circunstâncias do projeto._________________________170 5.1.3 - A matéria prima. __________________________________174 5.1.4 - A escolha do olhar. ________________________________177 5.1.5 - O Vazio Liminar no Trabalho do Ator._________________184 5.1.6 - Pequena Conversa Final.____________________________213

5.2 – “Não tem “Flor Quadrada” ___________________________________________218 5.2.1 – Trajetória. _______________________________________219

5.2.2 – O Processo de Criação. Dias de trabalho._______________229 5.2.3 - Estudos sobre a Liminaridade no trabalho do Ator.__257

Vida, forma e matéria no trabalho do ator.____ 257 O portão estreito._____________________________267

VI - O LUME e a liminaridade - Os Dramas Sociais e a ‘Communitas Normativa’

6.1 - Pequenas notas da trajetória artística de Burnier. __________________________279 6.2. Pequenas notas da trajetória artística do LUME. ___________________________291

VII - O LUME e a liminaridade – Da prisão à liberdade.

7.1 – Prisão para a Liberdade – O Primeiro LUME. ____________________________ 321 Primeira Tese: As energias potenciais do ator.___________________321

7.2 – Experiências práticas com o treinamento ‘energético’ nos cursos do LUME. ____329 7.2.1 - Para que serve o ‘treinamento energético’?______________329

7.2.2 - Descrição.________________________________________334 7.2.3 – Pontos de vista sobre o trabalho com a exaustão._________347

A exaustão do ponto de vista do desenvolvimento humano.__348 A exaustão do ponto de vista do processo artístico criativo.__360 Experimentos. _____________________________________370

7.3 – A liminaridade nas linhas de trabalho do LUME. __________________________378 7.3.1 - O Corpo a Mente e o Coração Dilatados no ‘Clown’.______378

7.3.2 - Os Corpos Dilatados na ‘Mimesis Corpórea’.____________387 7.3.3 - Perspectivas e possibilidades. _______________________394

7.4 – Prisão para a Liberdade – O Segundo LUME._____________________________399 Segunda Tese: O estado da fonte criadora.____________________400

7.4.1 – O Ato. __________________________________________401 7.4.2 – Apagando a musculatura e libertando o prisioneiro._______403 7.4.3 – Liberando-se do ‘ego’.______________________________404 7.4.4 – “Communitas”. ___________________________________406

VIII - Conclusão. _______________________________________________________410

IX - Bibliografia. ________________________________________________________416 X – Anexo 1 – Estudos auxiliares.__________________________________________422 Anexo 2 - Estudos auxiliares. _________________________________________449

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I - INTRODUÇÃO - O LUME: como o conheci e

como me propus a (re) conhecê-lo.

1.1

-Primórdios

Em 1991, há 18 anos atrás, estive, por 10 dias, em uma fazenda no município de Louveira, interior de São Paulo, com mais 15 pessoas. Acordávamos cedo, cinco ou seis da manhã; logo tínhamos, em uma grande e única mesa, o café e em seguida saíamos para uma leve corrida pelas estradas de terra da região. Retornávamos para a Casa Grande e numa sala no segundo andar, começávamos uma espécie de treinamento físico. Treinamento do corpo e sua capacidade de articulação; explorando novas possibilidades de movimentos, seus limites, suas qualidades de energia. Pulávamos, saltávamos, rolávamos pelo chão, caminhávamos de diferentes formas, corríamos pela sala cada vez mais velozes, parávamos, escutávamos a nossa respiração ofegante, procurávamos controlar seu barulho e seguíamos. Superando várias vezes o cansaço e a falta de vontade para continuar, depois de quatro horas experimentando dinâmicas corporais diferentes, tínhamos uma pausa para o almoço. À tarde, retomávamos o treinamento e em seguida iniciávamos com a representação de uma longa cena que duraria quase toda a semana: o dono de um circo precisava de palhaços para trabalhar em seu picadeiro e todos que estavam ali eram candidatos que deveriam apresentar suas habilidades cômicas. Um por um, os candidatos passavam pelo olhar atento e severo do dono do circo: atentamente revelador do potencial cômico natural a cada candidato; mas também severamente expositor dos clichês e das falsas representações cômicas que eles traziam consigo. A representação terminava e já eram por volta das seis da tarde, hora de descansar, tomar banho e retornar para a grande mesa de jantar. A cada noite, após a janta, tínhamos uma atividade diferente (caminhada noturna, filmes cômicos, canções coletivas, criação de um personagem bufão, etc.) após a qual íamos dormir. E a cada nova manhã, um pequeno grupo de 3 a 4 pessoas deveria criar um modo diferente de despertar todo o restante do grupo que dormia pelos quartos da fazenda. Tudo isto durante um pouco mais de uma semana.

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O motivo da minha ida a esta fazenda era o meu interesse pelo teatro. Tinha 21 anos de idade e havia acabado de deixar os estudos na faculdade de Física, para me tornar um ator. Estudava teatro na Escola Livre de Teatro de Santo André e, através de alguns contatos que tive ali, foi possível me inscrever e participar em Louveira deste "Retiro de Clowns"; que era um curso de uma semana de introdução à técnica e construção do “clown”, oferecido pelo grupo LUME da Universidade Estadual de Campinas. Quem coordenava o curso, atuando também como dono do circo, era Luís Otávio Burnier, o diretor artístico do LUME.

Após alguns dias de trabalho na fazenda, num determinado momento em que tínhamos terminado o treinamento da manhã, Burnier reuniu o grupo e propôs que a atividade noturna daquele dia seria fazer uma viagem até São Paulo, ao teatro municipal, para assistir a uma peça de Ibsen, dirigida por Bob Wilson: "Quando nós, mortos, despertamos", num festival internacional. O grupo aceitou a proposta e fomos.

