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Ser como a loba e a cadela: o lugar da mulher na literatura libertino filosófica do Marquês de Sade (1740-1814

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS CAMPUS DO SERTÃO. LUCAS BRITO SANTANA DA SILVA. SER COMO A LOBA E A CADELA: O LUGAR DA MULHER NA LITERATURA LIBERTINO-FILOSÓFICA DO MARQUÊS DE SADE (1740-1814). Delmiro Gouveia 2019.

(2) LUCAS BRITO SANTANA DA SILVA. SER COMO A LOBA E A CADELA: O LUGAR DA MULHER NA LITERAURA LIBERTINO-FILOSÓFICA DO MARQUÊS DE SADE (1740-1814). Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito para a obtenção do título de Licenciado em História pela Universidade Federal de Alagoas – Campus do Sertão.. Orientador: Prof. Dr. José Roberto Da Silva. Delmiro Gouveia 2019.

(3) Catalogação na fonte Universidade Federal de Alagoas Biblioteca do Campus Sertão Sede Delmiro Gouveia Bibliotecária responsável: Renata Oliveira de Souza CRB-4/2209 S586s. Silva, Lucas Brito Santana da Ser como a loba e a cadela: o lugar da mulher na literatura libertino-filosófica do Marquês de Sade (1740-1814) / Lucas Brito Santana da Silva. – 2019. 117 f. Orientação: Prof. Dr. José Roberto da Silva. Monografica (Licenciatura em História) – Universidade Federal de Alagoas. Curso de História. Delmiro Gouveia, 2019. 1. História. 2. Literatura. 3. Literatura Libertino-Filosófica. 4. Sa-. de, Marquês, 1740-1814. 5. Gênero. 6. Mulher. I. Silva, José Roberto da. I. Universidade Federal de Alagoas. I. Título. CDU: 94:82.

(4)

(5) Ao Nada..

(6) AGRADECIMENTOS. Ainda que eu me recusasse aos agradecimentos, seria incapaz de negar que tudo o que sou nada mais é do que este mundo me possibilitou ser. O Outro se atravessa em mim constante e continuamente, sofro as marcas do tempo, do espaço, sinto o peso daquelas existências que antecederam a minha e das que vivem este instante ínfimo comigo. Atravessa-me as existências dos meus pais, dos meus irmãos, dos amigos e desafetos, dos amores, seus gozos e tormentos, dos meus professores, de tudo que li nesta jornada até o presente momento, dos abismos nos cai ou me joguei e das montanhas que tentei escalar, dos castelos que tentei construir. Que todo o caos deste mundo e da minha existência não me façam ingrato e renegador da minha dependência estrutural da humanidade para ser o que sou, mesmo nos momentos em que não lamentaria se o que há fosse devorado pelo não ser. Por isso faço o elogio aos meus pais, Pedro Santana Da Silva e Rosineide Ferreira De Brito, indivíduos que mal aprenderam a assinar o próprio nome e para quem muito do que sou é estranho, mas que, ainda assim, deram-me todo o apoio possível para me manter na universidade e se alegram enormemente pela conquista social de ter um filho se graduando. Aos meus irmãos, João Pedro e Patrícia, e à minha sobrinha Priscila, recém-nascida e a quem já amo assombrosamente. Aos amigos, dos quais sempre tenho gozado benesses e com os quais tenho construído espaços para tornarme quem sou e eles tornarem-se quem são, os de longa data e os mais recentes, como o Londe, e aqueles cujos laços se forjaram na Ufal, como o Sávio e o Igor. Que o espírito de Dionísio e as discussões catastróficas sempre nos acompanhem. Aos meus professores da universidade; alguns me forneceram combustível para inflamar o espírito das discussões e outros me concederam a complacência necessária para a minha existência poder emergir nas aulas, assim como deixaram passar algumas insolências minhas. Agradeço, por fim, ao Zé Roberto, meu orientador – um personagem que tem agrupado no seu entorno muito do que há de diferença na Ufal. Aos professores da banca avaliadora, Eltern Campina Vale e Pedro Abelardo de Santana, seus pareceres enriqueceram esta pesquisa e me deram contornos para a sua continuidade. À Eliziane Barboza, companheira que já deixou marcas em minha existência, me possibilitando dar sentido para alguns problemas e atravessar algumas pontes, o que sozinho eu não conseguiria..

(7) É, pois, a natureza, que cumpre captar quando se trabalha esse gênero [romance], é o coração do homem, a mais singular de suas obras, e nunca a virtude, pois a virtude, por bela e necessária que seja, é apenas um dos métodos desse coração espantoso, cujo estudo profundo é tão necessário ao romancista, e cujos hábitos o romance, espelho fiel do coração, deve necessariamente traçar. Marquês De Sade.

(8) RESUMO O objetivo desta monografia é analisar o lugar da mulher na literatura libertinofilosófica do Marquês De Sade. Buscamos não só a análise desse lugar, mas, também, compreender quais artifícios o Marquês De Sade utilizou para conseguir relegar a mulher a tal lugar. Como o título do nosso trabalho sugere, o lugar que Sade destina à mulher, na sua literatura, a faz ser como a loba e a cadela; por um lado, a mulher deve se entregar a todos quantos a quiserem, por outro lado, a ela é permitido possuir todos aqueles por quem sentir desejo. O percurso para a consumação dessa pesquisa passou por um desvelamento do horizonte histórico no qual emergiu o Marquês De Sade e por um aprofundamento no pensamento deste autor. A partir daí, foi possível alcançar o objetivo proposto. Para termos de classificação, esta é uma pesquisa de natureza qualitativa e foi conduzida a partir de pesquisa bibliográfica e documental. Palavras-Chave: Século Das Luzes; Marquês De Sade; Mulheres.. ABSTRACT The purpose of this monograph is to analyze the place of women in the libertinephilosophical literature of the Marquis De Sade. We seek not only the analysis of this place, but also to understand which devices the Marquis de Sade used to relegate the woman to such a place. As the title of our work suggests, Sade's place for women in her literature makes her like the wolf and the bitch; On the one hand, the woman must be surrendered to all as she pleases, on the other hand, she is allowed to possess all those for whom she feels desire. The course for the consummation of this research went through an unveiling of the historical horizon in which the Marquis De Sade emerged and a deepening in the thought of this author. From there, it was possible to achieve the proposed objective. For classification purposes, this is a qualitative research and was conducted from bibliographic and documentary research. Keywords: Century of Lights; Marquis De Sade; Women..

(9) SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 9 2 – O SÉCULO DAS LUZES: Horizonte Histórico do Marquês De Sade ............. 18 2.1 – Iluminismo: Filósofos e Libertinos ............................................................... 18 2.2 – O lugar da Razão e da Paixão No Mundo Iluminista ................................... 25 2.3 – Natureza, Sociedade e Indivíduo Na Perspectiva Ilustrada ........................ 32 2.4 – A Religião: Ateísmo, Deísmo e Descristianização ..................................... 38 3 – O DIVINO MARQUÊS DE SADE: Homem e Pensamento................................ 43 3.1 – Sade: Alguns Elementos Biográficos ........................................................... 43 3.2 – Tendências De Leitura Dos Escritos Sadianos ........................................... 45 3.3 – Natureza, Sociedade e Religião Na Perspectiva Sadiana ........................... 52 3.4 – O Indivíduo Sadiano: Entre Libertinos e Vítimas ........................................ 65 4 – AS MULHERES NA ALCOVA ............................................................................ 81 4.1 – As Mulheres Na Visão Dos Filósofos Da Ilustração .................................... 81 4.2 – A Filosofia na Alcova: apresentação do romance ....................................... 90 4.2.1 – A representação da mulher no panfleto Franceses... .............................. 92 4.2.2 – As Personagens Femininas: Duas Libertinas E Uma Vítima ................... 99 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 111 OBRAS CONSULTADAS DO MARQUÊS DE SADE ............................................ 114 REFERÊNCIAS....................................................................................................... 114.

(10) 9. 1 INTRODUÇÃO. Que diabos vai fazer o Marquês De Sade no sertão alagoano? Esta é uma pergunta suscitada em nosso espírito quando algumas vezes nos colocamos a pensar sobre o porquê de ter escolhido esse autor. As questões e os conflitos que envolveram essa escolha e os seus desdobramentos não são poucos. Sade faz parte das nossas leituras desde antes da universidade; a depender desta, provavelmente não o teríamos conhecido. Na universidade, no curso de História, um dos seus objetivos é a valorização da história alagoana, delmirense, que, ao formar licenciados em História e algumas vezes historiadores, torna possível a produção de uma historiografia de Alagoas, seus espaços, seus tempos, seus homens e mulheres. Uma rápida lida na lista de trabalhos de conclusão de curso desenvolvidos na UFAL, no curso de História, é suficiente para percebermos a grande quantidade de trabalhos que refletem esses objetivos. Contudo, em diálogos com os graduandos, também não é difícil notar a desindentificação, de um bom número, com esses trabalhos de temática local, muitas vezes produzidos unicamente com o objetivo de encerrar a graduação. Escolhemos o Marquês De Sade porque ele é um autor que já dizia algo sobre nós, com o qual já possuíamos uma relação de “co-existência”, como fala Roland Barthes (2005)1. Tal relação em nada mostrava previamente esgotado o que viríamos a desenvolver nesta pesquisa. Ao coexistir com Sade, nunca o amamos cegamente, como não amamos cegamente nenhum dos autores que cruzaram a nossa existência e nos deixaram suas marcas. A nossa relação com o Marquês sempre foi pautada pelo conflito. Depois de passar pelo crepúsculo dos ídolos, o espírito iconoclasta torna impossível aceitar estatuas que não estejam aos cacos; o que nos fez retornar a Sade para torná-lo objeto de pesquisa não foi a paixão irritantemente apontada como móbil em muitos manuais de pesquisa – foi o desejo de ressignificar o Marquês. Freud insistiu muito no retorno aos seus escritos como fonte para algo novo, tal insistência em relação às. 1. A co-existência é um condição na relação do leitor com o texto, com o autor, que se estabelece no momento em que “o texto “literário” (o Livro) transmigra para dentro de nossa vida, quando outra escritura (a escritura do Outro) chega a escrever fragmentos da nossa própria cotidianidade” (BARTHES, 2005, p. xv-xv, grifos do autor). É, também, quando se realiza essa co-existência que acontece aquilo que o linguista chamou de o “prazer do texto”, uma experiência com o texto onde o real prazer da leitura se dá quando algum fragmento do texto, do autor, se torna significante para nós..

(11) 10. nossas leituras pode abrir caminho para o novo, para uma nova perspectiva sobre nós mesmos e sobre o próprio objeto de conhecimento – o texto é algo aberto a uma produção de sentidos inesgotável, como diriam os desconstrucionistas. Foi isso o que buscamos em Sade ao estudá-lo mais aprofundadamente, foi isso que lançou-nos para além de uma temática local e para além da escrita de um TCC como mero requisito arbitrário para nos graduarmos. O Marquês De Sade é relativamente um autor desconhecido. Nascido no Século Das Luzes, passou um terço da sua vida entre hospícios e prisões, sofrendo perseguições no Antigo Regime francês, cujo uma carta de Luís XV garantiu-lhe uma das primeiras prisões; também não foi bem quisto pelos revolucionários no período de 1789 a 1799, pelos quais acabou preso por “excesso de moderação”; e também caiu nos desmandos de Napoleão Bonaparte, nos anos que este assumiu o poder, sofrendo uma condenação que o levaria a terminar a sua vida encarcerado. Apesar de desconhecido, principalmente para o grande público, a obra de Sade não deixou de ser lida por grandes autores, como Flaubert, Baudelaire, Max Stirner, provavelmente Nietzsche. Entretanto, esses foram leitores que sempre leram o Marquês “por baixo dos panos”, em suas próprias alcovas. É no século XX que a literatura sadiana passa a ser, de fato, reabilitada, começando pelos surrealistas. Nesse século, Sade teve vários leitores importantes, Como Simone Beauvoir, Blanchot, Roland Barthes, Michel Foucault, Georges Bataille e muitos outros. Sade escreveu uma literatura que podemos chamar de “libertino-filosófica”. Em termos estritos, os gêneros textuais produzidos pelo Marquês são problemáticos de se classificar, pois esse autor nunca se submeteu a um único gênero. Por isso, podemos ver em seus romances excetos teatrais, epistolares, algumas vezes trechos que mais parecem notas de um livro de contabilidade. A coisa se complica mais porque, no século XVIII, as barreiras entre o que poderíamos ter por gêneros textuais distintos são facilmente ultrapassadas pelos escritores. Nesse momento, vemos autores que chamamos de filósofos lançarem mão de vários gêneros em sua escrita, onde o que pode existir de solidamente filosófico é vazado para romances, para panfletos, libelos e etc. De qualquer modo, estamos classificando a literatura do Marquês de Sade como libertino-filosófica por dois motivos básicos: porque o Marquês fez, amiúde, uso do pensamento teórico-filosófico das Luzes para o desenvolvimento do seu universo literário – assim como apresentou desdobramentos singulares desse pensamento;.

(12) 11. dois, porque os escritos que Sade escreveu e os comportamentos que manifestou na sociedade francesa setecentista eram chamados de libertinos. No século XVIII, libertino era aquele que pensava ou se comportava na contramão dos bons costumes. Como a palavra libertino recaiu sobre diversos indivíduos, os enciclopedistas fizeram uma distinção entre tipos de libertinos: haviam aqueles que praticavam a libertinagem de costumes, ou seja, que envolve comportamentos contrários à moralidade vigente, e haviam aqueles que praticavam a libertinagem de ideias, onde as manifestações ficam na esfera do pensamento – caso de muitos filósofos, por isso muitas vezes taxados de libertinos. No caso particular do Marquês De Sade, este escritor praticou os dois tipos de libertinagem. Escolhido o Marquês De Sade como o autor sobre o qual desenvolveríamos nossa pesquisa, coube-nos delimitar o quê, exatamente, pesquisaríamos nele. Esse passo metodológico nos levou à seleção da “mulher” como objeto de pesquisa no pensamento de Sade. Por que a mulher? Porque as nossas leituras dos livros do Marquês, assim como as nossas leituras sobre a mulher no século XVIII, nos indicavam que a mulher na literatura sadiana aparecia de forma diferenciada em relação a outros autores desse século – especialmente quando comparamos o que Sade escreveu sobre a mulher com o que um Rousseau escreveu. Metodologicamente, o nosso recorte é diferente do que se tem apresentado em livros-texto de pesquisa em Histórica como O projeto de pesquisa em História (2017), do historiador José D’Assunção Barros, onde um espaço e um tempo são estritamente recortados e o objeto da pesquisa histórica é posto a se relacionar com as determinações (estruturas, conjunturas, acontecimentos) nestes espaço e tempo, com as margens de agência do objeto-sujeito, se forem Homens, como é sempre lembrado através da fórmula de Marc Bloch, dependendo explicitamente da orientação teórica do pesquisador – não que os outros elementos também não dependam. Em nosso caso, os recortes espacial e temporal possuem uma demarcação fluída, especificamente porque o nosso recorte é feito primeiro a partir das fontes selecionadas e o que buscamos compreender, na proposta que estamos fazendo, depende acima de tudo daquele que produziu essas fontes: analisaremos o lugar da mulher na literatura sadiana (fontes) focalizando o próprio pensamento do Marquês de Sade, para que nos seja possível entender como Sade pôde conceber esse lugar específico para a mulher. Tal recorte não significa, de modo algum, a condução de uma pesquisa historicamente descarnada, como será visto..