Era um domingo. Após o almoço, andamos a pé até a saída da fazenda, que ficava numa estrada vicinal de terra. Ali esperamos a carona que logo veio na caçamba de um caminhão que passava. Chegamos à antiga estação de trem da região, que cortava a pequena cidade e, num comboio de vagões antigos puxados por uma "maria fumaça", seguimos viagem à estação de trem de Jundiaí, cidade mais que grande comparada à anterior. Do contato com as pessoas da estação de Louveira, ao contato com as pessoas de Jundiaí, que pegavam o trem subúrbio para a metrópole São Paulo a sensação vivida já era diferente, mas não sabia ainda explicar porquê. A viagem foi longa, sentado nos bancos de plástico duros, olhando de frente às pessoas do outro lado do trem. Lembro, então, de ter reparado nas pessoas como nunca havia feito. "Quem eram elas?"; perguntava-me, ao mesmo tempo em que notava uma flagrante ausência em seus olhos. Ausência de pessoas que se sentam tão próximas umas das outras, mas permanecem tão distantes, alheias, como se uma barreira invisível impedisse um possível contato. Se na estação de Louveira a barreira invisível entre os passageiros era menor, tive a nítida sensação que na fazenda, através do trabalho diário, estivemos enfraquecendo a existência de tal barreira em nossos olhos. Lembro de ter-me surpreendido com a feiúra da paisagem que vinha se transformando pela janela do trem, conforme chegava a São Paulo. E pegamos o metrô e nunca pensei que fosse tão rápido como eu o via e o sentia estando dentro dele, naquele dia.

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Mais pessoas no vagão do metrô e estas estavam vestidas diferentes, eram mais ricas ou vinham de lugares de melhor condição social. Mas me lembro de tê-las percebido igualmente ausentes entre si. Estação do Anhangabaú, a cidade gigante, e finalmente estávamos em frente do teatro municipal. A entrada na platéia, as cadeiras, o tapete vermelho e olhando para o alto, aquele teto imenso nas alturas. Da peça “Quando nós, mortos, despertamos”, que era falada em inglês e eu não conhecia a estória, lembro do cenário e de algumas cenas isoladas. Lembro de ter adormecido ao sentar na confortável cadeira da platéia, exausto pela experiência de ter assistido à minha vida chegando a São Paulo como se fosse a primeira vez. Após o teatro, voltamos de ônibus a Jundiaí e depois a Louveira. O espetáculo da vida voltava à cena.

Após a conclusão do curso, deveríamos escrever um relatório sobre a experiência vivida naquela semana. Transcrevo, aqui, algumas linhas daquilo que pouco tempo atrás, encontrei como rascunho do relatório, num antigo caderno guardado no armário e que dá seqüência à narrativa:

"Quebras periódicas no ciclo cotidiano de vida dos seres humanos são

fundamentais para a descoberta de um ser interior escondido e sufocado. A monotonia do dia a dia, em seu caráter minimalista, nos coloca continuamente em situações e relações estabelecidas, em lugares conhecidos e com pessoas conhecidas; o que faz com que nossas reações humanas tendam a ser mecânicas, irrefletidas nos seus princípios e reprimidas na sua exteriorização.

Um fato ocorrido durante a semana clown e que ilustra isso muito bem, ocorreu no domingo à noite, quando voltávamos para a fazenda. Compramos passagens de ônibus para Jundiaí no horário das 20:30 e, na hora de embarcar, notamos junto ao motorista que a minha passagem e a de mais duas pessoas tinha saída marcada para as 20:15, de modo que já havíamos perdido o ônibus. A primeira reação que brotou entre o grupo foi de revolta com o motorista e em seguida uma certa agressividade no diálogo. Quem estava errado, o vendedor que havia se enganado no horário ou o grupo que não havia conferido a passagem?

A tendência que temos em nos armarmos até os dentes e deixar-nos levar pelo falatório interior das nossas mentes em situações como essas, resultou em frases absurdas como: “A gente vai nesse ônibus nem que seja à força” ou “Pra sair o senhor (motorista) vai ter primeiro que passar por cima de nós” ou coisas parecidas. Afinal, o ônibus partiu sem nós e acabamos por admitir nosso erro. Voltamos ao guichê, e mais calmos conseguimos trocar as passagens estouradas.

A semana de retiro em uma fazenda, como proposta de trabalho é muito interessante pois existe uma situação nova, num lugar desconhecido, com pessoas desconhecidas. A situação é desafiante e me leva a refletir no meu modo de agir, no meu modo de me relacionar, no meu modo de ser... e chega-se a uma fase de estar consigo mesmo, um processo de auto-conhecimento que sinto serem fundamentais para o trabalho do ator.” (Relatório da Semana Clown - 2

°

semestre de 1991.)

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Todas as impressões deste dia ficaram gravadas na minha memória de maneira muito nítida, como se eu tivesse experimentado a vida deste dia mais do que a de muitos outros, tanto antes, como depois dele. Acho que só o vivi assim, pois tinha me submetido às condições exteriores exigidas para fazer o curso. Eram condições totalmente diferentes da minha vida diária naquela época: acordar muito cedo, treinar por horas, submeter o corpo a inúmeras superações de cansaço e descobertas de camadas escondidas de energia, viver todo o tempo em uma fazenda com um grupo de pessoas que quase não havia tido contato anterior, respeitar regras de horários para iniciar e terminar as atividades e outras regras internas de comportamento do grupo. Mas também, e principalmente, porque havia me submetido às condições do processo de construir um “clown”, um ser cômico a partir das minhas próprias características pessoais. Este processo foi como que “descascando” camadas daquilo que eu era, ou daquilo que eu supunha ser; e revelando novos modos de agir e me comportar que surgiam de dentro de mim, e encontravam expressão através das representações diante do dono do circo. Se havia algo que a experiência com o LUME me havia mostrado, este algo era o fato de que eu não conhecia a mim mesmo. Conhecia a mim mesmo enquanto ser social nos meus aspectos mais exteriores e nos meus comportamentos cotidianos, mas pude, então, visualizar claramente que a experiência com o teatro e com o “clown” estimulava capacidades e características da minha pessoa que eu simplesmente desconhecia e não eram utilizadas no dia a dia.

Fora justamente esta percepção que me havia atraído para as artes cênicas, um ano e meio antes, mas nesta ocasião ela se tornou especialmente nítida. Isto por que a partir desta atmosfera e deste estado criado pelo encontro na fazenda, saí em direção à vida social cotidiana que eu mesmo experimentava todos os dias andando de trem e andando apressado pelas ruas da cidade. E deste confronto de situações notei, em mim mesmo, que eu não era aquilo que havia me acostumado a ser: era alguma coisa a mais.

A partir desta experiência até chegar ao mestrado e, em seguida, ao doutorado direto em Artes na Unicamp se passaram mais de dez anos, nos quais tive a oportunidade de estudar, trabalhar e me aprofundar na atividade teatral, tanto como ator, assim como na qualidade de diretor e professor de oficinas de iniciação artística. Muitas vezes me surpreendi com esta possibilidade que o fazer teatral possibilita àqueles que a descobrem e não a temem. E percebi que ela podia acontecer tanto em atores profissionais já

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consolidados e amadurecidos, como em jovens e adultos sem qualquer experiência artística anterior. De certa maneira ela direcionou as minhas opções e decisões como artista e pesquisador e está diretamente conectado ao tema e ao motivo pelo qual escolhi escrever esta tese.