(13) 12. Originalmente,. o. nosso. problema. de. pesquisa. nascia. do. seguinte. questionamento: “como a Natureza determina o Ser-Mulher na literatura do Marquês De Sade”. Esse problema tornou-se mais inteligível e mais sólido no decorrer da pesquisa, quando passamos a entender que, no Século Das Luzes, os filósofos recorriam predominantemente ou à Natureza ou aos Costumes como lugares a partir dos quais se poderia explicar o que é a mulher e determinar o seu lugar no mundo. Daí o nosso objetivo geral: analisar o lugar da mulher na literatura libertino-filosófica do Marquês De Sade. Para a consecução desse objetivo, nós escolhemos um percurso dividido em três partes: primeiro, explorar o contexto do século XVIII europeu, sempre que possível dando ênfase à França, visto que o Marquês De Sade é um autor francês, tendo vivido e terminado seus dias nesse país. Desse modo, o Século das Luzes nos aparece como o horizonte histórico no qual emergiu Sade, daí sua importância central. O que buscamos nesta primeira parte da pesquisa foi o desvelamento do horizonte histórico da existência do Marquês De Sade. Exploramos o contexto histórico do século XVIII, o movimento iluminista, a circulação de ideias, o pensamento de alguns filósofos, dando ênfase, em determinado momento, aos materialistas Holbach, Helvétius e La Mettrie – Sade deles muito bebeu; foi examinado o lugar da razão e da paixão no pensamento ilustrado, assim como a perspectiva sobre a religião. Demos atenção especial às visões sobre a natureza, a sociedade e o indivíduo – mantendo o enfoque nessas instâncias durante todo o trabalho, inclusive para a condução da leitura analítica das obras do Marquês De Sade às quais recorremos. Para este capítulo foram fundamentais a obra de Ernest Cassirer (1992), com sua síntese clássica sobre a filosofia do iluminismo; a obra de Roger Chartier (2009), tratando das origens culturais da revolução francesa, que nos permitiu conduzir a pesquisa sem tendermos para algo historicamente descarnado; e a tese de doutorado de Mattos (2017), que nos deu subsídio para toda a pesquisa, mas, neste momento, especificamente para trabalharmos os autores que influenciaram o Marquês De Sade. Explorados a carne e os ossos do tempo e espaço que geraram o Marquês De Sade, o nosso próximo passo foi mergulharmos no pensamento desse autor libertino; mergulho ao qual consagramos boa parte do nosso fôlego de pesquisa. Para a execução dessa empreitada dedicamos a segunda parte. O aprofundamento no pensamento do Marquês De Sade foi essencial para a condução da pesquisa nos termos que nos propomos: os da análise do lugar da mulher na literatura do Marquês.

(14) 13. De Sade; objetivo complementado com uma determinação específica, compreender como foi possível a Sade conceber este lugar para a mulher. Esse movimento na pesquisa, que nos levou do mundo que gerou o Marquês De Sade ao pensamento do próprio Marquês, através da sua literatura, para só então perscrutar a mulher nessa literatura – foi delineado durante a revisão bibliográfica; onde nos deparamos com alguns trabalhos que estudavam a mulher na literatura do Marquês sem, no entanto, fazer um diálogo mais profundo com o pensamento de Sade, com as teorias as quais esse autor se apropriou e singularizou. Nos referimos, aqui, especialmente ao trabalho de Samyn (2014) e ao trabalho de Angela Carter, apresentado por Rapucci (2017). São trabalhos que partem de considerações feministas e de considerações dos estudos de gênero. A ênfase nesses estudos não está em entender como o Marquês De Sade conseguiu conceber o lugar que deu à mulher em sua literatura; a ênfase está em determinar como o pensamento do Marquês de Sade serve à dominação masculina, com os termos que permitem essa identificação saídos da nossa própria época: é a percepção contemporânea sobre o que é o homem e sobre o que é a mulher o ponto de partida para identificar se tal representação do homem e da mulher, na época e autor estudado, estão servindo a relações de poder especificas, como a dominação, violência e repressão do gênero feminino. Não há problema com o procedimento. Apenas diríamos que, como os estudos citados deixam entrever em alguns momentos, a pesquisa pode acabar se limitando a um ato quase panfletário, de mera acusação contra alguns sujeitos – acusação, às vezes, em termos anacrônicos, como já fizeram alguns ao querer enxergar feminismo, anti-feminismo, fascismo ou nazismo na literatura do Marquês. Expostas essas considerações, o que escolhemos, de fato, explorar no pensamento do Marquês de Sade? Como já dito, demos atenção especial às instâncias natureza, sociedade, indivíduo, também a religião – aspectos que desenvolvemos,. acreditamos,. satisfatoriamente. neste. aprofundamento. do. pensamento sadiano. Demais a mais, procuramos desenvolver alguns elementos biográficos de Sade e examinar algumas tendências de leitura sobre esse autor. Nesta segunda parte, nos foram essenciais, além das obras dos comentadores, como Mattos (2017), Giannattasio (1998), Castro (2006) e Moraes (1994; 2011), as obras do próprio Marquês De Sade, especialmente as três seguintes: Os 120 Dias de Sodoma (1785); Justine ou Os Infortúnios Da Virtude (1791); e A filosofia Na Alcova (1795). Nos.

(15) 14. comentadores, assim como nas obras de Sade, exploramos principalmente o que tinham a dizer sobre as instâncias que decidimos focalizar, quais sejam, natureza, sociedade, indivíduo e religião. Chegamos, então, à terceira e última etapa da nossa pesquisa, onde concluímos nosso objetivo geral. Depois de instrumentalizados no pensamento do Marquês De Sade, optamos por trabalhar algumas páginas sobre as representações das mulheres no pensamento de alguns filósofos da ilustração. A partir daí, nos entregamos à análise da mulher na literatura do Marquês De Sade, para a qual escolhemos especificamente o romance A Filosofia Na Alcova (1795). O que se seguiu foi a decomposição e recomposição do romance tomando como centro o nosso objeto de pesquisa, a mulher. Dividimos a análise da mulher, nesse romance, em duas partes: o livro é composto por sete diálogos e um panfleto; dada a especificidade dos diálogos em relação ao panfleto, conduzimos a análise da mulher primeiro no panfleto e, em seguida, nos diálogos. Nesta terceira parte, o estudo que mais se fez pesar foi o de Crampe-Casnabet (1991), analisando a representação da mulher no pensamento dos iluministas; foi a partir das suas chaves que abordamos outros autores para trabalhar as representações específicas da mulher nos filósofos que selecionamos. Apenas para efeito de termos classificatórios, a nossa pesquisa pode ser classificada como uma pesquisa bibliográfica e documental, e a sua natureza é predominantemente qualitativa.. Para termos de justificativa, a pessoal já. desenvolvemos, quanto à utilidade científica e social a qual somos, a partir dos manuais, chamados a defender – preferimos substitui-la pela problematização da necessidade de se fazer essa defesa de uma utilidade científica e social para as pesquisas em ciências sociais e humanas. O questionamento, a princípio, é simples: em qual medida, por mais que nós pesquisadores dissimulemos em nossas justificativas, em qual medida os trabalhos realizados em ciências humanas e sociais tem rendido um real retorno social? Um questionamento que, por si só, mereceria o espaço de uma monografia e muita sobriedade para ser desdobrado. Ao que nos parece, este é um problema fundamental que tem sido muitas vezes ignorado, e ao qual devemos nos debruçar urgentemente. Já chega profusamente à boca miúda, na conjuntura atual do Brasil, 2019, o questionamento e ataque aos cursos e programas de pesquisa em ciências humanas e sociais – justamente por esse caminho, o da acusação do retorno social dessas pesquisas ser ínfimo para a maior parte da população brasileira..