Há uns oito anos atrás, quando terminava a graduação em artes cênicas, me deparei com um livro de um antropólogo inglês chamado Victor Turner. Num dos capítulos de seu

O Processo Ritual, livro que estuda os processos rituais de tribos africanas, encontrei a

definição do conceito de “communitas” que, lido como está, se aproxima muito desta e de outras experiências práticas que tive com o teatro. Transcrevo o trecho onde reconheci a similaridade com estas experiências:

“Essencialmente, a “communitas” consiste em uma relação entre indivíduos concretos, históricos, idiossincrásicos. Estes indivíduos não estão segmentados em função e posições sociais, porém defrontam-se uns com os outros mais propriamente à maneira do “Eu e Tu”, de Martin Buber 1, um confronto direto, imediato e total de identidades

humanas.” (Turner, O Processo Ritual, 1974, p.161.)

A palavra: “idiossincrásico”, que se refere à “idiossincrasia” significa:

“1. Disposição do temperamento do indivíduo, que o faz reagir de maneira muito pessoal à ação dos agentes externos. 2. Maneira de ver, sentir, reagir, própria de cada pessoa.” (Aurélio Buarque de Holanda, Dicionário Básico da Língua Portuguesa)

e imediatamente me remeteu à experiência de construir um ser cômico, um “clown” a partir das próprias características naturais, físicas e psicológicas, expondo-as diante dos outros, dentro de um espaço de confiança e respeito mútuo, e se alçando acima de todo tipo de vergonha e pudor, que normalmente sentimos na vida em sociedade. Isto é, me dei conta de que através do teatro, através da experiência em um retiro de “clowns”, através da experiência artística, as pessoas envolvidas, lenta e progressivamente, podiam se aproximar de “um novo e possível estado de relacionamento entre seres humanos” ao qual Turner dá o nome de “communitas”.

Turner utiliza esse termo “communitas”, em seu livro, inicialmente em referência a rituais de iniciação e cura por ele observado nos anos em que viveu junto à tribo dos “Ndembo”, na África. Aqueles que participam dos rituais religiosos organizados dentro de

1 Martin Buber (1878-1965)

Um dos maiores representantes do pensamento judáico no século XX, foi sobretudo um grande estudioso e expoente do hassidismo, corrente do judaismo que floresceu a partir do século XVIII.

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uma tribo “desvestem-se” da sua condição e papel na sociedade e passam a viver num novo espaço-tempo, um espaço-tempo recluso e sagrado de “liminaridade” social. É através dos rituais que uma tribo estabelece e recupera o equilíbrio do “drama social” vivido por seus membros:

“... à medida que nos tornávamos cada vez mais parte do cenário da aldeia descobrimos que com grande freqüência as decisões de executar um ritual estavam relacionados com crises na vida social das aldeias... ... que a multiplicidade de situações de conflito estava correlacionada com uma alta freqüência de execuções rituais.” (Turner,

O Processo Ritual, 1974, p.24.)

Seguindo a sua linha de estudo em “O Processo Ritual”, após descrever uma série de diferentes exemplos de rituais, encontrando os símbolos e o modo de operação destes símbolos dentro da vida dos “Ndembu”, ele passa a tentar reconhecer a existência de “communitas” em diversos períodos históricos tanto na civilização ocidental como na oriental reconhecendo que:

“A “communitas” irrompe nos interstícios da estrutura, na liminaridade; nas bordas da estrutura, na marginalidade; e por baixo da estrutura, na inferioridade. Em quase toda a parte a “communitas” é considerada sagrada ou “santificada”, possivelmente porque transgride ou anula as normas que governam as relações estruturadas e institucionalizadas, sendo acompanhadas por experiência de um poderio sem precedentes... ...A liminaridade, a marginalidade e a inferioridade estrutural são condições em que freqüentemente se geram os mitos, símbolos rituais, sistemas filosóficos e obras de arte.(Turner, O Processo Ritual, 1974, p.156.)

E é a partir deste ponto de vista que conecto o termo “communitas” com a minha experiência com o teatro, e mais especificamente com a minha experiência naquele retiro de “Clowns” organizado pelo LUME. Deste modo, surgiu o tema desta tese que se propõe a estudar, através de diferentes perspectivas (artística, filosófica, antropológica e esotérica), o trabalho do ator no teatro de arte, o trabalho do ser humano no teatro da vida, e, mais especificamente, o caso da trajetória de trabalho de pesquisa artística realizado pelo Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais, o LUME.

(19)

1.2 – Destes que são os objetivos da tese.

1.2.1 Sobre a representação no teatro e na vida.

Quando entrei para uma faculdade de artes cênicas em 1998, já tinha estudado e pesquisado sobre o trabalho do ator em diferentes tipos de experiências artísticas. Havia a necessidade de ser um ator reconhecido legalmente, tirar um D.R.T., como se diz, e havia o interesse de me aproximar novamente da universidade. Mas quando de fato passei no vestibular da faculdade, me propus o objetivo de realizar uma investigação de caráter pessoal sobre o ato humano de representar um papel, fosse este como ator dentro de um contexto poético e artístico, fosse este como ator social dentro de um contexto institucional e quotidiano. Durante os quatros anos em que freqüentei a faculdade de artes cênicas da Unicamp, tive em mente o objetivo de tentar estar ciente de que, naquele contexto, estava vestindo “o papel de estudante universitário” dentro de uma turma de alunos de artes cênicas. Gostaria de fazer observações e aprender das minhas experiências não só dentro do exercício da arte do ator de teatro, mas também e principalmente dentro da cena que acontece entre os personagens sociais de uma faculdade de artes cênicas: alunos, professores, pesquisadores, funcionários, a direção do instituto e outros personagens secundários e não menos importantes que entram e saem da construção dramatúrgica da vida de uma faculdade de artes, estando o próprio LUME, com alguns dos seus atores-pesquisadores, dentro dessa categoria.

Antes de chegar à universidade quis muito encontrar um grupo de atores que vivessem financeiramente do seu próprio trabalho e que ao mesmo tempo o realizassem com uma certa qualidade ética e estética. Mas a não ser por algumas experiências e encontros que havia tido com pessoas e grupos de teatro em que podia reconhecer esta certa qualidade ética e estética, por mim mesmo eu não a sabia definir nem a realizar. Após algumas experiências difíceis e alguns bons resultados pontuais, verifiquei que muitas vezes a maior dificuldade que um grupo de atores empenhados em fazer teatro enfrenta não acontece dentro da cena, mas sim fora dela, nas cenas da vida social, no relacionamento cotidiano entre eles próprios. Em nenhum lugar é fácil manter um nível de respeito, confiança, entendimento e compreensão no relacionamento entre as pessoas; mas no ambiente teatral, que geralmente já é carente de uma estrutura financeira e institucional que o ampare, quando acontece a crise e a ruptura emocional entre os atores, a qualidade do

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trabalho e da criação artística torna-se notadamente prejudicada. Um ambiente emocional ruim parece ser incompatível com a boa qualidade artística. Ao mesmo tempo crises, desafios, inquietações, desassossegos e descondicionamentos das relações estabelecidas consigo próprio e com os outros parecem ser ingredientes determinantes do processo artístico criativo. Qual seria o ingrediente suplementar que faz com que atores, diretores e produtores, em meio a crises, desafios, inquietações, desassossegos e descondicionamentos, consigam produzir sustento; não só o de sobrevivência básica mas também, sustento com propriedades e qualidades criativas para si e para o público?

Entendia que a qualidade ética e estética que almejava não era tanto uma questão de mais ou menos conhecimento, ou mais ou menos experiência, mas muito mais uma certa qualidade de ser que podia reconhecer em certas pessoas e em outras menos, mas que eu mesmo não possuía. Entendia que as minhas limitações enquanto pessoa dificultavam os meus anseios enquanto artista e que definitivamente o ator e a pessoa do ator se influenciavam reciprocamente. Portanto, gostaria de observar e aprender sobre a minha representação social cotidiana, não só sobre a minha, mas sobre a dos outros também.

Decidi, assim, que iria fazer graduação em Artes Cênicas na Unicamp, continuando a desenvolver a minha experiência e aprendizado como ator, ao mesmo tempo em que trabalhava sobre a minha qualidade de atuação enquanto pessoa. Quando estava em cena como ator, onde eu estava? Quando estava vivendo a minha vida com os colegas e professores, eu também estava atuando? Por que não conseguia viver com a mesma qualidade de atenção que conseguia quando estava em cena? Quando estava sozinho, na minha própria existência cotidiana, ainda assim eu estava em cena? Quem era eu na vida de todos os dias? Afinal, quem sou eu? Quem é você?

Inevitavelmente, esta experiência acabou tendo uma forte influência no como desenvolvi esta pesquisa de mestrado e doutorado direto. Foi a partir dela que encontrei os escritos dos antropólogos Victor Turner, Martin Buber, Richard Schechner, Irwing Goffman, George Gurdjieff, Peter Ouspensky, e muitos outros, que escapam às classificações científicas daquilo que se entende por ‘antropologia’, mas que também vieram a se somar e se encaixar com aquilo que já havia lido de Jerzy Grotowski, Thomas Richards, Eugenio Barba, Peter Brook e Konstantin Stanislavski; pesquisadores que direta

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ou indiretamente influenciaram atores e diretores de teatro que orientaram o meu aprendizado prático como ator e pesquisador de teatro.

Estudando o processo pelo qual um ator se afasta da sua personalidade social cotidiana e, através do espaço tempo poético (treinamento, ensaio, pesquisas e apresentação), descobre, nele mesmo, novas perspectivas e inesperadas qualidades de ser e

estar até então desconhecidas ou esquecidas por ele; o primeiro objetivo dessa tese será,

portanto, aquele de comparar esse processo a um "processo ritual", como aquele estudado por Turner. Auxiliado pelos escritos dos referidos autores da antropologia, da filosofia, do teatro e de tradições esotéricas de diferentes épocas e contextos; se tentará organizar e expressar algumas perspectivas sobre o ato humano de representar um papel dentro e fora do teatro, dentro e fora da vida cotidiana, delimitando com precisão as margens que separam a arte da vida, a vida ritual da vida social, mas encontrando um ponto de comunhão e influência recíproca entre ambas. A partir daí, é que começa o estudo sobre o Núcleo de Pesquisa Teatrais da Unicamp – o LUME.

1.2.2 O estudo do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais em sua dimensão artística.

O Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais – LUME, fundado em 1985, portanto hoje com mais de 20 anos de atividades, chama a atenção dentro do cenário cultural brasileiro não só pela continuidade, mas pela qualidade de suas pesquisas sobre a arte do ator. Com sede na Universidade Estadual de Campinas, o LUME faz um trabalho de pesquisa original, de eminente caráter prático, que está arvorado na tradição da pesquisa sobre a arte do ator iniciada por Stanislavski e continuamente desenvolvida ao longo de todo século XX pelos mais diversos pesquisadores: Meyerhold, Decroux, Grotowski, Eugenio Barba, Peter Brook entre outros.

Dialogando com esta tradição, Luís Otávio Burnier e seus colegas buscaram uma metodologia de elaboração, codificação e sistematização de uma técnica pessoal de representação através da dilatação e dinamização das energias potenciais do ator (suas vibrações corpóreas), e em como transpor essa técnica pessoal para um processo de montagem de espetáculo: A “Dança Pessoal”, a “Mímesis Corpórea” e o “Clown” são as três linhas básicas deste trabalho.

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Por trás das palavras e dos conceitos sabemos que a experiência do LUME é, desde o seu início, permeada por valores liminares e experiências que nos remetem à “communitas” de Turner. Sobre seu primeiro contato com a proposta de pesquisa de Luís Otávio Burnier e sobre a compreensão do cerne desta proposta, Carlos Simioni, co-fundador do LUME nos conta:

“... para a maravilha dos meus olhos, dos meus sentimentos, e das minhas sensações, era o físico do ator, era a alma do ator, era o sentimento do ator, era uma inteireza... Pela primeira vez eu vi um ser humano em estado de plenitude. Eu estou dizendo tudo isso só para dizer que é aqui que está o cerne, o primeiro cerne de todo o trabalho artístico do LUME. É nesse tópico: da plenitude e da presença do ator, e dentro do trabalho físico que engloba físico, espiritual, energético, sensorial, engloba toda a potencialidade do ator. E o Luís queria exatamente isso: trabalhar a técnica da arte do ator.” (Entrevista com Carlos

Simioni, 2000.)