(16) 15. Para encerrarmos esta introdução, faremos apenas algumas breves considerações sobre a nossa postura epistemológica. Para tal, nos apoiaremos no historiador desconstrucionista Alun Munslow (2009). Tais considerações deveriam ser mais longas, dada a sua importância; em muitos trabalhos de conclusão de curso que lemos até o momento, as considerações epistemológicas são simplesmente omitidas. Principalmente para o que há de estritamente historiográfico nesta pesquisa que conduzimos, essas considerações se fazem importantes: para aqueles que nos lerem, fiquem informados que, em última instância, olhamos para toda e qualquer produção historiográfica nos termos que apresentaremos, inclusive aquela produção historiográfica na qual os historiadores se veem a partir de alguma outra postura epistemológica. Em Desconstruindo a História (2009), Alun Munslow se propõe construir um modelo explicativo para o que seja a história alcunhada de desconstrucionista. Para tal, o autor faz um apanhado dos escritores que mais contribuíram para a formação de uma teoria da história que possa desse modo ser chamada. Foram fundamentais para o surgimento dessa história desconstrucionista as produções de autores que tem sido genericamente chamados de pós-estruturalistas, como Hayden White, Jacques Derrida e Michel Foucault; dos autores um pouco mais recentes, têm sido essenciais as contribuições de Keith Jenkins. Em uma definição sintética, Munslow (2009) sustenta que a história desconstrucionista é um modelo de estudo que questiona as pressuposições tradicionais do empiricisrno formuladas como factualismo, análise imparcial, objetividade, verdade e a permanente divisão entre história, ideologia, ficção e perspectiva. Ao contrário, a história desconstrucionista aceita que a linguagem constitui o conteúdo da história, bem como os conceitos e categorias empregados a fim de organizar e explicar a evidência histórica através de nosso poder linguístico de figuração (MUNSLOW, 2009, p. 240).. Em. termos. simples,. podemos. dizer. que. no. núcleo. da. história. desconstrucionista estão as considerações sobre a linguagem, que vêm se tornando cada vez mais problemáticas desde Ferdinand Saussure, culminando com o descontrucionismo de Derrida, e as considerações sobre o plano de expressão do conhecimento histórico – a narrativa. Sobre a linguagem, o problema central é a percepção da não-correspondência absoluta entre linguagem e mundo, entre representação e coisa representada, significado e significante; não é a postulação de uma coisa em si inacessível, ao molde kantiano, é a postulação de que a linguagem.

(17) 16. não é “um meio puro de representação”. Segundo Munslow (2009), as contribuições de Hayden White e Michel Foucault vão nessa direção. Com esses autores a linguagem é vista como um meio ideologicamente contaminado, e o que ela pode ou não pode fazer depende do uso que dela se faz e para que propósito social e político - geralmente para manter ou desafiar sistemas de autoridade ou visões do que é certo ou errado, permitido ou banido (MUNSLOW, 2009, p. 25).. Isso que podemos chamar de uma intencionalidade estrutural nas operações da linguagem, indissociável da própria realidade social dos homens, é uma das questões mais problemáticas na discussão sobre a linguagem. Se essa condição da linguagem atinge qualquer representação das coisas, do mundo ou dos homens, na escrita da história isso se reflete de imediato no problema sobre o quanto podemos conhecer o passado. As evidências, os documentos, coração do ofício de historiador, também sofrem desse problema da linguagem e, enquanto produtos da linguagem, devem ser encarados como representações sobre o passado que não correspondem, em absoluto, com o próprio passado. A história escrita e o passado são coisas distintas, algo que os historiadores, mesmo os mais conservadores, parecem estar de acordo em alguma medida. Os historiadores tradicionais, aqueles que Munslow (2009) chama de reconstrucionistas, acreditam na possibilidade de recuperação de uma verdade objetiva quando da escrita da história; os desconstrucionistas acreditam que tal tarefa não é possível, começando pelo problema da linguagem. O que os historiadores desconstrucionistas fazem com isso? Bradam o fim da escrita da história? Não. Mas apelam para a exploração extrema dos problemas que atravessam a escrita da história; problemas que, segundo Munslow (2009), muitos historiadores apenas ignoram. A narrativa, segunda questão nuclear da história desconstrucionista, é tomada como uma forma de explanação do conhecimento histórico que acaba por afetar essencialmente a natureza desse conhecimento. Munslow (2009) sustenta que a História possui um caráter essencialmente literário, e isto por conta da sua estrutura narrativa. A estrutura narrativa da história não é um demérito, pelo contrário, a narrativa é uma forma de linguagem privilegiada para o coser do trabalho historiográfico, para a construção da explicação histórica. O que Munslow (2009).

(18) 17. chama a atenção é para as implicações da estrutura narrativa na escrita da história, as quais muitos historiadores negam. Tais implicações apontam para o reconhecimento da história como um artefato literário, um tipo de produção escrita próxima da literatura propriamente dita. Reconhecendo isso, passa a ser dever do historiador buscar entender as particularidades da escrita da História a partir de estruturas narrativas, e assim entender como esta forma que ele está utilizando para produzir conhecimento histórico afeta o próprio conhecimento histórico. O resultado dessa discussão epistemológica é que a história desconstrucionista acaba renegando os termos da escrita da história “no sentido realista tradicional, há apenas possíveis representações narrativas no e sobre o passado e ninguém pode alegar que conhece o passado como ele realmente foi” (ibidem, p. 29). É essa postura epistemológica que estamos apresentando como a que melhor traduz a forma como compreendemos o conhecimento histórico, sua natureza, sua forma de produção – é deste modo que olhamos para os escritos dos historiadores que utilizamos nesta pesquisa. O que apresentamos, especialmente na primeira parte, tomamos como sendo apenas uma representação do passado, uma narrativa sobre o que foi isso que chamamos de Século Das Luzes..

(19) 18. 2 – O Século das Luzes: Horizonte Histórico do Marquês De Sade Neste capítulo exploraremos o contexto histórico do iluminismo, a dinâmica do seu movimento de ideias, e tentaremos apreender as relações que se estabeleceram entre filósofos e libertinos. Rastrearemos algumas percepções dos pensadores ilustrados sobre a natureza, a sociedade e os indivíduos, principalmente a partir dos pensadores materialistas que influenciaram o Marquês de Sade. Identificaremos o lugar concedido à razão e à paixão no pensamento da ilustração. Por fim, montaremos um breve panorama sobre a religião no século XVIII, enfocando a sociedade francesa e os próprios iluministas. 2.1 – Iluminismo: Filósofos e Libertinos. Consenso geral entre pesquisadores que trabalham com o Iluminismo, a multiplicidade aparece como elemento fundamental no movimento de ideias que foi amalgamado sob esse termo. São inúmeros os autores que contribuíram para o movimento de ideias que assim ficou reconhecido, são diversas as experiências de pensamento que os países europeus tiveram com o pensamento ilustrado – e no contato entre esses pensamentos o debate suplantou o consenso (TODOROV, 2008, p. 14). Por vários momentos, a França tomou o lugar de centro de irradiação do pensamento ilustrado, mas também foram substanciais as contribuições advindas da Inglaterra, Áustria, Prússia, entre outros reinos. Havia um diálogo constante, onde cada obra publicada era subsequentemente posta à análise e crítica de outros estudiosos. Com essa dinâmica, o Velho Mundo altamente beligerante possibilitou uma aceleração no florescimento de vários saberes. Em meio a essa diversidade que predomina na Europa, alguns elementos fundamentais atravessavam esses homens do setecentos, entre eles a intensa autoconsciência sobre a época que estavam vivendo. Sabiam “que não se tratava de um acontecimento, nem apenas de um movimento intelectual, espécie de modismo de uma certa época, mas, sim, de um processo que apenas estava começando - o processo de esclarecimento do homem” (FALCON, 1994, p. 18). Diferentemente do que podemos observar no Renascimento – onde os indivíduos acreditavam estar vivendo um momento de ruptura em relação ao período medieval e uma reconexão ou continuidade com a Antiguidade Clássica, reconhecendo e desejando compartilhar.