Utilizando e desenvolvendo o conceito de liminaridade e “communitas”, instituído por Turner, investigaremos sobre a existência e a importância deste processo - pelo qual um ator se afasta da sua personalidade social cotidiana - dentro da pesquisa artística desenvolvida pelo LUME, comparando-a com outras correntes históricas e pesquisas da arte do ator, fundamentadas pelo mesmo processo. Mais especificamente, estudaremos a trajetória de três pesquisadores do século XX que, a seus modos, aproximaram a arte e o fazer teatral a um trabalho sistemático de busca por uma qualidade humana na concretização do evento artístico: Konstantin Stanislavski, Jerzy Grotowski e Peter Brook.

1.2.3 O estudo do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais em sua dimensão institucional.

No momento em que a Unicamp abriga o LUME de forma institucional como Laboratório vinculado ao Instituto de Artes e oito anos mais tarde, em 1993, como Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais; esta experiência passa a ser um “communitas normativo”. Vale dizer, isto ocorre “quando a “communitas” existencial passa a organizar-se em um sistema social duradouro,” (TURNER, 1974), com uma estrutura fundamentada em princípios internos e próprios de gestão e convivência social. O LUME passa a ter uma existência dupla: tanto para se estabelecer enquanto instituição de pesquisa, lidando com as normas e os parâmetros ditados pela universidade, mobilizando e organizando recursos e

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criando papéis sociais internos; quanto para manter a pesquisa artística na direção dos valores e princípios que a geraram, organizando-a e desenvolvendo-a.

Deste ponto de vista, a situação atual do LUME mostra-se como um interessante campo de estudo para uma tese que transita entre dois meios de pesquisa complementares, o artístico e o social. Aquele da representação de um drama estético, e a “communitas” que pode ser gerada através dele; e aquele da representação cotidiana de um “drama social” com suas crises, expectativas, anseios e lutas. Tal opção justifica-se na medida em que é um dos interesses principais desta pesquisa, observar e dimensionar as influências recíprocas de um meio sobre o outro. Isto é: como a busca pelo “estado liminar”, em sua pesquisa artística acaba influenciando ou não as relações sociais internas e externas que o grupo, o “communitas normativo” mantém, e vice versa.

A tese escolhe estudar o fenômeno cultural da “communitas” e suas repercussões sociais e culturais, pois o entende como um fenômeno não só pertencente à esfera de interesse das Artes ou da Antropologia, mas que pertence à esfera de interesse de toda e qualquer área de pesquisa e produção de conhecimento humano, sejam elas acadêmicas ou não.

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PARTE I – A liminaridade na profissão do ator.

Cap. II – O Trabalho Sobre Si Mesmo.

2.1 - Sobre a Arte do Ator

O Sujeito e o Objeto na arte do ator.

Um escritor organiza idéias, palavras e frases e produz um livro. Um artista plástico organiza cores e formas e produz uma tela pintada, uma escultura, ou uma instalação. Um músico produz vibrações de inúmeras freqüências nas moléculas de ar que, unidas pelo tempo e por silêncios farão deles uma música. Em todos estes exemplos, o sujeito (aquele que faz) e o objeto (o que é feito) estão materialmente separados. No caso das artes cênicas ou corporais; do teatro ou da dança, ou mesmo das performances e happenings, sujeito e objeto ocupam o mesmo espaço, o objeto artístico está no corpo e na presença do seu autor. Um dançarino produz e organiza movimentos nele mesmo. É um fato notável perceber que todos nós, assim como o dançarino, temos um corpo que, de um modo ou de outro, é utilizado e se movimenta todos os dias.

No teatro, em sua expressão mais clássica, realista ou social, teremos atores em cena, diante de espectadores que os observam. Para estes espectadores, os atores estarão representando personagens que vivem dentro de um contexto ficcional, proposto pelo espetáculo. O ator (o sujeito) e o personagem de sua criação (o objeto) ocupam o mesmo espaço e tempo; no nível da materialidade, o sujeito e o objeto se confundem. De igual modo, na expressão teatral mais pura e simples e talvez mais próxima da sua provável origem ritual - naquela por onde andaram alguns pesquisadores do séc. XX como Peter Brook e Jerzy Grotowski - temos um ator-performer em um espaço vazio, que organiza e executa ações com seu corpo e voz diante de uma testemunha.

Talvez este fato tão evidente, no caso do teatro, tenha feito com que o nível psicológico da questão virasse tema de muitas discussões históricas: Quais são os processos interiores que o ator vive em relação ao seu personagem, durante o ato de preparação,

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criação e representação? Que tipo de relação é estabelecida entre o artista criador e a sua obra? Acredito que a pergunta poderia ser feita, com igual nível de interesse, para qualquer tipo de artista e expressão; no entanto, para o caso do ator, talvez por causa de tal sobreposição, pareceu ganhar contornos ressaltados.

“Depois de Stanislavski é fácil distinguir o “trabalho interior” do ator e a “construção exterior do personagem”. O primeiro define a parte da imaginação, análise, invenção criadora que sustenta a interpretação. A segunda caracteriza o conjunto de processos que desembocam na composição formal e na legibilidade desta interpretação... ... Por temperamento, certos atores tendem a privilegiar o trabalho interior, outros a composição formal.”

(Roubine, 1990, p.76.)

Em seu “Paradoxo do Comediante”, Diderot formula a questão histórica: qual das duas abordagens seria preferível a um ator; a abordagem daquele que encarna a personagem ou a daquele que compõe tecnicamente a sua obra. Tal questão sempre esteve presente no teatro ocidental, e numa visão superficial, parece ser uma espécie de luta incessante entre posições opostas. A espontaneidade ou a técnica, o fluxo de vida ou a precisão, a criação interior ou a composição exterior, a emoção ou a regra.

“A primeira, à custa de imaginação, sensibilidade, de mimetismo, se identifica com seu personagem tanto quanto se identifica consigo próprio: sendo intensamente um outro, ele é, paradoxalmente, intensamente ele mesmo. A segunda “fabrica” seu personagem, e dele mantém distância para melhor controlá-lo... No primeiro caso, a interpretação se torna uma arte que se origina nos estados emocionais e os utiliza. O ator corre o risco de deixar se atropelar por eles... No segundo caso, a composição é maduramente preparada pelo ator. Ela se afirma na inteligência e no domínio de si mesmo.” (Roubine, 1990, p.76.)

Sabemos que, no segundo caso, o ator também corre um risco: aquele de permanecer demasiadamente formal, controlado, frio e distante. De qualquer modo, acredito que apenas aparentemente e quando apegadas a determinada estética, as duas abordagens parecem ser opostas. Independente de qual se comece por privilegiar, cedo ou tarde, se perceberá que cada uma das duas tem seu lugar garantido dentro de qualquer expressão artística madura. Uma parece sustentar a outra, e a falta de uma prejudica todo o esforço feito em favor da outra. Afinal de contas, a meta final de uma e de outra abordagem

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não é a mesma, isto é, não é buscar a verdade em cena? Forma e conteúdo, dimensões distintas do objeto artístico, necessitam de uma conexão ou de um mínimo diálogo que seja para suscitar a credibilidade alheia. Muito interessante seria citar estas palavras de Eugenio Barba sobre Stanislavski:

“Ele buscava a verdade no palco, como sinceridade total,

como autêntica vitalidade. O ator não deve “parecer” o personagem que representa. O ator deve ser o que representa. Essa é a palavra chave: ser, tornar-se unidade, indivíduo, não dividido. Ele odiava no teatro “o teatro”, os signos mecânicos de um sentimento ausente. Segundo suas próprias palavras: “O teatro é meu inimigo”. Igualmente seu inimigo era o ator, o homem que mostrava exteriormente o que não sentia interiormente. Queria chegar a um estado criativo, no qual o ator estivesse animado por uma concentração total de sua natureza moral e física.” (Barba, 1991, p. 91.)

Na tradução em português do livro “Minha Vida na Arte”, de Stanislavski, o trecho em negrito a que se refere E. Barba e que está no capítulo: “A descoberta de verdades há muito conhecidas” (Stanislavski, 1989, p. 414.); é traduzido como: “... a criação é acima de

tudo a plena concentração de toda a natureza espiritual e física.” Na versão castelhana do

mesmo trecho temos: “...el proceso creador es, antes que otra cosa, “la absoluta concentración de toda la naturaleza espiritual, mental y física de uno””.

‘Corpo’, ‘mente’, ‘emoção’, ‘alma’, ‘espírito’, ‘inconsciente’, ‘subconsciente’, ‘supraconsciência’ são palavras que, assim colocadas nesta ordem, nos remetem a naturezas que passo a passo, dentro de um ser humano, vão se tornando menos evidentes aos sentidos e aos pensamentos. Por isso, vão ganhando uma miríade de significados subjetivos (isto é, do sujeito) – muitas vezes contraditórios - que ocorrem no processo associativo mental de cada um. Sobre a anatomia do corpo humano e seu funcionamento, as ciências biológicas já mapearam com exatidão cada milímetro dos nossos corpos, chegando até o DNA. Mas sobre as emoções, os pensamentos, suas conexões com o corpo físico, a ‘alma’ e o ‘espírito’, muito desse assunto não é conhecimento socialmente aceito e negociável entre todos nós. No entanto, para nos aproximarmos dos objetivos dessa pesquisa iremos ter que lidar com o problema.

Diz-se que ‘espiritual’ não é uma palavra “objetiva”, e que traz consigo muitos significados desnecessários ao teatro. Talvez por isso, Barba ou o tradutor da edição

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brasileira, Luís Otávio Burnier, tenha preferido utilizar a palavra “moral” no lugar de “espiritual” como tencionava Stanislavski, trazendo uma dimensão mais voluntária ao trabalho do ator.

Iremos investigar o problema em outro lugar. Por ora, aceno para o fato de que não existe lugar mais incerto e desconhecido do que o próprio funcionamento interior e psicológico de um ser humano. O que dizer de um ser humano que passa a representar algo que não é ele mesmo, mas uma criação artística?

No caso do teatro mais do que em qualquer outra arte, o grau de conhecimento do

ator sobre si mesmo parece ser fator fundamental e determinante da forma final de sua

criação artística.

Stanislavski, perseguindo a verdade na criação artística, fez interessantes observações a respeito:

“De fato, se você for arrastado num vendaval de inspiração,

ele poderá levar o seu ‘avião criativo’ acima das nuvens, em linha vertical, sem fazer manobra prévia na pista, mas infelizmente esses vôos inspirados não dependem de nós, e não podemos fazer regras para eles. A única coisa que está em nosso poder é preparar o terreno, lançar nossos trilhos, isto é, criar nossas ações físicas reforçadas pela verdade e pela fé.” 2 (Stanislavski, A Criação do

Papel, 1987, p.247.)

No início, privilegiou o trabalho sobre as emoções e, no fim da vida, encontrou um meio termo entre o trabalho interior e exterior do ator. Tal contribuição, apoiada num preciso e rigoroso trabalho corporal chamou-se o método das ações físicas, ao qual estudaremos com mais detalhes num próximo capítulo. Em síntese, o ator não poderia viver em função da turbina de sua inspiração emotiva, pois sobre ela, tinha pouco ou nenhum controle. Seu trabalho girou em torno de encontrar métodos e técnicas de construção onde os esforços intencionais do ator e a sua vontade pudessem se fazer presentes na elaboração e execução de um material muito concreto e tangível: as ações físicas criadas a partir da lógica de comportamento do personagem retratado pelo texto teatral. Em cena, no momento do ato teatral, através da execução ininterrupta de uma linha de ações físicas lógicas, o ator estaria livre para se conectar com o seu estado criativo, sua “natureza espiritual”, doando

2 O mesmo trecho em italiano: “Nelle nostre possibilitá rientra preparare il terreno, stendere i binari, formare

cioé le azione fisiche rinforzate dalla veritá e dalla convinzione (convicção)” (Konstantin Stanislavskij, Il

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vida e credibilidade ao personagem. O trabalho técnico formal e de composição exterior serviria, então, como pista de lançamento para estados mais criativos e poéticos, onde a emoção, o fluxo de vida e a verdade interior se manifestariam livremente. Forma e conteúdo vital, esforço intencional e inspiração interior, ordem e desordem conviveriam, assim, em interdependência mútua.

A vulgarização e mecanização do ato do ator parece ser o processo do qual Stanislavski estava tentando escapar, conduzindo-o à percepção da necessidade do trabalho

do ator sobre si mesmo.