(20) 19. da grandiosidade e fulgor dos antigos (Cf. SOUZA, 2005) –, muitos dos homens das Luzes se veem vivendo uma época que não só está superando os séculos anteriores, mas uma época com potencial para superar todas as outras épocas e civilizações erguidas até aquele momento. É Immanuel Kant (1784) quem afirma que o século XVIII ainda não era um século esclarecido; era um século de iluminação, com muito a percorrer até que o conjunto dos homens, a humanidade, esteja segura do seu esclarecimento. O filósofo de Königsberg acreditava não somente no progresso das Luzes mas em sua expansão a toda a “humanidade”, o que é um traço distintivo em relação a alguns outros iluministas que trataremos. De todo modo, ainda que certos, em alguma medida, sobre o quanto as suas práticas e conhecimentos impactariam a história vindoura, os ilustrados não deixaram de cair na autosuperestimação; essa espécie de ingratidão dos homens do presente em relações àqueles que os antecederam, e que facilmente vemos se repetir ao longo da história. Os iluministas deveram muito aos pensadores anteriores, especialmente a John Locke e Isaac Newton, entre os seiscentistas. Eles se apropriaram da herança dos seus predecessores, submeteram-na ao exame minucioso, sistematizaram e esclareceram conhecimentos duvidosos; essa recapitulação do conhecimento produzido nos séculos anteriores e sua conclusão foram atitudes mais comuns do que a inovação e a criação original (CASSIRER, 1992, p. 09). Reconhecida essa dívida dos pensadores ilustrados com os seus antecessores, cabe perguntar “o que é o Iluminismo?”. Apesar de estarmos usando as palavras Iluminismo, iluminista, ilustração, ilustrado como sinônimas, tanto para nos referirmos ao movimento de ideias quanto aos indivíduos que viveram esse movimento, Falcon (1994, p.13-18) recorda que muitas das palavras usadas para se referir ao fenômeno iluminismo são posteriores a ele e revelam características do iluminismo no pais e língua em questão. Assim, na França predomina a palavra “Lumières”, significando o Iluminismo para os franceses uma “filosofia da história” e “um ato de fé”, ou seja, o movimento das Luzes surgia como uma visão de como se desdobrava a História, onde cada pensador acreditava poder contribuir para esse desdobramento. Entre os germânicos predominou a palavra “Aufklärung”, assumindo o sentido de “esclarecimento racional”; fundamental para a superação de práticas políticas decadentes, que tendiam à corrupção do Estado e dos homens, e para a saída dos próprios homens da sua “infância”, “menoridade”, como veremos adiante com Kant. Na Inglaterra e na Escócia.

(21) 20. é a palavra “to enlighten” que se consolida como signo linguístico para a referência do Iluminismo, estando mais relacionada a “questões de natureza moral e econômica”; diferentemente dos outros reinos, esses dois já haviam posto em prática muito do que estava apenas no âmbito discursivo no restante da Europa. Daí, entre os filósofos iluministas mais destacados, nascidos a partir do século XVIII, a Grã-Bretanha ter parido apenas um ou outro – os britânicos já haviam realizado boa parte daquilo que outros apenas idealizavam (Cf. VENTURI, 2014). Dentre os ilustrados, umas das respostas mais célebres à pergunta “o que é o Iluminismo” saiu da pena de Immanuel Kant (1724-1804), no clássico texto “Resposta à pergunta o que são as Luzes” (1784). Nesse texto, o filósofo de Königsberg asserta: “iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem” (KANT, 1784, p. 05). Os homens saem da menoridade e alcançam a maioridade no momento em que fazem uso de sua razão e recusam a tutela de quem quer que seja, dos pais, dos padres, dos monarcas. Por definição, estar sob tutela significa estar num estado onde a independência e o exercício de liberdade do tutelado, incapaz em algum sentido, deve sempre passar ao exame da autoridade por ele responsável. É um estado que facilmente pode incorrer no abuso do tutelado e, ao longo do século XVIII, são inúmeros os indivíduos a denunciarem e se revoltarem contra esses abusos, cometidos em especial pela Igreja e pelo Estado monárquico. Tendo domínio sobre as letras, se os indivíduos permitem tais abusos, eles são culpados, são complacentes com os seus violadores, continuando subservientes às autoridades – algo que Kant (1874) acreditava ser a situação de muitos homens naquele período da Europa das Luzes. Eles não ousavam praticar a máxima kantiana: Sapere Aude! (Ousa Conhecer!). Não se atreveram a conhecer nem subir, a muitas vezes íngreme, escada da maioridade. Essa é uma resposta sobre o que é o Iluminismo que já estava fermentada há várias décadas no século XVIII, Kant a sintetizou com maestria. Também podemos observar essa afirmação da autonomia intelectual reverberando na literatura do Marquês De Sade, especificamente com os personagens libertinos. Além disso, essa resposta já aponta para aquilo que os autores que utilizamos aqui repetem fortemente: o Iluminismo não foi um movimento homogêneo. Sua unidade não está no conteúdo; algo evidente quando se observa a diversidade de temas estudados pelos pensadores desse século, economia, direito, agricultura, psicologia, anatomia e etc..

(22) 21. Se vemos em Kant mostra uma ânsia quanto à expansão do iluminismo, assim como em muitos outros pensadores ilustrados, tanto mais se próximos dos homens comuns, alguns outros, como Voltaire e D’Alambert, eram mais elitistas (DARTON, 1987, p. 24). O primeiro dizia que o processo de esclarecimento deveria começar com as camadas dominantes e, quando espalhada às massas, deveria ser comedido, dado os excessivos riscos de subversão; o segundo assertava a necessidade de a sociedade permanecer hierarquizada, sempre partindo de uma argumentação que vê nas massas alguma incompetência e periculosidade, que impele os sãos a mantê-las distantes dos centros de poder da sociedade. Essa barreira que autores como Voltaire e D’Alambert acreditam necessárias à expansão das Luzes se manifesta de forma explícita no mundo das letras, onde podemos observar um intento de manutenção de uma hierarquia social entre os escritores, ou os que se pretendiam escritores. Por longas décadas no século XVIII, não se podia fazer da escrita um meio de vida, era ignominioso “Viver de escrever ou tentar fazê-lo - não era para um autor digno de nome, pois revelava um berço obscuro, uma alma relés e pouco talento” (CHARTIER, 2009, p. 101)2. Muitos dos grandes autores viviam de pensões da coroa, pouco contando com os rendimentos dos seus escritos – eram os editores quem embolsavam a maior parte dos lucros. Isso não impediu que proliferassem os que almejavam ser um philosophe. Porém, conforme os filósofos vão tomando lugares de poder, como a Academia Francesa, impõem-se restrições, um verdadeiro protecionismo, quase insuperáveis ao sucesso desses escritores de berço obscuro – grande número deles acaba se tornando a lama do poço da boêmia literária, como a chama Darnton (1987). Segundo Venturi (2014), os filósofos raramente se colocavam numa posição de abandono do poder: “el poder y la filosofía se buscan mutuamente, convergen y divergen, según las circunstancias. Sus luchas y acuerdos dominan la Europa republicana, del mismo modo que dominan la Europa monárquica”3 (VENTURI, 2014, p. 202). Não esqueçamos que o “déspota esclarecido” foi uma idealização desses filósofos, talvez a maior “solução de compromisso” de uma sociedade que produziu. 2. O próprio Marquês De Sade, principalmente depois de sua falência econômica, sentiu as dificuldades de conseguir uma renda a partir das obras que veio a publicar. “O poder e a filosofia se buscam mutuamente, convergem e divergem, segundo as circunstâncias. Suas lutas e acordos dominam a Europa republicana, do mesmo modo que dominam a Europa monárquica” (VENTURI, 2014, p. 202) (Tradução Nossa). 3.

(23) 22. representações que permitiam projetar mudanças concretas nas relações de poder entre o povo e as grandes autoridades, mas que não previa a possibilidade de algo como a Revolução Francesa. Essa idealização do déspota esclarecido foi adotada por alguns governantes europeus que se queriam sensíveis aos ditames das Luzes, e um dos governantes mais destacado foi Frederico II da Prússia, aquele que mais próximo chegou do ideal; ainda que tenha fracassado. O rei da Prússia é um perfeito exemplo de um monarca que tentou ascender às Luzes, mas que, na prática, se viu devorado pelas contradições de ter pretendido atender muitos dois ideais ilustrados sem com isso reformar a estrutura da sociedade, especialmente no concernente às benesses de nobres e aristocratas (FALCON, 1986, p. 46-55). Agora nos debrucemos sobre o desenvolvimento da Ilustração, para entendermos o movimento de ideias no século XVIII de forma mais ampla e perceber, diminuindo a escala de observação, o destino de alguns particulares neste insaciável e frenético século. A década de 1740 é um momento de virada para o movimento iluminista, a atividade intelectual está efervescendo, destacadamente na França. Multiplicam-se as publicações de escritos licenciosos e sediciosos, a circulação de ideias parece subjugar qualquer barreira. É neste momento que se formam os grupos de jovens que mais tarde comporiam os enciclopedistas, como Rousseau, Diderot, D’Alambert, Holbach (Cf. VENTURI, 2014). Essa circulação de ideias, passando pela Espanha, Itália, Berlim, Paris, foi crucial para o surgimento da “Europa das Luzes” ou “República das Letras”, como alguns chamaram (FALCON, 1994, p. 21). Livros impactantes e decisivos começaram a emergir e bombardear o público leitor do século XVIII: La Mettrie publica o seu Uma História Natural da Alma (1745), Diderot o seu Pensamentos Filosóficos (1746), Condillac aparece com o Ensaio sobre a Origem dos Conhecimentos Humanos (1746). Além dos filósofos, a República das Letras era composta por todo tipo de homens letrados (médicos, advogados, professores, funcionários do Estado, clérigos, aristocratas, alguns burgueses que haviam alcançado grande fortuna); aliás, esta era a condição mínima para a performance exigida daqueles que se queriam homens esclarecidos. Saber ler e escrever eram condições basilares para atuar no palco das Luzes. Chartier (2009) e Darnton (1987) identificam um aumento no percentual de leitores no século XVIII, eles dobram, juntamente com o aumento das publicações e.

(24) 23. das estratégias de livreiros para tornar o material impresso mais barato; contudo, a quantidade de analfabetos superava a largos números a quantidade de indivíduos letrados. O que não significou que as pessoas comuns não tivessem acesso a parte das discussões e das polêmicas; é adequado lembrar que é comum a circularidade de elementos da cultura letrada através das práticas de oralidade, e isso ocorreu com intensidade significativa nesse século (GRESPAN, 2003, p. 53-54). Entre os diversos gêneros textuais publicados na Europa setecentista, pululam aqueles de conteúdo crítico à Monarquia e à Igreja, “todo um sortimento de sátiras, libelos e narrativas difamatórias [...] - textos sensacionalistas em geral temperados com passagens obscenas que denunciavam a arbitrariedade e a corrupção dos poderosos” (CHARTIER, 2009, p. 119). A maioria dos filósofos ilustrados foram críticos a essas instituições, usando mesmo da baixa literatura para expressarem sua insatisfação; é o caso de Voltaire, um mestre no panfleto político satírico. É esse mesmo Voltaire um exemplo contundente de que as críticas dos filósofos ao Antigo Regime muitas vezes não vislumbravam a dissolução da monarquia absoluta, senão sua revitalização. Outras publicações, como as de livros, sofriam um rígido controle sobre o que poderia ser impresso; apesar disso, a palavra escrita se manteve indetível (DARTON, 1996, p. 22). Na França, país que mais nos interessa, uma vez que nos propomos um estudo na obra do Marquês de Sade, eram necessárias licenças de órgãos oficiais do Antigo Regime para a publicação dos livros. Existiam as licenças oficiais, concedidas pelo órgão administrativo responsável pela publicação de livros, e as licenças tácitas, estas últimas concedidas por autoridades no boca a boca, sem documentos comprobatórios. Elas serviam aos livros ditos de natureza sediciosa ou imoral, mas cuja ameaça ao governo não se fazia iminente (CHARTIER, 2009, p. 119); além disso, existiam os livros de circulação explicitamente proibida, que estavam indexados. Os títulos publicados e vendidos com licenças ou permissões tácitas, ou que eram vendidos na ilegalidade plena, representavam um número significativo de tudo aquilo que estava disponível para o público leitor francês do século XVIII. Esse cenário de livros proibidos e o comércio clandestino por ele gerado, de riscos de perca total mas de lucros astronômicos, é mais amplo do que se possa imaginar num primeiro momento. Segundo Darnton (1987), “a maior parte, contudo, do que hoje se tem por literatura francesa do século XVIII transitava pela calçada não iluminada da lei na França daquele século” (DARTON, 1987, p. 08). A resolução para.

(25) 24. a publicação dessas obras se deu pela adoção de gráficas estrangeiras ou que estavam nas fronteiras do reino francês, é o caso de uma das maiores delas – a Société Typographique, que imprimia livros proibidos e pirateados. Lembremos, mesmo a Enciclopédia, maior realização dos filósofos e outros homens letrados do Século das Luzes, esteve indexada e convocada à fogueira, por alguns anos a partir de 1759, e sob a pena de excomunhão para quem se recusasse a cumprir o édito (DARTON, 1996, p. 21-22). Muitos dos livros proibidos eram meramente taxados de “livros filosóficos”, isto significando que representavam alguma ameaça à Igreja, à Monarquia, aos bons costumes, à ordem social, ainda que não pertencessem estritamente ao gênero filosófico. É por isso que encontramos livros de Voltaire, Rousseau, Barão Holbach e La Mettrie ao lado de uma literatura que atualmente consideraríamos pornográfica ou erótica. Chartier (2009) aponta que a identificação de uma literatura tão diversa sob o título de “livros filosóficos” não foi de todo arbitrária. Voltaire não era o único filósofo que fazia uso dos gêneros textuais da baixa literatura do século XVIII. Outro exemplo, Diderot, um dos grandes nomes do iluminismo e um dos pais da Enciclopédia, também se lançou à pena e escreveu obras eróticas, atravessadas por críticas à sociedade europeia, mas ainda lascivas; é o caso da Les Bijoux indiscrets (1748), publicada anonimamente, como faziam muitos autores. Se, por um lado, livros diversos eram alocados sob o rótulo de livros filosóficos, por outro, diversos autores e indivíduos eram rotulados de libertinos. Na França, a palavra libertino (roué) existe desde o século XVI e significava, basicamente, escravo liberado (CARVALHO, 2000, p. 126). Com o passar do tempo, a palavra vai sofreu vários deslizes de sentido. Em fins do século XVI, a palavra libertino passa a designar os livres pensadores, os homens esclarecidos, mas também designava indivíduos irreligiosos, que não acreditavam nem se submetiam às práticas da religião; além disso permanecem os significados anteriores. A partir do século XVII, começam a aparecer os grupos de libertinos, promovendo eventos e práticas que fizeram surgir uma nova cisão dos significados da palavra. É assim que no século XVIII os enciclopedistas fazem a distinção entre “libertinagem de ideias”, relacionada com o exercício da liberdade de pensamento, e “libertinagem de costumes”, aquela que atenta contra os bons costumes e a moralidade (ibidem, p. 129). Essa multiplicidade de significados da palavra, somada ao uso de gêneros textuais diversos que os filósofos faziam, permitiu a identificação tanto de um Sade.