No teatro, uma das artes que mais tem por tema a ação de viver dos seres-humanos, tanto socialmente como existencialmente; um ator mal preparado, enrijecido nas suas

próprias emoções e pensamentos, seria elemento tão limitador e inaceitável como um

instrumento musical que, numa orquestra, não alcança ou desafina as notas mais altas e baixas da escala. Sabemos como é mais fácil lidar com esta questão quando o instrumento não coincide com o próprio artista. A característica efêmera da arte teatral, que necessariamente deve ser refeita a cada nova vez, leva inevitavelmente às questões da

qualidade da atenção do ator no momento imediato e presente da ação, da manutenção

desta qualidade de atenção e da construção e manutenção da motivação íntima que sustenta a vida dessa ação. Sabemos o quanto é difícil fazer, na vida do dia a dia, ações com um alto grau de atenção e presença e, como o contrário, acidentes de desatenção, falta de vontade, ou esquecimentos nos acontecem tão freqüentemente. Ninguém vai ao teatro para assistir acidentes de desatenção, falta de vontade ou excitação nervosa desarticulada, mas vai para ver uma criação viva e intencionalmente elaborada.

E de fato, só assim bem preparado, lidando com o previsível e o imprevisível de cada momento, um ator pode utilizar os imprevistos a seu próprio favor, transformando-os em poesia e significado.

Diante destas considerações, aquilo que me parece ser verdadeiro para a arte do ator é que mesmo se o método e a técnica pareçam impessoais e distantes, ao trabalharem com os aspectos mais externos e visíveis da atuação, estes apenas estão abrindo espaço para a entrada e a participação de uma dimensão pessoal, volitiva e emocional que o ator necessita em sua arte e profissão. Certamente, esta dimensão não pode ser confundida com um

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comércio vaidoso e sentimentalista da vida privada do ator. Ao contrário, trata-se aqui, de uma possível qualidade do ator a serviço da sua Arte.

E dentro do universo de pesquisa e tradição desta Arte, muitos caminhos foram, estão sendo e serão abertos em direção ao cume de sua montanha (desta montanha, excelência). A experiência de um indivíduo com alguns desses caminhos e exploradores (Zeami, as técnicas orientais de atuação, a commedia dell’arte, a tradição clássica ocidental, Stanislavski em suas diferentes fases, Meyerhold, Decroux, Gordon Craig, Brecht, Grotowski, Lee Strasberg, Peter Brook, Eugenio Barba, entre uma infinidade de outros) pode ou não levá-lo ao cume desta montanha. A natureza da pessoa do ator sempre estará presente e sempre será determinante. O mundo que o cerca: as referências históricas que são apreendidas pela documentação da experiência do outro e também o contato direto e prático com o trabalho do outro; acabam servindo como orientação até o momento em que o ator percebe que ele mesmo deve percorrer e construir o seu próprio caminho. “Esta é a palavra chave: Ser”, diz Barba sobre Stanislavski. E o processo evolutivo do ser é único e individual, ainda que possa ser amparado e nutrido ou contrariado e desnutrido por toda uma teia social e cultural. Na arte do ator, como em qualquer arte, ao que me parece, a qualidade do sujeito (o ator e o estado de sua natureza psicofísica) e a qualidade do seu objeto (a imagem poética e suas ações), são variáveis dependentes. E por ser assim, é que outros aspectos precisam ser evidenciados. Assim também acha Thomas Richards no livro que conta sobre sua experiência de trabalho com Grotowski:

..., somente um ator que pode comandar aquilo que faz sobre o palco será capaz de criar uma vida sobre o palco. E para comandar aquilo que faz deve entender nele quais forças controlam o seu comportamento na vida cotidiana. Como pode um ator fazer algo de claro sobre o palco se é cego em relação ao seu próprio comportamento na vida cotidiana? (Richards, 1993, p.112.)

2.2 – A possível mudança do estado de consciência.

2.2.1 - O mito da caverna de Platão.

Neste ponto, gostaria de citar, do trecho inicial do capítulo VII da República de Platão, as principais passagens da alegoria da caverna, escrita através das palavras de Sócrates e interlocução de Glauco. A alegoria, imagem simbólica da possível mudança do

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estado de consciência do homem, será o ponto de partida para todos os enfoques de estudo desta tese, a saber:

- Sobre o trabalho sobre si.

- Sobre o drama social, o processo ritual, a “liminaridade” e a “communitas”. - Sobre o teatro e o trabalho do ator sobre si mesmo.

- Sobre o papel do teatro e da arte.

Utilizo a alegoria como ferramenta auxiliar para a compreensão do conceito de mudança de estado de consciência de si e percepção do outro, ou “communitas”, conceito que utilizaremos para nos aproximar de algumas das principais transformações almejadas pelos reformadores do teatro no século XX.

A tradução que transcrevo é aquela feita por J. Guinsburg, editada pela “Difusão Européia do Livro” em 1973:

LIVRO VII

“Sócrates - AGORA, representa da seguinte forma o estado de nossa natureza

relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens em morada

subterrânea, em forma de caverna, que tenha em toda a largura uma entrada aberta para a luz; estes homens aí se encontram desde a infância, com as pernas e o pescoço acorrentados, de sorte que não podem mexer-se nem ver outro lugar exceto diante deles, pois a corrente os impede de virar a cabeça; a luz lhes vem de um fogo aceso sobre uma eminência, ao longe atrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa um caminho elevado; imagina que, ao longo deste caminho, ergue-se um pequeno muro, semelhante aos tapumes que os exibidores de fantoches erguem à frente deles e por cima dos quais exibem as suas maravilhas. - Glauco - Vejo isso.

- Sócrates - Figura, agora, ao longo deste pequeno muro homens a transportar objetos de todo gênero, que ultrapassam o muro, bem como estatuetas de homens e animais de pedra, de madeira e de toda espécie de matéria. Naturalmente, entre estes portadores, uns falam e outros se calam.

- Glauco - Eis um estranho quadro e estranhos prisioneiros!

- Sócrates - Eles se assemelham a nós, mas primeiro, pensa que em tal situação jamais hajam visto algo de si próprios e de seus vizinhos, afora as sombras projetadas pelo fogo sobre a parede da caverna que está à sua frente?

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- Glauco - E como poderiam se são forçados a ficar a vida toda com a cabeça imóvel?

- Sócrates - E com os objetos que desfilam, não acontece o mesmo? - Glauco - Incontestavelmente.

- Sócrates - Se, portanto, conseguissem conversar entre si não julga que tomariam por objetos reais as sombras que avistassem?