(26) 25. quanto de um Diderot como autores libertinos. Diderot, até onde sabemos, um libertino de ideias, Sade, um libertino de ideias e de costumes; apesar da maior parte das estórias que contaram sobre sua vida pessoal não passarem de lendas, ele praticou a libertinagem de costumes, deixando um rastro de registros policiais e depoimentos mais do que suficientes para atestar sua veracidade. Rouanet (1990, p. 168-9) asserta que havia um conluio entre filósofos, que possuíam ou não interesse pela temática sexual, e os autores propriamente libertinos, cuja esfera de experiências de pensamento e produção textual estavam voltadas decisivamente para as práticas sexuais e a libertação moral. Enquanto os filósofos ofereceriam bases teóricas e criticavam os costumes de nobres e aristocratas, os libertinos faziam dos seus romances um campo de irradiação das ideias filosóficas. Na verdade, a situação ia além disso. Como vimos com Chartier (2009), os filósofos estavam eles próprios imergidos na escrita da baixa literatura. Moraes (2011) aponta que os libertinos tinham o papel de testar as teses filosóficas, precipuamente as materialistas, que, ao darem centralidade ao corpo, atraiam os devassos preocupados com uma experiência do corpo que retirasse o máximo da máquina corporal. Este é o caso exemplar do Marquês de Sade, devorando filósofos materialistas como Claude Adrien Helvétius (1715-1771), Barão d’Holbach (1723-1789) e Julien Offray de La Mettrie (1709-1751). 2.2 – O lugar da Razão e da Paixão No Mundo Iluminista. Para Cassirer (1992), a multiplicidade do movimento iluminista está submetida a uma ordem, que seria compartilhada pela maioria dos pensadores dessa época. Essa ordem é garantida pela forma que a razão passa a ser utilizada depois de Newton e Locke. No século XVII, especialmente com Descartes, a razão está subjugada a uma dimensão metafísica ou um Deus, é essa dimensão que garante que aquilo que a razão conhece possua valor de verdade, ainda que a realidade fenomenológica se mostre rebelde à organização do conhecimento que a razão oferece. O arranjo que Newton faz do racionalismo cartesiano e do empirismo lockeano inverte a anterior relação de submissão da razão. Nos termos de Cassirer (1992), Que o espirito se abandone, pois, a toda riqueza dos fenômenos, que se meça continuamente por ela: longe de correr o risco de aí se perder, está seguro de encontrar nela sua verdade e sua própria dimensão. É assim que se estabelecerá a verdadeira reciprocidade, a verdadeira.

(27) 26. correlação de "sujeito" e “objeto", de "verdade" e "realidade" e que se produzirá entre esses termos a forma de "adequação", de correspondência, que é a condição de todo conhecimento científico (CASSIRER, 1992, p. 27).. O ponto de partido do conhecimento racional e científico passa a ser este mundo, a realidade material que se dá aos sentidos. É no processamento adequado das informações tomadas pela sensibilidade que os homens se tornam capazes de alcançar a verdade. A busca por correspondência, através do seu embate, entre a leitura que o homem faz da realidade material e esta mesma realidade é ainda hoje o objetivo e o critério perpétuo da cientificidade do conhecimento. A posição que os sentidos tomam na formação do indivíduo e na produção do conhecimento representa uma virada essencial no século XVIII. São eles, os sentidos, que estão na base da formação das ideias e da mente humana, e, em última instância, são eles a base a partir de onde se estrutura aquilo que os homens chamavam de alma. Esta, num movimento de recusa do dualismo cartesiano, “seria produto das percepções do corpo, deste modo, não existindo num plano distinto dele e nem, muito menos, sendo criação divina” (GRESPAN, 2003, p. 48). Nada do que o ser humano é tem fundamentação em um outro mundo, portanto não há porque buscar explicações que não tenham referência em nossa materialidade e sua regularidade própria. Nas palavras de La Mettrie, A alma não passa, portanto, de um termo vão, de que não temos nenhuma ideia, e da qual um Espírito esclarecido só se deve servir para referir a parte que em nós pensa. Admitido o mais pequeno princípio de movimento, os corpos animados têm tudo de que necessitam para se mover, sentir, pensar ou arrepender-se – isto é, para se conduzirem no plano Físico e no moral, que dele depende.” p.83. (LA METTRIE, APUD MATTOS, 2017, p. 103). Os homens estão finalmente reduzidos aos seus corpos. O corpo não é mais lugar do ignominioso, das funções baixas, das paixões no mau sentido. As faculdades cognitivas, como a percepção, a memória, o raciocínio têm sua origem e manutenção em mecanismos da máquina corporal. Se muitos autores do Século das Luzes continuam a usar a palavra alma, esta não é mais tomada nem como imaterial nem como imutável, sofrendo dos males e da degradação do corpo. Ao lado dessa percepção sobre o ser humano, agora parte da Natureza e com regularidade imposta por ela, está a percepção de como funciona a Natureza em sua totalidade. Ela passa a ser entendida como bastando a si mesma, detentora de uma.

(28) 27. autonomia e autoregulação que torna Deus desnecessário. A natureza é encarada como um sistema uno, inter-relacionado pela ação e reação de suas partes componentes em um mecanismo que tudo determina, sem lugar para os acasos, mas tampouco para a intervenção de causas finais. O movimento dos corpos e mesmo a geração dos seres vivos ocorrem através de leis atuando em cada momento, necessariamente, sem que uma finalidade maior as determine, porém, de forma providencial (GRESPAN, 2003, p. 48).. Essa visão assumirá sua versão mais extrema em autores materialistas como D’Holbach, com o Sistema da Natureza (1770); Helvétius, com Do Espírito (1758); e La Mettrie, com O homem máquina (1747). Esses são autores que influenciaram decisivamente o Marquês de Sade. Entretanto, como nos adverte Ernest Cassirer, o materialismo desses autores não foi tomado em sua plenitude, logo a influência que exerceu no pensamento do século XVIII tem seus limites. Com essa percepção sobre a Natureza, a produção do conhecimento na ilustração abandona a dedução que parte de uma realidade metafísica e da qual se poderia extrair um conhecimento acabado e perfeito sobre como o mundo funciona. Abandona-se o “espirito de sistema”, que levou à produção dos grandes sistemas filosóficos do século XVII, com Leibniz (1646-1716), Spinoza (1632-1677) e Malebranche (1638-1715); por outro lado, é reafirmado o “espírito sistemático”, responsável pela organização do conhecimento produzido, essencial ao seu progresso, e que no intento de adequação entre o conhecimento produzido e a realidade fenomenológica se esforça por não renegar as dissonâncias. Esse novo arranjo, essa nova forma de se conduzir a produção do conhecimento se espalha por todas as áreas de saber do século XVIII; a exemplo da filosofia, que estará, em todos os seus segmentos, “vinculada ao exemplo privilegiado, ao paradigma metodológico da física newtoniana” (CASSIRER, 1992, p. 30). No século XVIII, os iluministas fazem da razão o seu signo universal, ela “é o ponto de encontro e o centro de expansão do século, a expressão de todos os seus desejos, de todos os seus esforços, de seu querer e de suas realizações” (CASSIRER, 1992, p. 22). A razão iluminista não é concebida como um estado estático a ser alcançado, e que no momento que os homens o alcançassem estariam diante do conhecimento perfeito e acabado do mundo e de si mesmos. Longe disso, a razão é enxergada como “uma energia ou força intelectual só compreensível e perceptível através da prática,.