- Glauco - Necessariamente.

- Sócrates - E se a parede do fundo da prisão tivesse eco, cada vez que um dos portadores falasse, creriam ouvir algo que não viesse da sombra que passasse diante deles?

- Glauco - Não, por Zeus.

- Sócrates - Seguramente tais homens só atribuirão realidade às sombras dos objetos fabricados.

- Glauco - É inteiramente necessário.

- Sócrates - Considera agora o que lhes sobrevirá naturalmente se forem libertos das cadeias e curados da ignorância. Que se separe um desses prisioneiros, que o forcem a levantar-se imediatamente, a volver o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos à luz: ao efetuar todos esses movimentos sofrerá, e o ofuscamento o impedirá de distinguir os objetos cuja sombra enxergava há pouco. O que acha, pois, que ele responderá se alguém lhe vier dizer que tudo quanto vira até então eram apenas vãos fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê de maneira mais justa? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas passantes, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é isso? Não crê que ficará embaraçado e que as sombras que via há pouco lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que ora lhe são mostrados?

- Glauco - Muito mais verdadeiras.

- Sócrates - E se o forçam a fitar a própria luz, não ficarão os seus olhos feridos? Não tirará dela a vista, para retornar às coisas que pode olhar, e não acreditará que estas são realmente mais nítidas do que as outras que lhe são mostradas? - Glauco - Seguramente.

- Sócrates - E se o arrancam à força de sua caverna, o compelem a escalar a rude e escarpada encosta e não o soltam antes de arrastá-lo até a luz do sol, não sofrerá ele vivamente e não se queixará destas violências? E quando houver

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chegado à luz, poderá, com os olhos completamente deslumbrados pelo fulgor, distinguir uma só das coisas que agora chamamos verdadeiras?

- Glauco - Não poderá ao menos desde logo.

- Sócrates - Necessitará, penso, de hábito para ver os objetos da região superior. Primeiro distinguirá mais facilmente as sombras, depois as imagens dos homens e dos outros objetos que se refletem nas águas, a seguir os próprios objetos. Após isso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da lua, contemplar mais facilmente durante a noite os corpos celestes e o céu mesmo, do que durante o dia o sol e sua luz.

- Glauco - Sem dúvida.

- Sócrates - Por fim, imagino, há de ser o sol, não suas vãs imagens refletidas nas águas ou em qualquer outro local, mas o próprio sol em seu verdadeiro lugar, que ele poderá ver e contemplar tal como é.

- Glauco - Necessariamente.

- Sócrates Depois disso há de concluir, a respeito do sol, que é este que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é a causa de tudo quanto ele via, com os seus companheiros, na caverna.

- Glauco - Evidentemente, chegará a esta conclusão.

- Sócrates - Ora, lembrando-se de sua primeira morada, da sabedoria que nela se professa e dos que aí foram os seus companheiros de cativeiro, não crê que ele se rejubilará com a mudança e lastimará estes últimos?

- Glauco - Sim, decerto.

- Sócrates - E se estes últimos, então, se concedessem entre si honras e louvores, premiassem àquele que captasse com olhar mais vivo a passagem das sombras, que se recordasse melhor das que costumavam vir em primeiro lugar ou em último, ou que caminham juntas, e que, por isso, fosse o mais hábil em adivinhar o aparecimento delas, pensa que o nosso homem sentiria ciúmes destas distinções e alimentaria inveja dos que, entre os prisioneiros, fossem honrados e poderosos? Ou então, como o herói de Homero, não preferirá mil vezes ser apenas um servente de arado, a serviço de um pobre lavrador, e sofrer tudo no mundo, a voltar às suas antigas ilusões e viver como vivia?

- Glauco - Sou de tua opinião; ele preferirá sofrer tudo a viver desta maneira. - Sócrates - Imagina ainda que este homem torne a descer à caverna e vá

sentar-se em sentar-seu antigo lugar: não terá ele os olhos cegados pelas trevas, ao vir subitamente do pleno sol?

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- Glauco - Seguramente sim.

- Sócrates - E se, para julgar estas sombras, tiver de entrar de novo em competição, com os cativos que não abandonaram as correntes, no momento em que ainda está com a vista confusa e antes que seus olhos se tenham reacostumado (e o hábito à obscuridade exigirá ainda bastante tempo), não provocará riso à própria custa e não dirão eles que, tendo ido para cima, voltou com a vista arruinada, de sorte que não vale mesmo a pena tentar subir até lá? E se alguém tentar soltá-los e conduzi-los ao alto, e conseguissem eles pegá-lo e matá-lo, não o matarão?

- Glauco - Sem dúvida alguma.

- Sócrates - Agora, meu caro Glauco, cumpre aplicar ponto por ponto esta imagem ao que dissemos mais acima, comparar o mundo que a vista nos revela à morada da prisão e a luz do fogo que a ilumina ao poder do sol. No que se refere à subida à região superior e à contemplação de seus objetos, se você a considerar como a ascensão da alma ao lugar inteligível, não se enganará sobre o meu pensamento, posto que também deseja conhecê-lo. Deus sabe se ele é verdadeiro. Quanto a mim tal é a minha opinião: no mundo inteligível, a idéia do bem é percebida por último e a custo, mas não se pode percebê-la sem concluir que é a causa de tudo quanto há de direito e belo em todas as coisas; que ela engendrou, no mundo visível, a luz e o soberano da luz; que, no mundo inteligível, ela própria é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e que é preciso vê-la para conduzir-se com sabedoria na vida particular e na vida pública.

- Glauco - Partilho de tua opinião na medida em que posso.” “Mudança de Estado.”

O intuito da construção desta imagem serve para Platão definir a “realidade” em que estão imersos a sua República e todos os seus cidadãos. Escreve, neste capítulo, sobre a necessidade de encontrar as pessoas mais capacitadas para o governo de sua cidade, que seriam evidentemente aqueles que suficientemente se esforçaram para, saindo da condição primeira de cativo morador do fundo da caverna, experimentassem a vida em níveis que conduziriam, por fim, à contemplação do bem em si e da natureza como ela realmente é; separado de toda a virtualidade e vicissitude das relações instituídas dentro da caverna por aqueles que nunca a deixaram. Este seria o filósofo, por excelência, aquele que teria por dever retornar para a caverna, acostumar-se novamente com a sua escuridão e governar a cidade sem nunca mais perder sua conexão com o bem e a verdade que adquiriu sobre a

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