(29) 28. isto é, do que é capaz de fazer e produzir” (FALCON, 1994, p. 36). O Marquês De Sade também deixa explícita a importância da razão, mas, como veremos, os usos aos quais a razão se abre na literatura sadiana vão além dos contornos dados pela maioria dos iluministas. Em tese, essa força intelectual é tomada como universal, sendo a mesma para todo e qualquer indivíduo pensante, independentemente da época, da cultura, da nação; atravessando as diferentes manifestações religiosas, os regimes morais, os sistemas teóricos – para além de tudo isso, existiria um núcleo duro, cuja unidade e consistência expressariam a essência disto que os homens, em seu esforço sintético, chamam de razão (CASSIRER, 1992, p. 23)4. A razão não é anterior àquilo que examina, não pode ser concebida aprioristicamente, ela deve ser demonstrada nos próprios fenômenos, como sendo necessária aos fenômenos para que eles sejam tal como aparecem aos homens; assim, a razão nos fenômenos acaba sendo expressa na “forma de sua ligação interna e de seu encadeamento imanente” (ibidem, p. 26). Abandonado o conhecimento com fundamentos em uma realidade metafísica, a razão não se fará escrava do estritamente factual, como se os dados empíricos em si, de imediato, já revelassem a ordem interna e necessária dos fenômenos. Não. O conhecimento racional e científico é processual, e as suas ferramentas essenciais são a observação e a experimentação, mães da ciência moderna. Assim, a razão é concebida como um instrumento transformativo, que auxilia o homem no caminho da verdade, da iluminação. Uma iluminação natural, diversa daquela que se alcança através da revelação divina, mas não contraditória a ela; seria mais a sua expansão (FALCON, 1994, p. 34). A esses homens que entraram no caminho da iluminação natural, o espirito crítico se faz categórico; este é uma manifestação íntima daquilo que possuem de mais essencial, “sua consciência racional de ser humano” (ibidem, p. 37). Nada deve estar a salvo do crivo da crítica. Enquanto, no século anterior, a dúvida metódica de Descartes salvaguardava a religião e o Estado, os iluministas se deram o direito de submeter a exame tudo e todos, inclusive a própria razão (CHARTIER, 2009, p. 51);. 4. Se é possível para Cassirer sintetizar essa percepção da razão, não podemos, de modo algum, deixar de lembrar que, na prática, essa universalidade da razão foi muitas vezes negada para alguns indivíduos; um descaminho ou outro, por mais problemático que pudesse se tornar para o restante dos corpos teóricos dos iluministas, acabava sendo tomado – e uma justificativa para relações de poder assimétricas sempre produzida, seja para justificar as relações entre europeus e não europeus, seja, caso que mais nos interessa neste trabalho, para justificar as relações entre homens e mulheres..

(30) 29. e é nessa direção que vai o projeto filosófico de Kant, ao escrever a Crítica Da Razão Pura (1781) e as outras duas críticas da tríade. É essa percepção de que a própria razão deve ser questionada e dissecada que refreia a crença ingênua no poder da razão. Desde David Hume germina a semente do ceticismo, que alcançou vastamente os espíritos ilustrados e levou à mitigação do entusiasmo de se poder entender e explicar a tudo. No extremo, não só o poder da razão é colocado em dúvida mas também a crença no progresso da humanidade através da racionalidade. Aqui, novamente Voltaire é exemplar; na sua perspectiva da história o progresso é apenas uma possibilidade, que convive ao lado das possibilidades de estagnação e retrocesso destrutivo (CHARTIER, 2009, p. 59). Também Rousseau é cético ao progresso que a razão possa alimentar; se o homem é dotado da perfectibilidade, qualidade que permite-o se aperfeiçoar indefinidamente, graças a qual ele se dotou das luzes, é também ela a abertura para a sua decadência – foram as luzes que produziram a sociedade civil, que o autor enxerga como antro de tragédias (Cf. ROUSSEAU, 1999). Também as paixões são rearranjadas nesse novo horizonte do saber ilustrado. No século XVII, com Descartes, as paixões são tomadas como algo negativo, são fontes de erro, que facilmente levam ao comportamento destrutivo. Não pertenceriam à alma “Os instintos, os desejos, as paixões sensíveis” (CASSIRER, 1994, p. 150). Se o ser humano é possuidor de uma vontade, de um querer, este é insuficiente, por si só, para a domesticação do seu substrato passional; é aqui que entra a razão, na perspectiva cartesiana, como sendo a única capaz de produzir a vontade necessária para a disciplina e decantação das paixões – só assim elas poderiam servir à edificação dos indivíduos (GRESPAN, 2003, p. 62). No século XVIII, as paixões, assim como outros elementos da realidade orgânica e sensível do homem, são revalorizadas e apontadas como possuidoras de um papel fundamental na formação do ser humano e do complexo chamado “alma” – esta, agora, completamente pertencente a este mundo. A vontade, “energia do querer”, não mais é uma derivação da razão, é antes uma força constituinte da mente ou alma humana, é ela quem controla as paixões, não a razão; esta assume o papel de um instrumento que tem por função adequar os meios e as formas pelas quais as paixões, os desejos e os instintos possam ser realizados. As paixões devem contrabalançar-se mutuamente, anulando possíveis excessos e arroubos entusiastas, de forma a produzir um equilíbrio, uma medida.

(31) 30. "natural", mil vezes preferível ao controle artificial da razão. No comedimento também deve haver espontaneidade, graça; trata-se muito mais de arte do que de racionalidade fria (GRESPAN, 2003, p. 63). Tudo que há de melhor na poesia, na pintura, na música, todo o sublime da arte e dos costumes, brota dessa mesma fonte. Portanto, as paixões não devem ser enfraquecidas mas, pelo contrário, intensificadas, pois a verdadeira Corça da alma nasce de sua concordância recíproca e não de sua destruição (CASSIRER, 1992, p. 153).. Filósofos como Voltaire, Helvétius, Holbach, La Mettrie, Diderot e Rousseau estão, com diferenças quanto aos resultados e formas de conduzi-los, de acordo no que se refere ao papel concedido às paixões. Rousseau, analisando hipoteticamente o processo de desenvolvimento da razão, vai dizer que esta possui uma dependência estrutural das paixões; e a cada passo da razão se criam novas paixões, que em sua maioria se demostraram superficiais e nefastas (Cf. ROUSSEAU, 1999). Como veremos, no momento adequado, as paixões desempenham função essencial no pensamento do Marquês de Sade, sendo mais um caso de apropriação do pensamento iluminista e adaptação aos seus intentos próprios. Os filósofos materialistas deram atenção especial às paixões. A valorização destas esteve ao lado da revalorização do corpo no pensamento setecentista. Helvétius acreditava que “As paixões são na moral o que o movimento é na física: cria, destrói, conserva, anima tudo; sem ele, só há morte. São elas também que vivificam o mundo moral” (HELVÉTIUS apud FERRAZ, 2012, p. 67). O sensualismo desse filósofo, que via na busca pelo prazer o mais autêntico comportamento humano, tem nas paixões uma das formas principais de realização dos desígnios da natureza sobre os homens. E, se de um lado as paixões podem levar à destruição, por outro, sem elas não é possível que os homens despertem para a verdadeira virtude – aquela que “consiste em atos úteis à felicidade do homem” (ibidem, p. 71). Retornando à razão, por um lado, o seu exercício baseado no paradigma da física newtoniana se espalha para a maioria das áreas de conhecimento do setecentos, por outro, o progresso das realizações das Luzes vai depender dos usos que os indivíduos fazem delas. Kant faz uma distinção entre “uso privado” e “uso público da razão” (KANT, 1784, p. 07). Para o filósofo, essa diferença se faz necessária (melhor, é uma consequência dela) para a manutenção do poder na monarquia e para a manutenção de quaisquer outras instituições, uma forma de conciliar a liberdade do indivíduo e a.

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